19.9.06

A praga da hipocrisia brasileira

Professor Sandro Sell

O Brasil é o país com o menor biquíni do mundo, mas é também o lugar onde – pasmem! – ainda se discute se o topless é ou não conduta criminosa. A questão é relevante. Quem ainda não teve sua moral assaltada na praia pela exibição de um desses pares de indecência corpórea? Quem ainda não foi vítima de uma quadrilha de jovens siliconadas que provocaram um arrastão de olhares, enquanto tudo o que queríamos era nosso sagrado lugar ao sol? Quem nos defenderá dessas moças exibidas? “Senhor Deus dos desgraçados, dizei-me Vós, Senhor Deus, se eu deliro ou se é verdade tanto horror perante os céus...”

Enquanto a moça está praticamente nua na parte de baixo, alguns policiais, promotores e juízes estão assustados com a nudez da parte de cima. Se os mesmos seios estivessem à mostra publicamente na função tradicional da mulher – amamentar a criança – esses indivíduos os achariam lindos, seriam capazes até de chorar de emoção. Então, leitora exibida, quando for fazer topless, leve na bolsa de praia uma criança emprestada, para todos os efeitos, seus seios estão ali para alimento e não para exposição lasciva. Garanto que o irritado policial, neste caso, até carregará sua cadeira de praia. Uma segunda alternativa: ao ser flagrada pelo guardião da moral, simule um auto-exame de mama. Diga que é um trabalho social lá da faculdade: mostrar às outras mulheres como se previne o câncer. O policial, neste caso, não só carregará a cadeira, como enterrará seu guarda-sol.

Conta-se que um dos “anões do orçamento”, aqueles deputados que nos roubavam, levantou-se num teatro, vaiando os atores da peça porque apareciam nus. Na visão dele, isso sim era imoralidade. Onde já se viu mostrar-se pelado num espetáculo, só para adultos, às 22 horas da noite! De fato, para isso não há desculpa. Roubar o dinheiro público, tudo bem, é um esporte nacional de elite, assim como o pólo e as corridas de cavalo. É quase um costume jurídico, aquela prática reiterada – ainda que contra a lei – que é amplamente praticada e com a opinio jures necessitatis (a convicção íntima de que se deve fazê-la). Mas tirar a roupa num espetáculo, isso já é abuso de direito, é ato obsceno. Cadê o delegado?!

O Brasil é um país contra o aborto. Até mesmo no caso do feto anencefálico (feto sem cérebro), a maioria moral quer forçar as grávidas de fetos, que jamais sobreviverão ao parto, a carregá-los durante nove meses na barriga, apenas para satisfazer as convicções dos carolas de plantão. Cadê o direito à liberdade de crença? Se a sua religião diz que ali há uma alma, tudo bem, eu respeito, carregue sua gravidez anencefálica até o fim. Mas não me force a fazer o mesmo apenas para respeitar sua visão religiosa de ser humano. Isso é violência, é imposição de credo, inadmissível num Estado laico. Estado o quê? Desculpem, agora eu me passei, essa mania de ler a Constituição anda me confundindo as idéias... Estado laico... ridículo...

Se fosse só no caso de aborto anencefálico, tudo bem. Mas este país tão contra o aborto (nos discursos) é também, segundo vários estudos, aquele que mais pratica abortos no mundo. Desde que seja para “limpar a honra” da família, cuja filha engravidou fora do tempo, vale à pena falar com o médico amigo. Como pai, ele entenderá o sofrimento vivido e como aquela gravidez atrapalhará os estudos e a ida a Disney da mocinha de futuro. Aos pobres, que não tem médico de família, restam as agulhas de tricô e a morte, caso alguma complicação haja no aborto amador, já que se procurarem um hospital, o delegado é quem preencherá o prontuário. É fácil às elites serem contra o aborto no Brasil: se precisarem, elas o obterão de forma discreta e clinicamente impecável. A tragédia legal brasileira é justamente essa: só os pobres consultam a lei antes de fazer algo. Os ricos consultam seu bolso. Como disse o milionário americano ao seu advogado: “Eu não estou lhe perguntando o que a lei me deixa fazer. Estou lhe mandando ajeitar as coisas na lei para que eu possa fazer o que eu quero.” Claro, patrão. Só mais uma pergunta: a lei que o senhor quer é mal passada ou ao ponto?

O Brasil é também contrário à pena de morte. A maioria da população se diz contra. Acreditam que a pena de morte é ineficaz para baixar a criminalidade (e de fato é). Dizem também que demora muito esse tal de corredor da morte (mas para isso, se eu bem conheço o Brasil, ligeirinho se inventaria uma esdrúxula antecipação de tutela...), dizem, por fim, que ela é desumana. De fato, somos um país humaníssimo! Não sei como a ONU ainda não nos adotou como modelo de humanidade para o mundo... Mas, quando a polícia mata atrás do camburão – sem direito à defesa, que dirá ao devido processo legal -, quando a polícia invade um Carandiru e mata 111 e outras ações de “assepsia social”, a maior parte da população, consultada pelos jornais, acredita que são ações corretas do Estado contra a criminalidade. Em suma, somos contra a pena de morte norte-americana, com essa estranha mania de deixar o acusado se defender, mas somos favoráveis a essa pena de morte liminar, administrativa, auto-executável pelo policial. Camburão da morte, tudo bem, mas corredor da morte, isso de fato é desumano.

As contradições poderiam se alongar ao infinito. Essa hipocrisia atávica aqui reinante já foi atribuída à nossa herança latina. O historiador Carlos Fuentes lembra que enquanto na América colonizada pelos ingleses era tudo preto no branco, na América luso-hispânica era tudo no cinza. Os cowboys do velho oeste matavam índios, enforcavam bruxas e se achavam o máximo por isso. Os puritanos anglo-saxões podiam ser bandidos, mas não eram hipócritas. Matavam a cobra e exibiam o pau: “Matamos esses selvagens; enforcamos esses negros; cumprimos nosso dever”. Já nas terras latinas, matamos tantos índios quanto, surramos e assassinamos escravos negros aos milhares, mas, - que grande ajuda! - sempre tivemos muito complexo de ter feito essas coisas. A Igreja, o trono espanhol e o português tinham dúvidas sobre o que fazer com os “selvagens” (muitos os defendiam), o que fazer com os escravos e suas religiões (quem sabe liberá-los). Na prática, fomos um dos últimos países do mundo a libertar os escravos e – ah, como é típico de nós – o primeiro a se autoproclamar uma democracia racial e a dizer que não tínhamos qualquer tipo de preconceito!

Ah, se todos fossem iguais a você, Brasil. Não existiria a verdade, verdade que ninguém vê, mas como se falaria bonito...

Para saber mais:

SELL, S.C. Ação afirmativa e democracia racial: uma introdução ao debate no Brasil.

16.9.06

A loira é mesmo burra?

Professor Sandro Sell

Por injusto que possa nos parecer, uma das vantagens de ser belo é poder fazer uma tarefa de forma medíocre e ter razões para esperar que os outros a avaliarão acima do que realmente vale. Até com nomes isso ocorre. Por exemplo, nos EUA pesquisadores descobriram que o simples fato de a pessoa possuir um nome bonito, tende a distorcer para cima a avaliação que recebe em redações escolares. Tal distorção é chamada de efeito halo. É como se pessoas belas (ou com qualidades apreciadas, como um nome bonito) gerassem uma aura capaz de esconder seus defeitos ou supervalorizar suas qualidades. Isso significa que, na prática, quanto mais bonito ou bonita você for, menos inteligência e força precisará utilizar para obter elogios em quase tudo o que fizer. É possível visualizar neste fenômeno uma das possíveis explicações para o estereótipo da "loira burra". Se tomarmos essa expressão popular como sinônimo de mulher bonita, podemos, de fato, afirmar que “as belas”, se quiserem de fato usar a inteligência, podem relaxar, fazer suas tarefas pela metade etc. que, ainda assim, as pessoas à sua volta tenderão a atribuir um valor positivo ao que fazem. Portanto, a bela loira, ao ser, digamos, cognitivamente displicente, não é burra, é estratégica, aproveita-se do impacto obscurecente que sua beleza provoca no julgamento alheio.

Em termos criminológicos, o efeito halo é uma das espécies mais daninhas de injustiça policial e judicial. Nancy Etcoff (1999: 62) observa que:

“Adultos de boa aparência tendem a sair ilesos de furtos de lojas a fraude de exames e perpetração de crimes sérios. São menos propensos a serem registrados (não são vistos de maneira suspeita), e, quando registrados, há menos possibilidade de que sejam acusados ou sofram punições.”

Pelas vantagens sociais da adequação ao padrão estético, nesse momento, milhões de pessoas se submetem a dietas frenéticas, cirurgias plásticas, temendo momentos de exposição pública do corpo (como na praia), antevendo a forma cruel com que a sociedade lida com os que não seguem suas regras. Tal preocupação com a estética pode até nos parecer fútil, mas numa sociedade regida pelo efeito halo, a beleza é um capital estratégico. Talvez não seja fundamental, mas certamente é útil. Injusto? Sim e muito. Mas quem disse que o mundo é lá comprometido com a justiça?

Para saber mais:

ETCOFF, N. (1999). A lei do mais belo. Rio de Janeiro: Objetiva.
SELL, S. C. (2006). Comportamento social e anti-social humano. Florianópolis: Ijuris.

14.9.06

Os chefões do crime e seus dublês

Professor Sandro Sell

O chamado crime organizado no Brasil é feito pela junção de esforços entre aqueles que não têm nada a perder e aqueles que não têm nada a temer. Os primeiros são representados por indivíduos pobres, que perderam a esperança de serem “alguém” na vida valendo-se apenas de meios honestos. Não possuem educação, nem oportunidade de emprego, mas foram, pelas propagandas da sociedade de consumo, induzidos a sonharem alto. Querem se “dar bem”. E, nas condições em que se encontram, o crime parece-lhes o único atalho possível. Mas esses, por si só não se organizam, se soubessem como fazê-lo, talvez pudessem fundar cooperativas, empresas e, honestamente, ascenderem na vida. Para organiza-los entram em cena os que têm muito a perder, mas nada a temer. São os financistas do crime. Pessoas ricas, que passaram por escolas, sabem montar empresas, recitar os artigos da Constituição e sentem-se “cidadãos do mundo”. Indivíduos que, para maximizarem seus lucros, organizam o grande negócio da nossa época: o tráfico de drogas. Para chefiar a parte sangrenta e suja desse empreendimento, contratam dublês, encarnados em personagens folclóricos como Fernandinho Beira Mar e Marcola, cuja origem miserável e destino provável (prisão e assassinato) já indicam que pertencem ao terceiro escalão do crime: aquele grupo que pode ser facilmente substituído. E será. Quem manda no crime é outro tipo de gente: pessoas que sequer admitem a possibilidade de serem presas e que têm tudo para acreditarem que jamais serão mortas em tocaias. Nada têm a temer. A polícia não entende a complexidade de seus crimes e, então, desloca sua atenção unicamente para os que assaltam de arma em punho. As leis que, podiam pegar-lhes, não o fazem. Diluem sua eficácia no tripé da impunidade de elite: investigações mal feitas, processos penais conduzidos com excesso de garantias individuais e sem à devida atenção proporcional ao interesse público, e a proteção da opinião pública que não vê tais indivíduos como perigosos. Com isso as elites criminosas continuam tranqüilas, na praia, vendo, na primeira página, seus dublês passarem-se por protagonistas.

Para saber mais:

SELL, S.C. Comportamento social e anti-social humano. Florianópolis: Ijuris, 2006.

12.9.06

Zaffaroni: um mestre para o nosso tempo

Professor Sandro Sell


Prof. Sandro e o grande mestre Zaffaroni durante
o 69° Encontro Internacional de Criminologia


A Sociedade internacional de Criminologia homenageou, em Buenos Aires, no dia 9 de setembro de 2006, o Professor da Universidade de Buenos Aires e Ministro da Suprema Corte da Argentina Eugênio Raúl Zaffaroni. Ele foi agraciado com a comenda de "Mestre maior da ordem internacional de Criminologia". Estivemos lá privilegiando o evento e, o que é melhor, ouvindo as falas do Dr. Zaffaroni, sem dúvida um dos grandes mestres do pensamento contemporâneo. Leia o artigo abaixo para saber um pouco sobre o pensamento dele.


Zaffaroni, um mestre para o nosso tempo

O Professor Zaffaroni é um desses indivíduos que se tornaram grandes por se fazerem pequenos. Ministro de corte suprema, um dos maiores especialistas mundiais em direito penal, sábio em filosofia e conhecedor de sociologia, ele bem que poderia se apresentar como a solução para muitos dos problemas contemporâneos. Poderia dizer: “Eu tenho a fórmula”. Mas não. Ele prefere comparar-se a um açougueiro que só entende de seu pequeno comércio e tipos de carne. A carne que ele vende é o direito penal e suas penas. E esse produto não serve – ao contrário do que se pensa habitualmente – para resolver a questão da criminalidade. Isso mesmo, o direito penal é, em grande parte, uma fraude: ele se diz útil para o que não é. E Zaffaroni não pretende compartilhar desse blefe, típico dos juristas de mídia. Por isso gosta da metáfora do açougueiro: quem só entende de carnes não deve andar por aí dando palpites sobre vinhos. Se o problema é combater a criminalidade, o penalista sensato tem pouco a dizer.

Como comerciante honesto, se alguém chega e diz: “Açougueiro Zaffaroni, eu queria uma pena criminal para combater o terrorismo, qual o senhor sugere?” “Nenhuma” - responderia o mestre portenho - “as penas não servem para isso e não vou lhe fazer uma venda enganosa. “Então” – continua o esperançoso freguês – “de cá uma pena para resolver a criminalidade no Brasil que está descendo dos morros e atacando nossas cidades.” O estoque de Zaffaroni também não teria como atender a esse pedido. “Meu caro freguês” – diria talvez Zaffaroni – “a única coisa que eu posso lhe informar é que você entrou no estabelecimento errado. Esse é um açougue de direito penal. Você me trouxe um menu de problemas: terrorismo e delitos causados pelos desequilíbrios sociais. Eu vendo penas e, como especialista, posso lhe afirmar: meu produto não serve para os seus problemas, que são sociais e não jurídicos.”

Assim como o doente em busca de analgésico deve dirigir-se à farmácia e não ao açougue, os políticos assustados com a criminalidade devem ir atrás de soluções efetivas e não ao balcão das soluções juríco-penais. Neste não se vendem tais soluções, mas apenas discursos fantasiosos, porém, desgraçadamente, de grande apelo eleitoreiro. Não é à toa que a lei dos crimes hediondos e toda essa série de leis mais duras, ultimamente implantadas no Brasil, não nos deram uma sociedade mais segura. A solução do açougueiro-penal não se aplica a problemas sociais. Quem quer eliminar a criminalidade brasileira via pena criminal está delirando, é mal informado ou é cúmplice da visão estúpida que criminaliza uma parte da sociedade (os mais pobres) para dar uma falsa sensação de segurança aos mais ricos.

O direito penal deveria ser reduzido ao mínimo, pensa Zaffaroni. Quem sabe ter em nosso código penal apenas 20 ou 30 delitos, com os quais todos estivéssemos de acordo e nada mais. O resto é “fantasia tipificada”: desejo de solucionar problemas sociais mediante a criação de novos tipos criminais. Exemplificando: não é com o endurecimento das penas para os camelôs que resolveremos o problema da falsificação do novo programa da Microsoft ou das Bolsas Louis Vuitton. O problema não é penal. Mas sim, no primeiro caso, do monopólio de soluções em informática mundial nas mãos de umas poucas empresas das quais somos todos reféns. E é por isso que cedemos lugar ao atravessador “camelô”, que, em geral, sequer faz uso pessoal da mercadoria ilegal que vende. Está lá para servir a uma outra classe social (a mesma que pede penas mais duras para os falsificadores!). A Microsoft & cia, mediante não apenas competência, mas também a práticas comerciais duvidosas, inviabilizou a concorrência na área de softwares e nos tornou reféns de seus produtos. Colocar o camelô na cadeia não resolverá esse dilema entre os direitos de acesso público aos bens de informática e os direitos autorais e comerciais das empresas que os produzem. Tal dilema deverá ser resolvido em outra instância, e não no açougue do penalista.

Sobre a falsificação de bolsas Louis Vuitton e assemelhados, o problema é fashion, mas não menos sério. Só não é criminal. A questão de base é: como uma empresa como essa consegue convencer o consumidor de que a bolsa que produzem vale algo em torno de 10 mil reais? Somente se aproveitando da ingenuidade do consumidor, induzindo-o ao absurdo consumo, mediante produções de marketing hollywoodianas. Se a bolsa Louis Vuitton custasse o que ela vale em termos de uso, não seria falsificada, pois seu preço cairia drasticamente, ainda que pudesse ser um pouco mais elevado, em função de uma alegada maior qualidade. Mas qualidade, em geral, não se falsifica, o que se falsifica é o status, a etiqueta. Se a L. Vuitton quiser se livrar das cópias de seus produtos, basta que venda – ainda com fabuloso lucro – suas bolsas pelo preço que elas efetivamente valem, e não pelo que induziram o compulsivo consumidor a pagar. Não adianta pôr o falsificador na cadeia (resposta penal), a solução é outra. Deixem em paz o açougueiro penal.

Idéias como essas são típicas de Zaffaroni. Um dos poucos juristas de primeira linha que não se renderam ao charme e prestígio que dá falar apenas o que agrada ao público pagante. Não, Zaffaroni é irritante. Desagrada o penalista tradicional, a polícia e muitos de seus colegas juízes. Talvez por isso é que, há pouco em Buenos Aires, quando procuramos os livros dele nas maiores livrarias da capital Argentina, não encontramos. As prateleiras das livrarias portenhas, lotadas de autores brasileiros como Lair Ribeiro e Paulo Coelho e de americanos, como Dan Brown e Sidney Sheldon, não tinham espaço para Zaffaroni. "Podemos consegui-lo em três dias", diziam os livreiros. Como se vê, lá, como aqui, a ignorância é pronta-entrega, já a sabedoria só sob encomenda. Deveria ter tentado no açougue.

Para saber mais:

ZAFFARONI, E. R. Em busca das penas perdidas.
ANDRADE, V. R. P. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal (livraria do Advogado).