30.10.07

Sobre o aborto e o crime

I. O dever de tomar posição

Muitas vezes classificamos uma questão como polêmica unicamente por não desejarmos, naquele momento, emitir uma opinião decisiva sobre o assunto. Isso pode ocorrer nos casos em que, apesar de possuirmos uma posição definida, tememos que os outros nos desaprovem por expressá-la. Noutras vezes, qualificamos de polêmica uma questão sobre a qual não temos informações suficientes, ou sobre a qual não refletimos o bastante, querendo com isso mantermos suspenso nosso juízo, até que nos sintamos em condições de emiti-lo. Se no primeiro caso verificamos certa covardia moral: pensamos diferentemente dos demais, mas não queremos que eles saibam disso; no segundo, temos uma atitude de clara prudência intelectual. Destarte, quem pretende opinar sobre temas controversos, melhor que se esclareça antes, sob o risco de acabar dando vazão a toda uma série de ignorâncias, disfarçada sob a forma de argumentos.

Há ainda aqueles para os quais nada neste mundo é polêmico: tudo tem uma resposta direta, objetiva e correta. É o grupo formado pelos que, em regra, não pensam a partir da própria cabeça: terceirizam suas opiniões a uma doutrina, igreja ou filosofia. Quando se lhes pergunta o que acham disso ou daquilo, eles não têm palavras próprias, escondendo-se por detrás de citações alheias, - seja da Bíblia, do filósofo da moda ou da tradição a que, justamente para não se darem ao trabalho de pensar, filiaram-se. Para esse grupo, tomar posições é coisa para Jesus, Wittgeistein, Freud ou Maomé; somente os “iluminados” possuem o monopólio da emissão correta de juízo, só restando aos demais juntarem-se ao rebanho e deixarem-se conduzir. Nem mesmo nas lacunas de seus pensadores-idolos, os discípulos da mente alheia ousam pensar em nome próprio. Preferem dizer que “O que Jesus diria nesse caso é o seguinte...”, “O que Freud, se vivesse hoje, provavelmente diria é...”, - em suma, preferem advinhar a opinião alheia a ter que expressar uma própria.

Feito lacaios que julgam sua própria importância pelas riquezas do patrão a que servem, o sujeito que imagina estar isento de pensar porque outros melhores já o fizeram, só serve mesmo para recolher as migalhas restantes do banquete daqueles que não renunciaram a mais nobre das características intelectuais: tomar como seu dever pessoal – e intransferível - o esclarecimento dos dilemas que afligem sua época. E é essa obstinada pessoalidade, esse estilo inconfundível debruçado no debate dos problemas humanos que fazem o leitor se deliciar com um Montaigne, um Cícero, um Nietzche ou um Peter Singer. Lê-los, certamente é correr o risco (elevadíssimo!) de mudar de opinião – e, no reino do espírito, nada pode ser mais excitante do que sair com a ignorância ferida por um esgrimista de primeira linha. Mas se terá obrado mal se, caindo em tentação e preguiça, emergirmos de tais leituras não com as próprias opiniões repensadas, mas carregando, submissamente, a opinião alheia.

Não existe outro jeito, você tem que pensar com o cérebro que tem aí, - ou, então, quando alguém perguntar sua opinião, cale-se e instale no seu interlocutor as idéias do seu autor-pen-drive.

II. O aborto e seus debatedores

Dizer que a questão do aborto é polêmica é mais do que um subterfúgio para não precisarmos emitir uma opinião definitiva: “sou favorável”, “sou contra”. Ela é difícil mesmo, pois reúne e confunde, sem pena, os conceitos de vida, liberdade, moral e direito, nos seus contornos e limites últimos. Quando começa à vida? Na concepção ou com o cérebro em avançado estado de formação? A pretensa liberdade da mulher que não deseja a gravidez supera o pretenso interesse do filho em potencial? O ter assumido o risco de gravidez, quando decidiu ter relações sexuais, não faria com que a balança dos direitos pendesse para o lado do feto? E o Direito, deve se posicionar ao lado de quem? Do mais frágil? E se assim for, quem é o mais frágil relevante na relação mãe-que-não-quer-ser/criança-que-vem-vindo? Alguns dirão: “Você usa mal os termos, nem ela é “mãe”, nem “ele” é criança...” Pode ser, mas não existem nomes neutros aos entes em discussão, qualquer um que se utilize (feto, bebê, embrião, ser indesejado, nascituro, anjo, criança etc.) será prenhe de conotações políticas. Poder-se-ia, por exemplo, em analogia com o que se fez com os “velhos” (termo de descarte), denominar o ente no útero como integrante da “primeiríssima idade”, o que seria tão cheio de segundas intenções quanto chamá-lo de "pré-vivente". Conceituar os termos de uma polêmica já é, em si, posicionar-se sobre ela. Não há saída.

a) Os anti-aborto são só atraso?

Diante de um tema espinhoso como esse, é normal termos uma série de dúvidas que autorizam o indivíduo intelectualmente prudente a iniciar o debate sobre o muro, não por medo de descer, mas por acreditar que em cada lado da discussão há menos argumentos do que filiação a regimentos. Numa ala, estão os religiosos e seu conceito de vida metafísico, que associa a cada embrião uma alma, a cada alma uma missão e a cada missão um realizar-se da vontade de Deus. E como com Deus não se discute, não há o que debater, restando apenas uma resignada submissão. Nesse caso, aborto só o "natural", aquele que, muitas vezes, é o que se desejava, mas para o qual não se contribuiu. A essência aqui não é ser contra o aborto, mas não haver “culpados” em sua ocorrência.

Muitos desses religiosos sequer pararam para pensar pessoalmente a questão do aborto. Com uma pretensão absurda, inferem qual seria a “autêntica vontade de Deus” e se tornam soldados de seu cumprimento. Bem pensado, quase todas as misérias da humanidade (inquisição, nazismo, terrorismo etc.) vêm de pessoas com essa pequenez moral: que deixam de refletir sobre o que acham certo e errado (eximindo-se de sua responsabilidade pessoal) e passam a se considerar simples mensageiros da “vontade divina” ou de algum líder sedutor. Com esses indivíduos não é possível discutir, apenas rezar para que não sejam maioria no poder – caso contrário, voltaremos à Idade Média ou às casas de suplício.

Mas ao lado do rebanho de religiosos, na luta contra o aborto está também uma série de pessoas – religiosas ou não – que refletiram e acreditam que os melhores argumentos pendem para a não aceitação do aborto em regra. Afora casos excepcionais – risco de vida à mãe, anencefalia, estupro – esse é o grupo que pretende dar uma chance ao potencial futuro membro da humanidade. Por reflexão, valores e inclinação pessoais insiro-me aqui, sem, entretanto, deixar de sentir certa vertigem quando contemplo minha posição em face da alternativa, na qual se situam a maior parte de meus esclarecidos amigos. Vejamos por quê.

O argumento do risco. Ora, se os pais correram o risco de gerar um bebê – transar pode resultar nisso, minha cara amiga – e o bebê está a caminho, não é mais justo e responsável deixá-lo vir? Quem corre o risco que assuma o “dano”, se é que se pode falar assim. Objeta-se: “Essa criança indesejada, mesmo que decorrente de risco assumido pelos pais, irá comprometer-lhes o futuro!” De acordo. Mas e se, o mesmo casal, dirigindo, apaixonadamente, batesse numa Ferrari, isso também comprometeria seu futuro, não? Por que nesse caso eles têm que assumir os resultados de seu risco criado e no caso do bebê não? “Ah” – objeta-se – “o dano causado pelo acidente é muito menor do que o causado por um filho, que é para vida toda!”. Certo, mas os respectivos “bens” em comparação, causar dano a uma Ferrari ou a um potencial bebê, também são drasticamente desproporcionais... É estranho que ressarcir a Ferrari abalroada seja um dever moral e jurídico e não assumir o dever de cuidado para com o feto-conseqüência-de-risco-assumido seja reivindicado como um direito...

É de fácil compreensão o princípio jurídico segundo o qual aquele que, com sua conduta consciente, cria um risco indevido para terceiros não pode se eximir do dever de suportar os custos da materialização desse mesmo risco. Se tal regra vale para trivilialidades (“Trafegou a 140 km/h, destruiu outro carro, vai pagar”), deve valer também para direitos que envolvem a vida, ainda que nos seus iniciais desdobramentos: “Teve relações sexuais sem cuidado (assumiu o risco), gerou um feto (o resultado do risco assumido), vai ter que protegê-lo. Repare que é assim que se trata o pai-que-não-quer-ser quando, após uma relação amorosa eventual, engravida mulher indesejada. Não vai adiantar ele dizer que foi um erro, que o seguimento de tal gravidez prejudicará seu futuro, que imaginou que ela “se cuidava”. Não há saída: correu o risco de produzir prole, terá que assumi-la (Pobre Renan na mão das Mônicas da vida...). Para o homem, a regra é essa, por que para a mulher seria diferente?

Os problemas não param aí.

O argumento ecológico. É irônico que certos ecologistas queiram que aceitemos a abstração ético-jurídica do “direito das gerações futuras” (portanto não devemos extinguir as baleias, pois os nossos virtuais bisnetos têm o direito de conhecê-las), mas defendem que aqueles que já estão em parte aqui (geração presente virtual) podem ser abortados. Nossos bisnetos – que nem nasceram, se é que vão - são sujeitos de direito (“o meio ambiente é deles também”), enquanto o feto é apenas objeto para deliberação e eventual devastação alheia. Muito estranha essa lógica em que meu bisneto tem mais direito hoje (enquanto futura geração) do que quando estiver efetivamente na barriga da minha possível futura neta... Além disso, com argumentos ecológicos, alguns sustentam que o aborto seria saudável para o planeta, pois um futuro com menos pessoas é a melhor alternativa para todos (todos quem?!). Isso é dar mais importância aos chapéus do que às cabeças, pois a capacidade de suporte da vida humana na Terra (quantos humanos nela cabem?) é menos função do número de pessoas do que de nossas escolhas de vida, - até o momento baseadas no consumismo de petróleo, plásticos e perfumarias. Mudando nossa forma de vida, poderemos multiplicar, em muito, o número de humanos na Terra. Portanto, há escolhas mais sensatas para diminuir a poluição do que nos voltarmos contra a proliferação de nossa espécie.

Anencefálicos. Mas em se tratando de aborto, a estranheza é mesmo a regra. A Igreja e seu séqüito fazem campanha contra o abortamento do anencefálico (feto sem cérebro), aquele que jamais sobreviverá, por conta própria, fora do corpo materno. Aceitam que uma mãe com diagnóstico de gravidez anencefálica sofra os nove meses de gestação, com seus padecimentos e constrangimentos públicos (“para quando é o bebê?), pois ela carrega em si a tal da “missão divina”. Nesse caso, a proteção ao novo “ser” é inócua, já que ele não vingará, tornando mais do que razoável que a balança do Direito penda para o lado da gestante, cujo sofrimento é real e, laicamente falando, inútil. Uma mãe católica de um feto anencefálico pode se sentir no dever de suportar tal gravidez com espírito de sacrifício cristão, situação que respeitamos. Mas querer obrigar uma mãe não religiosa a passar o mesmo calvário é mais do que falta de caridade: é importunação invasiva ao direito de crença e liberdade alheios.

Filhos de estupro. E enquanto com seus lobbies, religiosos tentam evitar a legalização do aborto do anencefálico, por ser “uma obra de Deus”, deixam de citar que situação mais polêmica já se encontra em nossa legislação: o aborto autorizado decorrente de estupro. De um ponto de vista de moral religiosa, aceitar o aborto do feto viável porque seu pai agiu criminosamente, parece ser desconsiderar as “linhas tortas da escrita divina” e aceitar que o filho pague pelos pecados do pai. Quer a mãe esteja ou não sofrendo, de maneira insuportável, com a gravidez proveniente de uma relação forçada – que pode ter sido com o ex-namorado -, seu bebê, por estar amaldiçoado na origem, não merece a menor proteção jurídica? Uma saída para esses casos, ainda na seara religiosa, desde que constatadamente o sofrimento da mãe-vítima não seja insuportável, não seria esperar que o bebê nascesse para, então, dá-lo em adoção? Como os religiosos – tão cheios de argumentos em favor do anencefálico – justificam sua inércia nesse ponto?

De nossa parte sustentamos que, embora a presunção de legalidade deva oscilar, em situações de estupro, no sentido da vontade da mulher, deve-se lembrar, também, de que há casos cujas circunstâncias da relação não consentida, bem como a personalidade dos envolvidos, não autorizam, de per si, a presunção de que o feto gerado seja apenas um “produto de crime”, que poderia, então, ser destruído sem mais. É preciso desvendar, em cada caso, as devidas gradações de constrangimento e sofrimento, que vão desde um nível insuportável (num verdadeiro estado de necessidade psicológico: ou sacrifica-se o feto ou a mãe se destrói) até casos bem menos dramáticos, que possibilitam saídas menos drásticas.

É claro que no caso do estupro a mãe não assumiu o risco da gravidez, razão pela qual o poder de escolha lhe deva ser dado. Nessa situação, por óbvio, também não há que se falar da participação do pai nessa decisão, pois alguém não pode reivindicar direitos decorrentes de seu crime.

Mas num país em que os religiosos são tão ativos contra o aborto de fetos clinicamente inviáveis, chama a atenção seu silêncio em face do aborto dos fetos “moralmente inviáveis”.


b) Os pró-aborto são os mais avançados?

Do outro lado da linha, encontram-se os “moderninhos”, que, afora as exceções de praxe, costumam ser tão alienados quanto os religiosos, pois sua posição não deriva de melhores argumentos, mas de uma filiação estética aos grupos de vanguarda. Situam-se aí aquelas pessoas cuja cabeça é o amálgama de uma pitada de psicanálise, meio livro de Foucault e 200 horas de canal GNT. É a turma dos que pensam que ter uma posição ética avançada é o mesmo que se posicionar do lado “mais moderno” da questão. Não custa lembrar que, em ética, não interessa muito para que lado você penda, o que interessa é que seus argumentos em prol da posição escolhida sejam válidos, universalizáveis e auto-retornáveis. Em outras palavras, exige-se que seus argumentos não decorram de falta de esclarecimento ou de confusões lógicas, mas que derivem do uso da razão aliada a uma ampla base de dados e, finalmente, exige-se que, num debate ético, ninguém defenda posições que não aceitaria como justas para o seu caso em particular (aquele que considera que fora um dever de sua mãe levar até o fim sua gravidez demonstra impostura ao defender o aborto). Emitir uma opinião ética é como jogar uma pedra para cima e ter coragem suficiente para não sair de baixo.

Vejamos as pedras que, ultimamente, têm atirado os moderninhos.

Primeira: dizem que o aborto é um direito exclusivo da mulher. Para pagar a pensão, levar ao colégio, educar e assumir os traumas, o filho é de ambos os pais, mas para decidir sobre seu nascimento é só da mulher? Sei... Ora, quem disse que a mulher gera o filho sozinha? Objeta-se: “Mas muitas delas criam os filhos sozinhas!” Tal situação é verdadeira e, certamente, está errada, mas é mais fácil consertar isso do que autorizar o aborto como uma forma de compensar a ausência de responsabilidade do pai. Se dois devem ser responsabilizados pelo bebê nascido, dois devem ser chamados a opinar sobre o cancelamento, por aborto, de seu nascimento, - salvo, por óbvio, quando este decorrer de imperiosa recomendação médica.

E se a mulher quiser abortar e o homem não? “O corpo é dela”, dirão. Ora, já falamos que ao voluntariamente optar em manter relações sexuais com o agora pai, ela assumiu o risco de engravidar; portanto – afora o caso de estupro ou fraude –, sua barriga está sendo utilizada em decorrência de ação voluntária dela própria, - se queria seu corpo fora disso, não deveria ter-se exposto ao risco da maternidade. Mas se engravidou, – tenha sido por desejo, imprudência ou “acidente” - e o futuro pai diz que quer o filho, deve ser obrigação da mulher levar até o fim a gestação, como decorrência do direito à vida do nascituro, associada ao risco voluntariamente assumido pela mãe. O corpo é da mulher, é verdade, mas o corpo em formação dentro de si, não.

Suponhamos um exemplo extremo: Uma mulher engravida, sendo a criança muito desejada por ambos os pais. Mas eis que, no curso da gravidez, eles se separam e a mulher, em ato de vingança, pretende o aborto. Pergunta-se: juridicamente, se o aborto fosse legalizado, não haveria nada que esse pai pudesse fazer para dissuadir a mulher de sua torpe vingança? Ora, já não costuma ser arbitrada ao pai, judicialmente, – em nome da futura criança – a obrigação de alimentar a gestante se esta, em função da miséria em que se encontra, não tem condições de alimentar-se de acordo com o requerido para a sua saúde e a do bebê de ambos? Se o pai tem o dever de sustentar seu filho mesmo antes do nascimento, deve ter o direito de preservar-lhe a vida em qualquer fase da gestação.

Quando à discussão acerca de “quando começa a vida”, ela pode ter um grande interesse científico, mas eticamente têm se convertido em toda sorte de sofismas. Favoráveis ao aborto, em geral, gostam de ser também avançados em termos ecológicos, e então nos pedem para que cuidemos das formas mais elementares de vida na Terra, falando de seu valor intrínseco ou funcional na Natureza. Mas quando tratam de sua própria espécie, querem um conceito de vida cheio de limites e outros senões. É certo que não sabemos determinar com exatidão o momento em que começa a vida humana, mas, como é comum em nosso Direito, sempre que não sabemos algo com exatidão, presumimos uma resposta em benefício do mais vulnerável: in dúbio pro reo, in dúbio pro mísero, in dúbio pro operário, por que não in dubio pro vida? Por que presumir em favor do feto? Pela simples razão de que se estivermos errados quanto ao início da vida, e fizermos a gestante arcar com os nove meses da gravidez, que poderia ter sido interrompida quando o feto ainda não tinha vida, ela terá perdido praticamente um ano de vida não-grávida; isso é lamentável, pois cada um sabe dos transtornos que isso acarreta. Mas e se estivermos errados quanto ao início da vida, acreditando que ela ocorre mais à frente do que realmente é correto, e cancelarmos a vida de um novo ser, como quantificar – e reparar - tal prejuízo? Ora o fato de que jamais ficaremos sabendo de tal prejuízo (fetos não berram) não é motivo para não nos atormentarmos com tal possibilidade. Na dúvida, fiquemos com o lado cujos possíveis prejuízos são irreperáveis.

Mas isso é pouco em face do novo modismo pró-aborto.

Baixando o crime na clínica. A nova onda pró-aborto é insuperável: querem utilizá-lo para baixar a criminalidade. O governador do Rio acha que isso deva fazer parte de um pacote amplo de soluções em segurança pública. Numa cidade como o Rio de Janeiro, isso deverá significar uma política de redução de custos operacionais: ao invés de matarmos os filhos adolescentes dos mais pobres, não deixaremos sequer que essa espécie de gente procrie. Será que surgirá o departamento de obstetrícia do Bope? Aí logo um honesto capitão Nascimento (nascimento?!) dirá: “Feto favelado bom é feto favelado morto.” (Será que o aborto-padrão será com a “touca”, aquele saquinho de plástico na cabeça?). Os homens de preto substituirão os de branco nas maternidades? E assim, ao invés de se investir em saúde e educação, investir-se-á na eliminação de futuros pacientes e estudantes. Solução mais econômica impossível! Poderíamos também criar uma mutação do vírus ebola que só atingisse gente da zona norte! As possibilidades são tantas...

“Mas as estatísticas internacionais mostram uma relação entre aborto e queda da marginalidade”. Isso é discutível mesmo nos EUA. O artigo de Steven Levitt que deu origem a essa polêmica (muito mal explicado em Freakonomics, que é de onde os “especialistas” retiraram a idéia) enumera vários fatores que teriam contribuído para diminuir o crime nos EUA na década de 1990. Entre eles estão o aumento do efetivo policial, a estabilização do mercado de crack, o aumento da população carcerária e a legalização do aborto. Mas lembremos o contexto ideológico do artigo de Levitt: os Republicanos atribuíram à política de “Tolerância Zero” à queda vertiginosa na taxa de homicídios em Nova York, durante a administração Giulliani. Levitt, que é um intelectual democrata, construiu toda uma argumentação para tirar o mérito da Tolerância Zero, sustentando que a criminalidade só baixa por motivos “liberais”, como o aborto.

Objeta-se: “Não interessa quem ele seja, o que interessa é que utilizou estatísticas para fundamentar seu pensamento, não usou?” Mais ou menos: ele usou as estatísticas com as quais simpatizava. Por exemplo: dos anos de 1980 para os 90, quando há a queda na criminalidade, a pena de morte nos EUA praticamente quadruplicou em número de execuções. Teria ela alguma relação com essa baixa? Por ser uma agenda republicana – a pena de morte - Levitt preferiu não analisá-la. Em suma: é possível que mais abortos seja igual a menos crime (faltam dados conclusivos), mas seria pelo fato de que bebês indesejados enveredam mais para uma vida criminosa? A explicação não parece muito mecânica? A principal causa do crime teria sido descoberta e isolada? E é a gravidez indesejada? E, então, inversamente, os garotinhos muito esperados, nascidos em berço de ouro, esses serão os futuros líderes da nação?
Até Lombroso desconfiaria dessas relações.

Pode-se ser, sensatamente, contra ou a favor do aborto, mas não vejo como fundamentá-lo enquanto tecnologia de extermínio de criminosos presumidos. Sim, porque a política é para os pobres (desde quando as classes mais abastadas no Brasil dependem da lei do aborto – ou de qualquer lei - para fazerem o que querem?). O pré-natal não chega até à moça pobre, a informação anticoncepcional também não. O aborto chegaria? Por onde, pelo SUS? Ou pelo BOPE?

Para evitar o alegado risco trazido pelos indesejados filhos da pobreza, há modos mais eficazes e menos polêmicos: educar as meninas das comunidades pobres – se elas tiverem perspectiva e informação, saberão planejar sua vida e não se encherão de filhos antes dos 20 anos. Distribuir eficientemente anticoncepcionais e preservativos.
E quanto aos filhos indesejados (para as mães ou para o Estado?) que ainda assim teimarem em nascer? Não há solução mágica. Se queremos reduzir o risco de que concluam que uma vida honesta neste país não vale a pena (levante à mão quem nunca se interrogou sobre isso), precisarmos lhes dar creches e retirar as balas “perdidas” do entorno de suas orelhinhas: quem é embalado pelo zunido de tiros, pela lógica, deveria mesmo se tornar bandido, mas – milagre brasileiro – a maior parte desses sobreviventes de guerra (que nem mesmo têm reconhecido o direito de desenvolverem traumas), levará uma vida tão miserável quanto decente.

O que está sobrando nessas comunidades não são crianças, mas bandidos, policiais violentos e balas, muitas balas.

Em suma, sou muito a favor de discutirmos o tema do aborto. Em regra sou contra sua generalização, mas aceito os bons argumentos dos que pensam diferentemente. Mas, sob hipótese conhecida alguma, concordo em usá-lo como forma de política pública de extermínio às responsabilidades dos Estados.

Antes se discutia se o feto tinha vida, agora se discute se ele é criminoso. Mais um passo à frente e surgirá uma lei dizendo que os bebês indesejados nascidos no Brasil só poderão deixar a maternidade sob autorização judicial. Um último passo à frente e chegaremos ao inferno.

10.10.07

A ocasião e o ladrão

É clássico o entendimento de que um ato delituoso costuma resultar do encontro entre uma pré-disposição criminosa e a oportunidade de transgredir. Segundo tal idéia, não estaria totalmente correto nem o adágio popular acerca de que “a ocasião faz o ladrão”, nem a idéia determinista de que a oportunidade apenas permite a realização de um crime preexistente na mente do futuro criminoso. Não. O crime resultaria tanto de uma ocasião favorável à sua ocorrência quanto da pré-disposição criminosa. Em termos gerais, essa teoria parece estar correta. Mas tem suas limitações.

Por vezes, a oportunidade é a própria gênese da idéia criminosa. Se não houvesse a tentação, não haveria o pensamento delituoso. Essa é a razão porque no Brasil proíbe-se a prisão decorrente de “flagrante preparado”: ardil em que policiais criam situação artificial e tentadora, capaz não apenas de acirrar, mas (acredita-se) de incutir no suspeito a idéia de delito. O caso típico é aquele em que disfarçados agentes da lei oferecem droga a um indivíduo, dando-lhe voz de prisão caso aceite a capciosa proposta. A dúvida é se, com tal operação, os policiais prenderam um criminoso ou o produziram. No reino das possibilidades, não é impossível que aquele indivíduo – não tivesse havido a sugestão dos policiais – jamais faria contato com o mundo das drogas.

Numa tradução galante do flagrante preparado, desconfiados cônjuges, com o intuito de medirem a fidelidade de seus parceiros, contratam pessoas belas para que tentem seduzi-los. Se tal ocorrer, seria revelado o “verdadeiro caráter” do abordado parceiro: desde sempre à espera de uma oportunidade de transgredir o dever de fidelidade. Mas tal avaliação é justa? A fidelidade, ou a honestidade, é algo que se tem – ou não - em grau absoluto? Ou é algo que denota a forma habitual com que o indivíduo lida com oportunidades tentadoramente proibidas? Em outras palavras, dadas as contingências da vida humana, podemos exigir que as pessoas se filiem a valores de forma absoluta, independentemente das circunstâncias? Ser reprovado num teste desses revela mais o caráter do indivíduo do que todo o resto de sua trajetória de vida?

Os latinos tinham um ditado que dizia: “virgem porque não cantada”. É impossível sabemos o número de pessoas que se mantiveram castas, ou honestas, não por disposição férrea de assim permanecerem, mas por lhes terem faltado oportunidade de transgredir. A Bíblia narra que mesmo a Jesus foi difícil vencer as tentações. A moral da sagrada história parece ser a de que se venceu, venceu porque era Deus. “Disse-lhe Jesus: também está escrito: não tentarás o Senhor teu Deus (Mt 4,7). Humanos dificilmente rejeitariam as propostas feitas a Cristo. Isso indicaria que, longe das hostes celestes, por vezes, a ocasião pode fazer o ladrão.

Mas é claro que nem todos cedem a qualquer oportunidade tentadora e proibida. Parece mesmo haver pessoas decididas a não delinqüir, mesmo quando isso lhes parece fácil e sumamente desejável. Há consciências e consciências. Porém, a experiência das quedas na iluminação noturna de certas cidades mostra a existência de uma potencialidade social latente para o crime. O blackout ocorrido na cidade de Nova Iorque, em 1965, deixou claro, por exemplo, que o elevado número de crimes cometidos durante esse histórico apagão não poderia ser atribuído apenas aos delinqüentes habituais. A estes se somaram delinqüentes de ocasião. Animados pela certeza de que a escuridão os deixaria impunes, cidadãos normais assaltaram, pilharam e estupraram.

A partir disso, podemos dizer que a taxa de honestidade social é formada tanto pela adesão voluntária daqueles que, sob qualquer situação, procuram ajustar sua conduta à lei, quanto pela abstenção daqueles que, por absoluta falta de oportunidade delitiva, se mantêm honestos. Nesse sentido, uma moça andando com roupas provocantes numa rua deserta não deve temer apenas o improvável encontro com alguém que – desde sempre – seja um desajustado sexual. Deve temer também estar provocando uma situação favorável à produção de um episódico desajuste num transeunte até então não criminoso. Muitos dirão: “isso é culpar a vítima!” Não. O fato de a vítima ter involuntariamente contribuído com sua vitimização não é uma forma de desculpar o agressor – sobre quem a resposta legal há de se fazer sentir. É sim uma forma de mostrar a vítima que um infortúnio criminoso não é sempre inevitável, permitindo que tragédias pessoais não se repitam.