28.4.07

Suicidas e matadores

O caso do Supermercado Rosa, em Florianópolis, incendiado pelo funcionário Leandro Pacífico de Souza, de 19 anos, levando à morte de outro funcionário, a lesões em cerca de 30 pessoas e ao risco de uma tragédia sem precedentes em Santa Catarina, não é tão diferente assim do caso do atirador da Virgínia Tech (http://sandrosell.blogspot.com/2007/04/o-massacre-na-virgnia-tech-o-perfil-do.html). Nos dois casos pessoas aparentemente normais, insatisfeitas por motivos banais aos olhos dos outros, mas insuportáveis pela ótica interna desses indivíduos, descarregaram sua raiva no mundo a sua volta.

Poderia Leandro ter-se inspirado em Seung-hui, o atirador da Virgínia, de 23 anos? É possível. Sabe-se, já não de hoje, que o evento suicida - ambos se mataram- é um comportamento extremamente sensível à imitação. Isso ocorre porque no suicídio alguém que era considerado um ser desimportante - um zé-ninguém - torna-se o dramático protagonista daquela que é, sem dúvida, a maior aventura existencial possível: decidir sobre seu próprio fim, quando, onde e por que sua vida terminará. Diante disso, o suicida pode ser reprovado por alguns, mas é admirado por muitos (quem jamais pensou, ainda que por um segundo, em pôr fim a si mesmo?) e compreendido por um número maior ainda de pessoas (“O que faltou fazermos para que ele não desistisse de viver?”). O suicida, que, muito provavelmente, era alguém que se sentia culpado de ser quem era, após a tragédia passa a ser visto como alguém que deveria ter sido olhado com mais atenção, compreensão, carinho. “Vocês poderiam ter evitado isso”, disse Seung-hui em um de seus vídeos, a mesma frase que, possivelmente, estava na mente de Leandro.

Suicídio espalhafatoso
A moda hoje é o suicídio espalhafatoso e criminoso, aquele em que vários inocentes são arrastados juntos à desistência existencial do suicida. Isso lança uma mensagem à sociedade impossível de não ser ouvida: “Quem agora é desimportante?” “Quem agora é só um aluninho imigrante?” “Quem agora é só o funcionariozinho que vocês podem transferir de cá para lá?”. A morte os lançou para a grandeza: do anonimato passaram a celebridades.

Tinham eles motivos para fazer o que fizeram? Pela nossa perspectiva de sobreviventes, claro que não. Podemos argumentar, inclusive, que se queriam se matar era problema deles, mas que não levassem inocentes. Inocentes? Não pela ótica deles; não havia mais inocentes na sociedade: todos que não pararam para lhes dar a devida importância – aquela que julgavam adequada – eram parte da mesma conspiração que lhes tornou a vida insuportável. Inocentes somente eles.

Além disso, quem decide se matar, como no caso deles, acredita que sua vida é um martírio, que são mártires, pois. Mártires são sempre inocentes. Se eles, os maiores dos inocentes, já não podiam viver neste mundo, por que deveriam se preocupar com outros ditos “inocentes”? Que sejam mártires também!

Para compreender Seung-hui ou Leandro Pacífico é preciso pensar a partir da cabeça de alguém que decidiu – sabe-se lá o motivo – que sua vida não vale mais a pena ser vivida. Esperar que pessoas nessa situação tenham pruridos morais, de preocupação com os outros, é um pedido desesperado e legítimo da sociedade que fica. Mas seu atendimento é uma mera cortesia de quem vai. Isso mesmo: quando já não se ganha nada atendendo a um pedido, nem se pode ser punido por não atende-lo, realizá-lo ou não é mera questão de cortesia.

Ambos não foram corteses na morte. É lamentável, mas compreensível. Injustificável, mas ainda compreensível.

26.4.07

É difícil ser polícia...


Esse seqüestro em Campinas, São Paulo, que já dura mais de 45 horas mostra a cautela da Polícia, em particular do GATE (Grupo de Ações Táticas Especiais) da Polícia Militar, que insiste, à todo custo numa saída negociada, e o despreparo de parte da mídia que fica, repetidamente, sondando sobre se não está se deixando o evento se estender demais. Para as televisões é possível que uma invasão, com gazes, atiradores de elite e metralhadoras, seria o mais adequado. Brito Jr, por exemplo, apresentador do Hoje em dia, ficou exaltando o trabalho do GER (Grupo Especial de Resgate), da Polícia Civil paulista, que chegou no teatro de operações, posicionou atiradores em cima da casa e, com isso, provocou o primeiro disparo do sequestrador. Ele pergunta: "Será que o sequestrador não dormiu não, dando tempo para a polícia fazer algo?".

A polícia está fazendo o certo
Quando se está lidando com um tomador de reféns que já cedeu - ele libertou uma das crianças - quer negociar - ele já fez vários pedidos - e conversa com as pessoas sequestradas sem maltratá-las (ele explicou aos reféns por que queria ser levado ao fórum e não à delegacia), a saída, a melhor saída, é sempre esperar e negociar. O contato próximo e longo entre o sequestrador e os sequestrados pode, inclusive, levar à chamada "Síndrome de Estocolmo", que, para a maior parte dos especialistas, é positiva na situação crítica, já que leva a uma atitude de proteção recíproca entre as vítimas e o criminoso.

Nos EUA, onde se respeita muito cada vida de refém, a doutrina policial é a da negociação longa, só interrompida caso haja risco insuportável à vida dos reféns (por exemplo, se o sequestrador começa a atirar neles). O Brasil, em teoria, segue essa corrente - a única compatível com nosso sistema de direitos e garantias constitucionais. A oposta, é a doutrina russa, da supremacia do interesse público, que, na prática, diz "nós não negociamos com bandidos". O resultado dessa doutrina ficou magistralmente demonstrada no Teatro de Moscou, em 2002, quando a polícia secreta russa (FSB), numa operação fulminante, invadiu o teatro, ocupado há três dias por guerrilheiros chechenos, no qual faziam cerca de 700 reféns. Utilizando gazes venenosos - a princípio para botar todos para dormir - a operação resultou na morte se 118 reféns. E na morte dos sequestradores, claro.

Mas essa idéia de não negociar com bandidos não levou à nada. Dois anos depois, os agentes do terror tomam a escola russa de Beslan, onde 250 pessoas morreram após a invasão da polícia.
Portanto, demore o que demorar, a melhor coisa a fazer é negociar.
Mais vale uma negociação morna, ainda que irritante aos telespectadores, do que um fantástico espetáculo de sangue alheio.

24.4.07

O direito do juiz e a moral do rabino

Por vezes se acredita demais na força das normas jurídicas como modo de regulação social e se esquece que, felizmente, a sociedade não conta apenas com o direito para proteger-se dos que fogem às suas regras explícitas. A religião, a moral e o desejo de manter uma boa reputação na sociedade fazem, ainda hoje, a maior parte do trabalho do controle das condutas anti-sociais. Basta pensar que apesar da ineficácia investigativa de nossas polícias e da dificuldade de punir criminalmente alguém (quando observados todos os critérios de um processo jurídico regular, é claro!) a maioria absoluta das pessoas não está disposta a enveredar pelo caminho da criminalidade.

Muitos contestariam o final do parágrafo acima sustentando que as pessoas normais costumam sonegar impostos, comprar DVDs piratas, apostar no jogo do bicho, dirigir após doses excessivas de álcool, ter engaiolados pássaros nacionais sem o devido aval do IBAMA, contar piadas racistas, enfim, praticar inúmeras condutas definidas como crimes pelo nosso ordenamento penal. No entanto, esse praticar condutas criminosas pela lei sem se sentir culpado só reforça o que foi dito acima: a satisfação que a maioria de nós se sente obrigada a dar à sociedade não passa prioritariamente pelo que o direito define como crime, mas pelo que a sociedade considera imoral, vergonhoso, monstruoso. É assim que o incesto entre adultos, apesar de não ser crime para o direito, é uma proibição moral levada com muita seriedade, já que é capaz de pôr qualquer reputação no lixo. Mas nunca vi quem houvesse perdido uma eleição – nem aqui nem lá fora – por ter confessado que já experimentara maconha. Isso significa que mais vale um crime de pouca monta na biografia do que uma imoralidade séria não criminosa. Em outras palavras, para a média moral brasileira, é preferível ser um contraventor a ser um travesti.

Em termos teóricos, se sustenta mesmo que a punição penal dever ser residual, subsidiária, só devendo ser aplicada quando outras formas de regulação social não derem conta de manter no limite do socialmente razoável o comportamento das pessoas. Além disso, do ponto de vista prático, bem sabemos, a proteção penal é para ser utilizada quase que exclusivamente pelos mais poderosos contra os mais pobres; não sendo, portanto, eficaz contra membros das classes mais altas, cuja conduta ou é regulada pelas outras formas de controle social – moral, religião, reputação – ou não é controlada por coisa alguma.

É que o direito não trata as pessoas com igualdade na hora de fazer suas leis. Prova disso é que ele criminaliza com grande técnica e severidade os delitos cometidos preferencialmente por “pessoas comuns” (furto, roubo, homicídio etc.) e deixa amplas brechas de impunidade quando se tratam de crimes cometidos em sua maioria por “pessoas especiais” (crimes de colarinho branco etc.). Essa tendência de se criar leis mais duras para os mais pobres e rarefeitas para os mais ricos, chama-se criminalização primária.

Nem tampouco trata as pessoas com igualdade no momento de aplicar as leis. A maior parte das polícias brasileiras, por exemplo, só tem atribuição, formação e equipamentos (quando possui) para combater delitos de rua, por isso vivem à cata de ladrões de galinha e traficantes de morro, deixando incólumes assaltantes dos cofres públicos e “financistas do tráfico”, pois que estes envolvem suas atividades ilícitas em complicadas operações financeiras, lavagem de dinheiro, contrabando internacional etc., difíceis de investigar e punir pelos métodos e leis vigentes. Assim só chegam às barras dos tribunais os criminosos mais pobres, que não dispõe sequer de recurso para contratarem um advogado de sua confiança. Some-se a isso que a maior parte dos juízes, como as pessoas em geral, sentem-se assustadas pela “cara de mal” dos criminosos de periferia (tão diferente daqueles de colarinho branco!). O resultado é o que chama de criminalização secundária: a lei penal punitiva é aplicável preferencialmente aos mais pobres.

De que devem padecer os ricos?

Um autor do passado resumiria tudo o que foi falado acima mais ou menos assim:

Os barões, os poderosos, os fidalgos, os pares do reino, enfim, as pessoas com Pê maiúsculo não devem padecer pelo direito criminal. Este filho bastardo da inteligência humana, o direito penal, dirige-se exclusivamente àqueles miseráveis, que só tendo sua liberdade para oferecer em pagamento por sua velhacaria social devem com ela saciar a sede de justiça da sociedade. Mas os barões, os nobres, os fidalgos, os pares do reino, esses seres, uma vez que são feitos da matéria etérea da honra, podem perfeitamente serem punidos apenas com abalos à sua reputação ou com confisco aos seus bolsos.

Trocadas as palavras, essa é a crença dominante mesmo entre a maioria dos juristas do presente – opinião que não expressam, naturalmente, em livros ou palestras, mas sim nas petições que redigem, enquanto advogados, nas sentenças que lavram, enquanto juízes, nas denúncias que promovem, enquanto promotores. Nos congressos universitários, todos eles acham que os ricos se safam demais no Brasil; já em suas escrivaninhas, todos – ou quase todos – fazem de tudo para que eles de fato se safem.


Henry Sobel e Carreira Alvin

Muitos se perguntam: "Vai acontecer alguma coisa com esses dois indivíduos?" Se

essa alguma coisa for uma sanção criminal do tipo prisão – digo aquela real, e não a de mentirinha das carceragens VIPs – certamente que não. No entanto, outras coisas aconteceram. E não são poucas, se levarmos em conta a lógica do como devem padecer os ricos. Nesse sentido, aconteceu coisa até demais. Não conheço caso de quem tenha pagado mais por gravatas furtadas do que o rabino Henry Sobel. Ele furtou gravatas nos EUA, todo mundo ficou sabendo. Se fosse no Brasil, responderia pelo artigo 155 do Código Penal, furto:

"Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel.
Pena: reclusão de um a quatro anos e multa. "


Não daria em nada, claro. Mas, na verdade algo já ocorreu, o crime-moral pelo qual ele vai responder seria mais ou menos o seguinte:

"Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia para enrolar no pescoço.
Pena: abalo vitalício da reputação e perda do direito de lutar pelas causas em que acredita."


No caso de Carreira Alvin – que ainda está na fase do inquérito, mas suponhamos que venha a responder pelo delito do artigo 317 (corrupção passiva):

"Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem.
Pena: reclusão, de um a oito anos, e multa."


Não dará em nada, é claro. Mas, na verdade algo já ocorreu, e o crime-moral pelo qual Carreira Alvin responderá é mais ou menos o seguinte:

"Contribuir, o escritor e o juiz, de qualquer forma, para que as pessoas duvidem de sua honestidade e objetivos.
Pena: ser considerado retroativamente um mau autor, além de ser considerado um mau juiz desde a origem."

É que o julgamento moral da sociedade sempre tem efeito ex tunc: retroage até a origem. Aquele que há 10 anos recebeu uma sentença desfavorável do juiz Carreira Alvin e que já havia se convencido que a decisão, mesmo lhe sendo contrária, poderia ter sido justa, agora deve estar bradando: “Já não é de hoje que ele não é confiável!”. No caso do rabino, as belas exortações que fez, há anos, sobre o dever de honestidade, foram deslocadas nos arquivos da memória de seus fiéis para aquele lugar onde se depositam as falas dos hipócritas.

Mas não deveriam ir para a prisão? Em um mundo razoável, a prisão seria medida excepcional, apenas para aqueles casos em que o fato de o sujeito estar solto implicasse risco físico às demais pessoas. Se o risco não é físico, mas funcional, como no caso de um hipotético juiz que dá sentenças a la carte, afastá-lo do cargo já é suficiente; no caso do pastor em que as ovelhas têm medo de serem por ele tosqueadas, afastá-lo do rebanho já é suficiente. Mas no mundo como ele está, se fosse um pobre e suas gravatas não haveria remédios e psiquiatras que justificassem a conduta criminosa; se fosse um fiscalzinho de prefeitura e suas omissões interesseiras, as grades o receberiam de braços abertos e portas fechadas. Portanto tem razão a população quando diz que se não fossem quem são, os dois veriam o sol nascer quadrado por mais tempo. Mas sendo quem são estão livres da prisão, mas, algo mesmo assim ocorreu: nunca mais serão quem foram.

Bem-vindos, ex-nobres senhores da lei dos homens e de Deus, ao mundo dos que – com ou sem justiça – perderam para sempre o mérito tão longa e destacadamente cultivado. A prisão que, em situação análoga, seria o destino certo, não fossem os senhores quem são, jamais os alcanaçará. Aproveitem o mundo da tolerância 100 com os mais ricos. Logo logo estarão livres de todo esse embaraço e , então, já poderão caminhar livremente pela sargeta moral.

22.4.07

Por essa nem Lombroso nem Zaffaroni esperavam...

A foto acima foi tirada por nós, durante o 69 Curso Internacional de Criminologia, em Buenos Aires, ocorrido entre 7 e 9 de setembro de 2006. Ali aparece - terceiro a partir da esquerda - o homenageado autor: Eugênio Raúl Zaffaroni, ministro da suprema corte argentina e expressão máxima da criminologia latino-americana. Entres os temas tratados no curso, estavam o do combate a corrupção e a lavagem de dinheiro. E quem era um dos coordenadores do evento? O desembargador do TRF/RJ J. E. Carreira Alvin, ele mesmo, que aparece na foto, como o último a partir da esquerda. É claro que Carreira Alvin ainda não foi julgado, sendo apenas suspeito de favorecer contraventores em decisões judiciais, mas o fato de ele ter sido preso, durante a operação furacão da Polícia Federal, empana qualquer reputação. Tomara que seja tudo um equívoco, se não vai ficar parecendo que organizar um congresso de Criminologia em que se clamou pelo fim da criminalização dos pobres e pelo início da criminalização dos poderosos era apenas uma operação preventiva de lavagem de reputação.

21.4.07

O massacre na Virgínia Tech: o perfil do criminoso – parte II.

Os saberes de campo, construídos no calor dos acontecimentos pelas polícias e seus especialistas, e os saberes de academia, construídos a partir dos procedimentos metódicos e criteriosos nas universidades, freqüentemente competem na criação das tipologias criminosas. Policiais em geral criam terminologias operacionais, pensando em suas questões internas – “distinguir para melhor perseguir” - na autopromoção de seu trabalho – “trata-se de um maníaco, de um ser hediondo” - bem como na satisfação que devem dar à sociedade, à imprensa e à lei. Já as terminologias originadas no universo acadêmico, em tese, estão menos propensas a criar mitologias criminosas de grande apelo popular, concentrando-se mais no alargamento do saber dos especialistas acerca dos comportamentos anti-sociais humanos. Em outras palavras, a terminologia policial para tipificação de criminosos costuma ser quente, assustadora, abrangente e, por isso, facilmente aplicável, enquanto a acadêmica é morna, criteriosa e fluida demais para ser atribuída a um acusado durante o calor dos acontecimentos. Assim, por exemplo, para classificar alguém como serial killer – terminologia policial – bastam três ou mais homicídios sem motivação racional; para classificar o mesmo matador como um portador de personalidade anti-social é preciso estudar-lhe o passado (quem foi?), o presente (por que fez?) e o futuro (o que sentirá em relação aos seus feitos?).

É assim que se explica que o termo policial serial killer tenha um reconhecimento popular muito maior do que, digamos, sua tradução acadêmica: Distúrbio de Personalidade Anti-social (DPA). Diante das idéias que nos invadem a mente a partir de uma dezena de corpos humanos num freezer pertencente a um cidadão aparentemente normal – o protótipo cinematográfico do serial killer -, um eventual estudo de jovens com tendência repetitiva de desrespeito ao próximo (um dos indicativos clássicos do DPA) é incapaz de obter atenção. Por isso Hollyhood sempre preferiu a classificação policial. A propósito, desde a década de 1960 o cinema ajudou a formatar a próprio perfil psicológico do que, mais tarde, seria definido como serial killer. Quem não lembra de Psicose, de Alfred Hitchcock, em que Norman Bates, o gerente do hotelzinho de beira de estrada, mantinha o cadáver da mãe empalhado, assumindo sua personalidade para assassinar mulheres atraentes? E depois desse filme, quanta mitologia criminal se criou a partir dos personagens de O massacre da serra elétrica, O silêncio dos inocentes ou Jogos mortais?


Origem do termo
Na década de 1970, o agente do FBI, Robert Ressler criou o termo serial killer para substituir a expressão stranger killer, assassino de desconhecidos, até então utilizada para definir indivíduos que matavam pessoas aparentemente a esmo. Mais detalhadamente, um serial killer seria um indivíduo que mata três ou mais pessoas, em momentos diversos, sem que tais crimes possam ser relacionados às motivações homicidas de costume (dívidas, ciúme, vingança, ganância, desavenças pessoais, queima de arquivo, efeito de drogas). O matador serial não selecionaria suas vítimas por critérios pessoais, mas sim a partir de certas constantes sociológicas (idade, sexo, ocupação, religião etc.). Em termos psicológicos, ele manteria um controle racional de seus atos de crueldade, agindo conscientemente; seu déficit, em relação às pessoas comuns, seria apenas emocional: ausência de piedade, de culpa, de remorso.

No Brasil, um exemplo famoso desse tipo de criminoso é o do motoboy Francisco de Assis Pereira, conhecido como o “maníaco do parque”, que teria, entre 1997 e 1998, violentado e matado cerca de 10 mulheres (há divergência entre o número alegado e o número efetivamente provado de vítimas), num parque localizado na divisa entre a cidade de São Paulo e Diadema. Apesar de desprovido do estereótipo de galã, e portando apenas sua lábia, conseguia convencer as moças – inclusive universitárias – a entrarem na mata com ele, a fim de se submeterem a sessões de fotografia “em ambiente ecológico”, cujo resultado seria supostamente enviado a alguma revista de modelos. Não tardava a que essas mulheres descobrissem que a única sessão que teriam era a do mais puro terror. Condenado a 121 anos de prisão, Francisco tentou alegar que era inimputável, isto é, que não tinha consciência ou controle sobre seus atos. Extremamente atuante no caso, o promotor de justiça Edílson Mougenot Bonfim rebateu essa tese da defesa:

No caso do “Maníaco do Parque”, uma das provas de que ele podia controlar-se era o fato de que os crimes eram sempre cometidos premeditadamente em lugares previamente preparados, o que mostrava a urdidura do crime. O autocontrole se evidencia quando uma das vítimas disse que estava com Aids e ele recuou e não a estuprou. Agrediu-a, mas não estuprou. O autocontrole se evidencia, na prática, com o testemunho de uma vítima sobrevivente, atestando que, diante do perigo, ele recuara. Como promotor de Justiça entendi que o caminho era de julgar-se esse réu como plenamente imputável, por conveniência social e até para conveniência dele, porque solto colocaria em risco outras pessoas e fatalmente acabaria perecendo em razão da senda criminosa por ele eleita. (http://www.tribunadodireito.com.br).

Além dos serial killers, a polícia norte-americana costuma ainda empregar o termo mass-murderer, para descrever o indivíduo que mata pelo menos quatro pessoas, sem grande seletividade de vítimas e, em geral, no mesmo local. O caso da Virgínia Tech, nos EUA, seria um exemplo clássico. Nessa universidade, o aluno sul-coreano Cho Seung-hui matou 32 pessoas, enviando, pouco antes de se matar, vários vídeos pessoais à rede de TV NBC, em que acusava um genérico “vocês” de ser a causa de seus atos:

Vocês tiveram 100 bilhões de chances de evitar este dia, mas decidiram derramar o meu sangue. Vocês me encurralaram e só me deixaram uma opção. A decisão foi de vocês. Agora vocês têm sangue em suas mãos e nunca vão conseguir limpá-las.

Outra expressão utilizada para descrever assassinos de repetição com motivação aparentemente desconhecida é spree killer (matador impulsivo), relativo àqueles homicidas que saem por aí fazendo vítimas ao acaso, sem qualquer planejamento, atingindo aqueles infelizes que estavam na hora e local errados. O tipo foi criado para aplicar-se aquela realidade, norte-americana por excelência, do sujeito que, da janela de seu carro em movimento, dispara contra as pessoas que encontra pelo caminho. No caso do spree killer a vítima pode ser qualquer um, em qualquer lugar, sua seleção ocorre por mera casualidade.

O conto do escritor brasileiro Rubem Fonseca Passeios noturnos fornece um exemplo arrepiante desse tipo de criminoso. Na história, um bem-sucedido empresário retorna ao lar depois de mais um dia de trabalho estafante, bebe seus drinques e avisa a esposa que vai dar um passeio de carro pelas redondezas, para espairecer. Em sua caminhonete, ele circula por ruas desertas até encontrar um pedestre fácil de abater. Atropelava-o e, com muita tranqüilidade, volta para o lar. No dia seguinte, diverte-se com o noticiário que informa “mais um acidente e fuga, desta vez na rua X”. Considera então que seu dia anterior foi completo, enquanto este novo dia só se completará após seu passeio noturno.

O que se sabe sobre os serial killers?
Robert Ressler, no final dos anos 80, a partir de entrevistas com 36 matadores-seriais presos nos EUA, chegou a algumas generalizações sobre como tinha sido a infância desses criminosos:
82% tinham sido masturbadores compulsivos;
71% viveram em grande isolamento;
67% eram tidos como rebeldes;
67% tinham pesadelos constantes;
54% foram especialmente cruéis com crianças;
36% dirigiam forte crueldade contra animais.


Apesar de ser a maior sondagem direta de supostos serial killers, a pesquisa de Ressler apresenta os problemas comuns aos levantamentos feitos a partir de encarcerados. Primeiro, toma como amostra representativa do tipo (no caso serial killer) apenas aqueles que foram condenados pelo sistema judicial, cujos critérios de seleção de quem será encarcerado como matador serial constituem antes um processo político de convencimento social – com seus mecanismos implícitos e explícitos de criminalização - do que um processo de rigor epistemológico. Segundo, por isso mesmo é difícil saber se aqueles assassinos representam, de fato, uma categoria com alguma homogeneidade, a ponto de permitir comparações. Terceiro, trata-se de uma amostra significativa? Ou seja, suponhamos que esses 36 sejam de fato matadores seriais, quantos existem aproximadamente, não encarcerados, no universo dos matadores seriais para sabermos se o fato de, por exemplo, 71% terem vivido em isolamento ser um dado estatisticamente correlacionado ao tipo, ou um acidente de pesquisa? Quarto, apesar de a maioria deles ser réu confesso de muitos crimes, grande parte dessas confissões se deu depois de já ter sido decidido que pegariam a pena máxima, o que facilita, por vários motivos, a assunção de novos crimes, que dão notoriedade ao criminoso, sem lhe acarretar acirramento de punições.


Outro estudo policial comumente citado sobre o tema serial killers é o da polícia da Califórnia, cujo resumo tipológico aponta o seguinte:
Sexo: masculino;
Idade: entre 25 e 30 anos;
Cor: em geral branca;
Classe social: de todas as classes;
Inteligência: variável;
Vítimas: de forma geral são da mesma "raça" que o assassino e são dele desconhecidas (ou seja: nunca o prejudicaram pessoalmente). É comum, em alguns casos, que as vítimas representem tipos considerados pelo assassino como "imorais" (prostitutas, homossexuais), tendo ele a "missão" de "limpar" o mundo dessa presença.


Esses dados são meras sínteses estatísticas dos casos catalogados pela polícia da Califórnia. Se possuem alguma utilidade, será a de descartar alguns preconceitos freqüentemente associados a esse tipo de criminoso (em mito, feitos por pessoas com inteligência acima da média/ que fogem ao padrão típico dos criminosos violentos porque são predominantemente cometidos por pessoas acima dos 30 anos etc.).

A psiquiatria contra-ataca
Em termos psiquiátricos, o termo mais utilizado para se referir a pessoas que desrespeitam sistematicamente os direitos alheios é sociopatia, por muitos substituído pela expressão Distúrbio de Personalidade Anti-social (DPA). Os critérios para definir uma pessoa portadora de DPA não são, como nos critérios policiais para serial killers, o número de crimes cometidos, mas um padrão de comportamento relativamente estável, marcado por características como:
Comportamento invasivo e desrespeito pelos direitos dos outros;
Egocentrismo patológico;
Desconsideração pelo sofrimento alheio, incapacidade de empatia;
Dissimulação recorrente;
Grande tendência de racionalizarem seus atos anti-sociais: “Se tivessem me tratado bem, não teria matado...”;
Incapacidade de aprenderem pelo sofrimento, o que inviabilizaria sua punição em termos tradicionais;
Ausência significativa de remorso.

Acredita-se que em torno de 4% da população mundial sofra de DPA, em graus variáveis. As mulheres seriam, em tese, mais refratárias a tal diagnóstico, mas há que se destacar que o DPA foi construído justamente para classificar um padrão de agressividade masculina (agressão ativa/ violência), enquanto que o padrão de agressividade feminina costuma ser menos físico (assassinatos, lesões) e mais simbólico (ignorância sistemática de alguém, afronta verbal, afrontas à honra). Isso talvez explique por que apenas 1% das mulheres seriam portadoras de algum grau de DPA. Menores de 18 anos não recebem diagnóstico de DPA pois, por definição, essa classificação só se dirige a adultos – o que não significa que certos menores não possam apresentar todas as características de um portador de DPA em grau máximo. Apenas, por cautela humanista, evita-se classificar o menor de forma tão forte e precoce. Igualmente têm sido sugeridos cuidados com as variáveis classe social e cultura ao se diagnosticar casos de DPA, pois em muitos lugares, situações e formas de vida, uma boa dose de agressividade e capacidade de dissimulação são requeridas como estratégia de sobrevivência; portanto, o contexto de onde provém o paciente deve ser parte integrante de seu diagnóstico. Num ambiente onde os outros assaltam com demasiada constância os direitos e espaços alheios, é compreensível que esses alheios se tornem reativamente agressivos e dissimuladores, que pensem em si primeiro, que se sintam vítimas quando agridem. Mas, os graus de agressão notórios, como os perpetrados pelos ditos serial killers seriam de difícil compreensão ainda mesmo neste contexto.

O monstro do espelho
Como se vê, as classificações espetaculares das policias servem a roteiros cinematográficos, enchem nossa mente de medo, reacendem fantasias de pavor, e nos fazem valorizar, ainda mais, o trabalho da polícia aos moldes tradicionais: caçadores de monstros.
No entanto, é difícil negar que, não raras vezes, no plano prático, a “psicologia de polícia” é de extrema utilidade. Anos e anos trocando tiros com todo tipo de pessoas, numa profissão em que o processo de seleção natural ainda está muito próximo dos tempos ancestrais – falhou, morreu -deve ter depurado a inteligência das organizações policiais, a ponto de que seus modelos de compreensão e intervenção, em horas de crise, mesmo com todos os seus lugares-comuns, tenham se tornado extremamente funcionais. Certa vez perguntei a um conhecido psiquiatra das condutas agressivas sobre o que fazer diante de um tomador de refém, sobre como ele encaminharia o processo de negociação e coisas do gênero. Ele respondeu sem peias: “Eu chamaria o negociador da polícia.”
Já as classificações psiquiátricas na medida em que tentam fugir de generalizações estereotipadas, que se enchem de cautela, têm servido como poderoso instrumento de compreensão humana, de superação de preconceitos, na medida em que mostram que a diferença entre o monstro e o médico é apenas de grau, e não de essência. Por isso, todo médico ligado à violência, todo criminólogo, e também todo policial, deveria ter gravado nas paredes de seu cérebro a advertência de Nietzsche: “Não enfrentes monstros sob pena de te tornares um deles, e se contemplas o abismo, a ti o abismo também contempla”. Serial killer, sociopatas, mass-murderer, spree killers, tanto quanto os ditos santos e sujeitos éticos são, de alguma forma, espelhos de nossa própria alma humana.

19.4.07

O massacre na Virgínia Tech: o perfil do criminoso – parte I.

O assassinato em massa ocorrido na Universidade Virgínia Tech, nos EUA, em 16 de abril de 2007, resultando em 33 mortes, nos reconduz àquelas célebres questões acerca do perfil do indivíduo capaz de um ato de tamanha gravidade. O que Cho Seung-hui, de 23 anos, um sul-coreano que se criou no estado da Virgínia, tinha de diferente das pessoas ditas normais e que possamos utilizar como ponto de partida para compreender, ainda que parcialmente, o fato de ele ter matado tantas pessoas e, em seguida, matar-se a si mesmo. Algo tem que ser encontrado.

E então surgem as disputas entre especialistas do crime (policiais, juristas criminólogos), da violência social (sociólogos, antropólogos), da personalidade (psicólogos, psicanalistas, psiquiatras), da alma (teólogos, esotéricos) e das generalidades (jornalistas, políticos, “pessoas comuns”) pela apresentação da explicação mais coerente do triste evento. Atribuem-se razões (“Esses são, em suma, os motivos que teriam levado Seung-hui ao assassínio coletivo.”), emoções (“Provavelmente seu namorado gorado com uma tal de Emily deve ter desencadeado o surto assassino.”), patologias (“Trata-se de um portador de distúrbio de personalidade anti-social.”), facilidades (“Se o estado da Virgínia não fosse tão permissivo em relação à compra de armas isso jamais teria ocorrido.”), racialidades (“Enquanto presidente da Coréia do Sul, estou chocado e peço desculpas ao povo norte-americano”), escatologias (“A Bíblia já previa que atos como esse abundariam no final-dos-tempos.”).

Em comum, as diversas hipóteses explicativas acima apresentam apenas dois pontos: primeiro, foram feitas às pressas para satisfazer às demandas da mídia; segundo, foram feitas às pressas para salvar os seres humanos de si mesmos, da dura constatação de que aquele que comete um ato de tal magnitude criminosa pode não ter razões, emoções, defeitos ou doenças especiais; pode ser apenas alguém – igual a mim e a você – mostrando do que um ser humano normal é capaz. Recorrer à anormalidade ex post facto de Cho Seung-hui, isto é, descrevê-lo de trás para frente como um indivíduo perigoso desde de tenra idade, é um artifício fraudulento para poder dizer que o que falhou não foi o ser humano em geral, com sua inegável potencialidade criminosa, mas nossos métodos psiquiátricos, pedagógicos, sociais ou religiosos. Mas a realidade é que mesmo que houvesse mais escolas, mais afeto, mais psicólogos, mais freqüência à missa dominical, mais políticas públicas de inclusão, menos armas de fogo disponíveis, ou menos foras de namoradas ainda assim não é possível dizer se não haveria a tragédia no campus universitário. Nem a ação correta das instituições, nem o caráter expresso da pessoa, ou mesmo sua biografia, pode dar à humanidade garantia plena de que sob o uniforme escolar, a batina, a toga, o terno ou o tailleur não se encontra a crueldade pronta para explodir. Se os cho seung-hui, os maníacos dos parques, os lau-laus, os padres-pedófilos ou os religiosos com manias desonestas fossem tão diferentes assim do resto da humanidade, fossem anormais de alguma forma, não se teria facilitado a eles a posse das armas, das vítimas, do dinheiro ou das gravatas.

Há séculos a humanidade vem tentando “anormalizar” o criminoso, dizer que ele não é um de nós, que é um selvagem, um bárbaro, um monstro, um doente. Para podermos continuar confiando uns nos outros é necessário crer que um criminoso é uma espécie de alienígena que circula entre nós disfarçado para melhor preparar o bote. É difícil aceitar a ausência de uma diferença ontológica, de essência, entre o criminoso e o cidadão normal. No entanto, a única diferença realmente existente entre o indivíduo normal e o indivíduo criminoso não está em que tipo de pessoas são, mas naquilo que em determinado momento fizeram. Se Cho Seung-hui tivesse morrido uma hora antes dos disparos num acidente de automóvel, a Universidade da Virgínia decretaria o luto por “um valoroso imigrante e uma vida honrada”. Moral da história, em termos bem simplórios: ninguém é do mal até fazer algo mal, e os maiores “monstros” da história da humanidade gastaram menos de 1% de sua vida fazendo coisas diferentes de nós – perversas mesmo – no mais, acreditemos ou não, eram a nossa cara.

Cesare Lombroso, pelos idos de 1876, discordaria do que disse acima. Para ele, um criminoso – pelo menos o criminoso nato – não teria a nossa cara coisa nenhuma. Seria mais feio, parecido com aqueles miseráveis que encontrou nas prisões do sul da Itália. Ele foi capaz, inclusive, de descrever as características anatômicas típicas de quem é suscetível ao crime: assimetria facial, dentes irregulares, maxilares proeminentes e nariz torto. E acrescentava ainda: “Marro observou que 7,8% dos criminosos têm as orelhas em abano. Já eu observei tal característica em 38,7%, enquanto que, entre os normais, não encontrei mais que 20%.” Como seria bom se o criminoso pudesse ser reconhecido por um sinal na face! Os antigos gregos que, por razões óbvias, não conheciam as “descobertas” de Lombroso, preferiam marcar eles mesmos a face dos criminosos, a ferro e fogo, dotando-os de tatuagens na testa, que indicavam tratar-se de indivíduos que, apesar da aparência normal, já haviam levado outros à desgraça. Era uma forma de suprir esse “defeito” da natureza consistente em não sinalizar claramente aquele humano que nos infernizará a existência.

A “cara de bandido”, como se vê, é invenção recente e incapaz de nos proteger dos cho seung-hui. Mas não se pense, por isso, que é invenção desprovida de qualquer utilidade prática. Se ela não serve para detectar possíveis criminosos, ela serve para criminalizar determinadas pessoas que, por razões genéticas e/ou sociais apresentam-se ao imaginário social como sendo as mais capazes de barbarizar a vida alheia. É assim que, no Brasil, negros serão mais investigados pelo sistema de justiça; pobres terão mais vezes contra si a presunção de culpa, enquanto que pessoas brancas e de alta classe gozarão, até que se prove, em última e quase infinita instância, que não são inocentes. No contexto norte-americano, após o 11 de setembro, se Cho Seung-hui fosse um árabe, é possível que as autoridades tivessem evitado a tragédia. O FBI e a CIA, auxiliados pela competente equipe do CSI, já haveriam de ter detectado sua periculosidade atávica. Mas, diante de um membro da amiga Coréia do Sul, um sujeito com cara de nerd, não era um caso para maiores preocupações. E enquanto Rambo dormia, seu imitador coreano barbarizava na universidade.