24.5.08

Em um momento de necessidade

A propósito, você sabe como se faz foie-gras?



- A entrada? O chef recomendou foie-gras. Eu já falei com a importadora e eles não têm o Château Montus Cuvee Prestige da safra que você recomendou, querido. Eu sei que o sommelier insistiu, peça pra ele ligar pra lá e ver o que pode ser encontrado a tempo. Meu amor, o seu assessor pode esperar mais uns minutos, não vai morrer por causa disso e esse jantar está me deixando maluca. Quem é que nós vamos colocar ao lado do Senador? A Júlia? De jeito nenhum, ela é muito inconveniente... Não, eu não vou contratar um cerimonial, não confio nessa gente pra uma noite tão importante. É o futuro da nossa filha que está em jogo.

Lourdes quase não escutava a enxurrada de palavras da patroa, absorta que estava em seu drama particular. Assim que Dona Luciana desligou o telefone, falou entristecida:

- Dona Luciana, tenho que ir embora hoje para Jequié. Papai morreu ontem, mamãe está de cama. O Joílson me deixou semana passada e recebi uma ordem de despejo...
- Lourdes, você é uma ingrata! Não acredito que você vai me deixar na mão logo agora, que estou em um momento de necessidade!




[Esse conto é do Paulo César Nascimento, amigo de longa data e autor premiado, inclusive na Europa. Seu Sutis indecências e outros encantamentos é obra-prima, mas não dessas que, pela grana envolvida e prestígio dos editores, estão na lista dos mais vendidos (e lá permanecerão até que a grana se supere em outra biografia de um ex-BBB). A obra de Paulo, não é de boutique, mas coisa de antiquário ou de brechó. É uma daquelas felizes raridades, quase incógnitas, que o leitor incrédulo acha, folheia ao acaso, compra pelo preço e, assim que lê, culpa-se só pelo vacilo que quase o levou a não comprá-lo.]

17.5.08

A praga da hipocrisia brasileira


Protesto "asqueroso" contra a visita de Bush ao Brasil. O que seria de nós se não fosse o guarda...

O Brasil é o país com o menor biquíni do mundo, mas é também o lugar onde – pasmem! – ainda se discute se o topless é ou não conduta criminosa. A questão é relevante. Quem ainda não teve sua moral assaltada na praia pela exibição de um desses pares de indecência corpórea? Quem ainda não foi vítima de uma quadrilha de jovens siliconadas que provocaram um arrastão de olhares, enquanto tudo o que queríamos era nosso sagrado lugar ao sol? Quem nos defenderá dessas moças exibidas? “Senhor Deus dos desgraçados, dizei-me Vós, Senhor Deus, se eu deliro ou se é verdade tanto horror perante os céus...”
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Enquanto a moça está praticamente nua na parte de baixo, alguns policiais, promotores e juízes estão assustados com a nudez da parte de cima. Se os mesmos seios estivessem à mostra publicamente na função tradicional da mulher – amamentar a criança – esses indivíduos os achariam lindos, seriam capazes até de chorar de emoção. Então, leitora exibida, quando for fazer topless, leve na bolsa de praia uma criança emprestada, para todos os efeitos, seus seios estão ali para alimento e não para exposição lasciva. Garanto que o irritado policial, neste caso, até carregará sua cadeira de praia. Uma segunda alternativa: ao ser flagrada pelo guardião da moral, simule um auto-exame de mama. Diga que é um trabalho social lá da faculdade: mostrar às outras mulheres como se previne o câncer. O policial, neste caso, não só carregará a cadeira, como enterrará seu guarda-sol. O problema, como você notou, não é o fato de os seios estarem nus na praia, e sim o fato de não estarem fazendo nada de útil naquele momento...
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Conta-se que um dos “anões do orçamento” (aqueles deputados que nos roubavam - coisa do passado, é claro!), levantou-se num teatro, vaiando os atores da peça porque apareciam nus. Na visão dele, isso sim era imoralidade. Onde já se viu mostrar-se pelado num espetáculo, só para adultos, às 22 horas da noite! De fato, para isso não há desculpa. Roubar o dinheiro público, tudo bem, é um esporte nacional de elite, assim como o pólo e as corridas de cavalo. É quase um costume jurídico, aquela prática reiterada – ainda que contra a lei – que é amplamente praticada e com a opinio jures necessitatis (a convicção íntima de que se deve fazê-la). Mas tirar a roupa num espetáculo, isso já é abuso de direito, é ato obsceno. Cadê o delegado?!
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O Brasil é um país contra o aborto. Até mesmo no caso do feto anencefálico (feto sem cérebro), a maioria moral quer forçar as grávidas de fetos, que jamais sobreviverão ao parto, a carregá-los durante nove meses na barriga, apenas para satisfazer as convicções dos carolas de plantão. Cadê o direito à liberdade de crença? Se a sua religião diz que ali há uma alma, tudo bem, eu respeito, carregue sua gravidez anencefálica até o fim. Mas não me force a fazer o mesmo apenas para respeitar sua visão religiosa de ser humano. Isso é violência, é imposição de credo, inadmissível num Estado laico. Estado o quê? Desculpem, agora eu me passei, essa mania de ler a Constituição anda me confundindo as idéias... Estado laico... ridículo... Se fosse só no caso de aborto anencefálico, tudo bem. Mas este país tão contra o aborto (nos discursos) é também, segundo vários estudos, aquele que mais pratica abortos no mundo. Desde que seja para “limpar a honra” da família, cuja filha engravidou fora do tempo, vale à pena falar com o médico amigo. Como pai, ele entenderá o sofrimento vivido e como aquela gravidez atrapalhará os estudos e a ida a Disney da mocinha de futuro. Aos pobres, que não tem médico de família, restam as agulhas de tricô e a morte, caso alguma complicação haja no aborto amador, já que se procurarem um hospital, o delegado é quem preencherá o prontuário. É fácil às elites serem contra o aborto no Brasil: se precisarem, elas o obterão de forma discreta e clinicamente impecável.
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A tragédia legal brasileira é justamente essa: só os pobres consultam a lei antes de fazer algo. Os ricos consultam seu bolso. Como disse o milionário americano ao seu advogado: “Eu não estou lhe perguntando o que a lei me deixa fazer. Estou lhe mandando ajeitar as coisas na lei para que eu possa fazer o que eu quero.” Claro, patrão. Só mais uma pergunta: a lei que o senhor quer é mal passada ou ao ponto? O Brasil é também contrário à pena de morte. A maioria da população se diz contra. Acreditam que a pena de morte é ineficaz para baixar a criminalidade (e de fato é). Dizem também que demora muito esse tal de corredor da morte (mas para isso, se eu bem conheço o Brasil, ligeirinho se inventaria uma esdrúxula antecipação de tutela...), dizem, por fim, que ela é desumana. De fato, somos um país humaníssimo! Não sei como a ONU ainda não nos adotou como modelo de humanidade para o mundo... Mas, quando a polícia mata atrás do camburão – sem direito à defesa, que dirá ao devido processo legal -, quando a polícia invade um Carandiru e mata 111 e outras ações de “assepsia social”, a maior parte da população, consultada pelos jornais, acredita que são ações corretas do Estado contra a criminalidade. Em suma, somos contra a pena de morte norte-americana, com essa estranha mania de deixar o acusado se defender, mas somos favoráveis a essa pena de morte liminar, administrativa, auto-executável pelo policial. Camburão da morte, tudo bem, mas corredor da morte, isso de fato é desumano.
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As contradições poderiam se alongar ao infinito. Essa hipocrisia atávica aqui reinante já foi atribuída à nossa herança latina. O historiador Carlos Fuentes lembra que enquanto na América colonizada pelos ingleses era tudo preto no branco, na América luso-hispânica era tudo no cinza. Os cowboys do velho oeste matavam índios, enforcavam bruxas e se achavam o máximo por isso. Os puritanos anglo-saxões podiam ser bandidos, mas não eram hipócritas. Matavam a cobra e exibiam o pau: “Matamos esses selvagens; enforcamos esses negros; cumprimos nosso dever”. Já nas terras latinas, matamos tantos índios quanto, surramos e assassinamos escravos negros aos milhares, mas, - que grande ajuda! - sempre tivemos muito complexo de ter feito essas coisas. A Igreja, o trono espanhol e o português tinham dúvidas sobre o que fazer com os “selvagens” (muitos os defendiam), o que fazer com os escravos e suas religiões (quem sabe liberá-los). Na prática, fomos um dos últimos países do mundo a libertar os escravos e – ah, como é típico de nós – o primeiro a se autoproclamar uma democracia racial e a dizer que não tínhamos qualquer tipo de preconceito!
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Ah, se todos fossem iguais a você, Brasil. Não existiria a verdade, verdade que ninguém vê, mas como se falaria bonito...

14.5.08

Paixão e razão

Max Weber: O Protestantismo conseguiu refrear a paixão pelo ouro, não por proibi-la (opção católica), mas ao submetê-la a uma idéia racional de missão: ser bem sucedido na Terra e moderado nos gastos seria agora uma prova de que o crente estava cumprindo o chamado (a vocação) de Deus. Não sem motivo, Weber assinalou que os países protestantes estavam entre os mais ricos.



O cavalo e seu cocheiro

Como possível guia da existência, os seres humanos possuem o atributo da razão, essa capacidade de orientar sua conduta de forma planejada, calculada e compreensivelmente adequada aos fins a que se propõem.

A posse da razão nos sugere a idéia de que, com prudência e discernimento, podemos controlar as situações em que nos encontramos, garantindo que delas surjam às melhores resultantes possíveis.

Na imagem platônica, a razão é o experiente cocheiro a guiar o xucro cavalo dos impulsos imediatistas. Por isso é que se pode dizer que uma vida racionalmente guiada é uma vida protegida daquela parte do infortúnio humano cuja causa só podemos atribuir a nós próprios. Nesse sentido, a razão é uma defesa contra o acaso preguiçoso, daqueles que se dizem vítimas das circunstâncias quando o que lhes trouxe a ruína foi uma simples falta de planejamento e autocontrole.

Quem ainda não foi exortado a “ser racional”?, a agir “com racionalidade?”. É claro que o fato de precisarmos ser mandados a agir dessa forma já indica que o uso da razão não é tão natural quanto se supõe. Pela freqüência com que complicamos nossa existência podemos até supor que a razão é de utilização apenas excepcional em nossas vidas. No cotidiano, os impulsos mais imediatos tendem a prevalecer sobre os planejamentos racionais, o cavalo comanda o cocheiro. É assim que, em febres de consumismo, as pessoas levam para casa o que não conseguirão pagar; embriagam-se e dirigem, confiando na imagem do santo que penduraram no espelho do carro; têm relações sexuais sem proteção, acreditando que “o que tiver que ser será”. Ao mesmo tempo, falta-lhes força para seguir planos racionalmente traçados: concluir o curso de línguas, manter a dieta ou ser mais paciente. Parece que, ao final das contas, a razão serve mesmo é para fazer os indivíduos sentirem-se culpados por não conseguirem ser aquilo que, em momentos de extrema calmaria do cavalo, o cocheiro lhes propôs.

A razão fracassa com tanta freqüência porque não é nosso único guia. O ser humano é um ser passional tanto quanto é um ser racional. Se a razão pretende nos conduzir para as melhores resultantes de vida possíveis, as paixões nos arrastam para caminhos que a própria razão desconhece. Por paixões estamos aqui nos referindo aos diversos tipos de obstinações (seja de pensamento, sentimento ou conduta) que nos atraem para algo, com uma pressa, maneira ou intensidade desautorizada pela razão. A paixão é, sobretudo, produtora de parcialidade, exagera na atenção que concede a um único ponto deixando os outros a descoberto, motivo pelo qual ela é tão freqüentemente associada a uma espécie de vício. Se a complexidade é a lei da vida, concentrar-se em demasia no objeto da paixão é viver de forma desequilibrada e perigosa. Sim, perigosa, porque em desaparecendo esse objeto de paixão, desaparecerá também o sentido da existência do apaixonado.

Ébrios sem bebida, dependentes sem droga, amantes sem amados, consumistas sem dinheiro, exemplos de vida em desespero.

Com um destaque todo especial ao efeito equilibrador da razão sobre a vida de cada um, os moralistas sociais sempre temeram as paixões, por acreditarem que elas são os grandes destruidores do homem enquanto ser colaborativo da sociedade. Teme-se que, sob o império da paixão, o trabalhador deixe de ser obediente ao patrão; o casto, de ser obediente aos seus votos; e o soldado, de ser obediente à pátria, pois que o apaixonado só reconhece um senhor, seu objeto passional. Daí o ancestral controle social das fontes habituais das paixões: sexo, drogas e poder. Esses três elementos não têm autorização para circularem livremente, mas apenas quando imersos em rituais que mostrem a excepcionalidade de seu emprego.

É assim que o sexo deve ser feito às escondidas, de preferência a noite, sendo considerado grosseiro perguntar as quantas anda a vida sexual alheia ou exibir suas peripécias de alcova. E duas pessoas correriam maior risco de serem vítimas de revolta popular se estivessem em uma praça praticando sexo do que se estivessem perigosamente duelando entre si. Pois o duelo não é tão contagioso quanto o sexo. O controle sobre o sexo é o reflexo do medo social de que ele seja reconhecido como tão bom que ocupe tempo demasiado das pessoas, que, então deixariam de trabalhar, estudar e contribuir socialmente. A mesma interdição que hoje sofrem as drogas, sofreu a prática da masturbação: prazeres que não trazem benefícios sociais e são de fácil contágio fazem tremer as bases da sociedade. A imagem de que todo drogado é um delinqüente em potencial se equivale, em simplismo, à imagem feita antigamente do adolescente masturbador como um degenerado. Prazeres poderosos só sob o controle social ou em momentos aceitos de quebra das regras sociais: só há carnaval porque há uma quarta-feira-de-cinzas, já previamente estipulada.


Doentes de paixão

Entre os gregos, as paixões foram vistas como algo de que se sofria, um padecimento moral e físico. É assim que se compreende que da mesma palavra grega, “phatos”, haja derivado os vocábulos passional e patologia. Paixão não se tem; paixão se sofre. Em termos religiosos, a paixão era uma espécie de possessão divina, uma forma de os jocosos deuses do Olimpo perturbarem a vida dos pobres mortais. Quem nunca soube da vida toda certinha de alguém que ao defrontar-se com uma enorme paixão caiu como um castelo de cartas? E que esse mesmo alguém, anos mais tarde, refere-se ao período em que se “libertou” daquela paixão, como o período em que se “curou”? Enquanto ele estava “doente”, nenhum dos apelos de seus amigos à razão eram suficientes. A paixão seria como um daqueles vírus sem vacina ou remédio: ao contrai-lo tudo o que se pode fazer é esperar o fim natural de seu ciclo, pois que o uso da razão em seu combate é inócuo.

O cristianismo herdou essa má vontade grega para com as paixões. Passou a considerá-las vícios de caráter, associando-as a pecados, num rol que ia da luxúria à gula. Para o cristão, uma vida racional seria aquela que, mediante a eliminação das paixões, levasse o homem a Deus. Jesus havia dado a fórmula do cálculo de uma vida racional por excelência: “De que adianta ao homem ganhar o mundo e perder a sua alma?” Aquele que acreditava em Deus e não extirpava suas paixões fazia o pior negócio do mundo: trocaria a eternidade bem-aventurada, por uns poucos anos de sucesso entre humanos. Daí, o mestre do Evangelho poder dizer com grande convicção “Perdoai-vos, eles não sabem o que fazem”. De fato, só quem não conhecesse as regras do novo jogo (que era, sobretudo, a de um cálculo de rendimentos celestes), ou fosse um completo estúpido, cederia às paixões, comprometendo os dividendos eternos de uma vida regrada.

Com relação à paixão relacionada ao sexo e ao amor, a posição cristã foi incisiva. Os santos eram castos, ou assim se tornavam ao serem convertidos, como no caso de Santo Agostinho. Melhor seria que se imitassem os santos, mas como isso não era possível (sobretudo em termos demográficos), um matrimônio estável era a solução. Se as paixões amorosas se caracterizam pela inconstância, pela troca do objeto de afeto, devido ao esgotamento das forças ou da frustração das inflacionadas expectativas dos amantes, o casamento cristão era o inverso dessa tendência: indissolúvel, exclusivista e cercado de inúmeros deveres que arrefeceriam qualquer paixão exacerbada. Se na Idade Antiga e Média, o casar-se por amor ou desejo recíproco já não era a regra, o casamento aos moldes cristãos estava aí para garantir que, quando tal ocorresse, esse “acidente” seria logo corrigido pelo dever da moderação sexual, da procriação em larga escala e pela necessidade de vigiar não apenas ações e palavras, mas o próprio pensamento. O casamento cristão é, sobretudo, uma tecnologia antipaixão.

Embora não seja um autor clerical, o grande filósofo do cotidiano Michel de Montaigne compartilhava essa idéia de casamento como o avesso de paixões. Nos seus Ensaios, de 1580, Dizia ele: “Não sei de matrimônios que mais cedo falhem e desmoronem do que os realizados à base da beleza e dos desejos amorosos; existem fundamentos mais sólidos e constantes e atilada prudência; o arroubo impaciente de nada vale... Um bom casamento, caso haja, deve recusar a companhia das condições do amor e ater-se às da amizade.

Caça a donzela

Enquanto no mercado oficial das condutas, a paixão tinha circulação proibida, no mercado paralelo valia qualquer coisa para possui-la. É assim, que em plena Idade Média, vemos o “ressurgimento” da paixão, na sua versão galante. Na medida em que casamento cristão exortava a renúncia, a fidelidade, a indissolubilidade, o cavaleiro medieval tornava-se o símbolo da paixão enquanto arte. Sua astúcia em cortejar damas proibidas, arriscando a vida por amores inconseqüentes, era uma virtude pagã na mesma medida em que era um vício cristão. Nas cortes, a hipocrisia foi a fórmula para lidar com essa dualidade: cerimônias de casamento cada vez mais pomposas, com a multiplicação das testemunhas do solene ato, disfarçavam a circulação cada vez mais corrente da infidelidade elevada à categoria de arte.

Séculos mais tarde, indignados com o racionalidade rígida do Iluminismo, membros do movimento romântico converteram a paixão no próprio sentido da vida. Alguns acreditam que só se vive bem quando se vive de forma apaixonada. Há, então, a criação de uma estética do sofrimento passional. As paixões nos levam à ruína, é verdade, mas a paixão, em particular a paixão amorosa, nos leva a um sofrimento que redime. A aventura de seguir seus caminhos tortuosos, o risco de ser devorado pelos dragões que a protegem, a convicção de que viver bem é descobrir uma paixão pela qual vale a pena viver ou morrer, tudo isso daria à mísera existência humana uma experiência de grandiosidade. Sob o desespero da razão, a paixão amorosa tornava-se, assim, a forma sublime do sofrimento humano, em síntese: o único que valia a pena.

Isso fica evidente nos exageros românticos de Álvares de Azevedo (1831-1852), no poema Amor:

Amemos!
Quero de amor
Viver no teu coração!
Sofrer e amar essa dor
Que desmaia de paixão!

Na tu'alma, em teus encantos
E na tua palidez
E nos teus ardentes prantos Suspirar de languidez!

Quero em teus lábio beber
Os teus amores do céu,
Quero em teu seio morrer
No enlevo do seio teu! Quero viver d'esperança,
Quero tremer e sentir!
Na tua cheirosa trança Quero sonhar e dormir!

Vem, anjo, minha donzela, Minha'alma, meu coração!
Que noite, que noite bela! Como é doce a viração!

E entre os suspiros do vento
Da noite ao mole frescor,
Quero viver um momento,
Morrer contigo de amor!

Paixão e lucro
E as outras paixões, pela glória pessoal, pela riqueza, pelo poder? No geral, continuavam a receber a qualificação de condutas viciosas, indesejáveis, vis, o oposto da razão. Mas não por muito tempo. Numa verdadeira mudança de paradigma, começou a surgir por volta do século XVII um termo tido como o motivador por excelência da conduta humana: o interesse próprio. Formado por um amálgama de razão (de perseguir algo de forma planejada) com paixão (de querer algo obstinadamente), os interesses seriam logo louvados como o guia mais sensato da existência humana. O problema não estava, então, nas paixões, mas na forma irracional de guiá-las. Aceitou-se, então, que as paixões davam o impulso necessário ao progresso da vida humana (Hegel achava que uma vida sem paixão era uma vida imobilizada), mas justamente por serem de natureza impulsiva, as paixões tendiam a sugerir caminhos ruinosos para a sua obtenção, e era por isso que precisavam ser guiadas pela razão: deixe que a paixão lhe dê o objeto de afeto (dinheiro, mulheres, glória), mas transfira à razão o modo de conquistá-los e, só assim, a fortuna lhe será estável.

Em suma: nós não podemos ser guiados apenas pela razão (pois somos passionais), mas também não podemos ser guiados sem ela: descubra sua combinação ideal de paixão e razão (de interesse) e seja bem-sucedido.


Max Weber
Max Weber, na sua obra mais famosa (A Ética protestante e o espírito do capitalismo) enxergou no capitalista moderno essa junção venturosa de paixão e razão, de interesse, que o levava a acumular riquezas de forma segura e a gasta-la de forma excessivamente prudente. O capitalista queria mais e mais, só que não como seu antecessor, o aventureiro do ouro, o pirata arruaceiro, o desbravador delinqüente. Se estes conquistavam de forma espetacular e esporádica (pilhagens, pirataria, caça a tesouros), e gastavam de forma mais espetacular ainda (banquetes, bebedeiras e luxúria), o capitalista racional conquistava com método (investimentos contínuos, calculados) e gastava com excessiva discrição e prudência, já que ostentar - sobretudo entre os protestantes (os novos ricos da modernidade), seria prova cabal de um afastamento de Deus e de uma queda nas paixões, no mal sentido do termo.

O homem como ele é

O conceito de interesse nasceu da constatação, sobretudo a partir de Maquiavel (séc. XVI), de que o homem é um ser mesquinho, egoísta, passional e que sempre o será. Por mais que a Igreja exortasse a humanidade a ser boa, não haveria jeito, o homem jamais superaria sua natureza. Ele era como aquele escorpião, da fábula do lago, que após implorar que o sapo o atravessasse no rio caudaloso - sob a promessa de que não o envenenaria -, ainda no meio do trajeto pica o gentil anfíbio, que, moribundo balbucia a seu passageiro: “Grande lucro! Agora eu morrerei envenenado e você afogado”. Ao que o escorpião teria resignadamente respondido: “Sinto muito, meu amigo, mas não posso trair minha natureza”.

Por mais que o homem procurasse imitar Cristo em sua pureza (exortação católica), ele fracassaria: o veneno das paixões lhe é sempre superior. Se o cristianismo queria algo da humanidade teria que se render a essa constatação, como fez o protestantismo com a questão do lucro: ao invés de proibi-lo (como fez o catolicismo com a usura), apenas o regrou. Não havia como deixar o escorpião humano menos venenoso, apenas como moderar a intensidade de sua picada.

Um vício, como o do lucro, só pode ser controlado por outro vício, como o do trabalho obstinado. Um vício, como a gula, só pode ser controlado por outro: o do narcisismo com a própria boa-forma. O vício do beato religioso, que só quer se interessar pelas coisas extra-mundanas, só pode ser controlado pelo vício da caridade, que o força a descer nos infernos humanos (cadeias, hospitais, favelas). E assim sucessivamente.

O homem-escorpião da fábula não podia ser controlado apenas pela razão, mas talvez se o sapo o tivesse convencido de que logo ali, na margem oposta, esperavam por ele lindas odaliscas escorpianas, quem sabe, ele, com olhos frebris num vício maior, pusesse em suspenso sua má natureza, e não picasse o pobre sapo.

13.5.08

O padre voador


"Não, meu filho,
não é verdade: padres não voam..."


Que esse padre teve uma idéia de jerico, isso parece óbvio, sobretudo se entendermos por tal idéia aquela que a gente já teve - lá pelos 10 anos, é verdade - mas que, a tempo, se rendeu a força dos fatos: se fosse possível voar fácil assim (com balõezinhos!), nossos primos mais velhos já teriam tentado. Se não tentaram, é porque a idéia era de jerico mesmo. Assim, nos resignamos a soltar pipa. Primos tem lá sua utilidade, pelo menos no que tange a nos livrar do ridículo...

O padre não tinha mulher; talvez não tivesse primos que lhe ensinassem a dureza das coisas terrenas... aí, sem âncora, pra decolar da casinha é só um pulinho.

Bem verdade é que não se pode exigir lá muita razoabilidade de moços solteiros que vêem pecado por tudo quanto é lado.

Padres não são mesmo sujeitos muito versados na realidade das coisas, - ou não seriam padres. Eles vêem cada coisa: santo de barro que chora, virgens que têm filhos, filhos que são pais de si mesmos, mortos que voltam, vida sem sexo, sexo sem camisinha... É, não dá para exigir pés no chão desses rapazes...

Há um quê de noviça rebelde em cada um desses moços de saia e crucifixo.

Mas não foi falta de aviso.

Em Ofício datado de alguns milênios, o Supremo Patrão dele, advertiu: “És pó!...” Não meu filho, ele não disse poeira, e muito menos “poeira cósmica”...

Jesus passou por situação semelhante a do aeropadre. Na terceira tentação do demônio a Cristo, quase tivemos um vôo: “Por que não te jogas daqui de cima?” – desafiou o coisa-ruim, com sua habitual malícia -, “se És divino, Deus te sustentará.” Mas Jesus, que não era padre nem nada, saiu-se com sua tradicional retórica: “Não tentarás o Senhor teu Deus”. Se jogou? Não. Foi ao 1,99 comprar balões de aniversário? Não! Lembrou-se daqueles versinhos dos antigos: “boa romaria faz quem na sua casa fica em paz” e encerrou o papo com o tentador das trevas. E se tal resposta não lhe permitiu uma vida longa, pelo menos lhe permitiu morrer bem pregado ao chão... (e longe do mar!)

Assim, da baixeza de minha ignorância, eu me pergunto: Se Jesus, que era Deus, achou que esse negócio de voar era uma tentação arriscada (e olha que Ele já tinha planado no mar), como é que um seu subordinado qualquer, lotado numa filial do interior do Paraná, achou que podia?!

Soberba!

Um pecado para mil perdões – um para cada balão.
Mas esteja certo de uma coisa, Padre: eu pequei. E como pequei... mas, agora, por causa de sua aventura, não tenho mais pra quem contar. Jamais voltarei a me sentir leve, puro, rarefeito, nas nuvens: PADRE EGOÍSTA!

1.5.08

Me esgana que eu gosto!


Deixa que eu chuto
Não chega a ser novidade aquilo que as estatísticas criminais vêm demonstrando: delitos violentos, com ataques diretos à vida ou integridade física de pessoas, é comportamento predominantemente masculino. Mais de 95% dos homicídios, por exemplo, são realizados por homens. É claro que os assassinatos cometidos por mulheres podem ter seus números mal contados, diluídos na própria dissimulação que o sexo fisicamente mais frágil faz uso para obter seus propósitos delituosos: veneno antes que revólver; deixar de socorrer antes de provocar o ferimento, pedir um favor arriscado antes de empurrar do barranco. É a tal da lei da Amelinha: fazer o homem gemer sem sentir dor (ou sentindo apenas quando já não há o que fazer...).

Homens agridem à vista, mulheres em suaves prestações...

Se assim for, existem mais mulheres “bandidas” do que dizem as estatísticas. Mas, com dissimulação e tudo, o número ainda seria francamente favorável (?) ao time dos meninos. Seja o assunto futebol ou violência sanguinária, a última palavra pertence ao macho, é a regra do deixa que eu chuto.

Mas qual seria a razão de tanto barbarismo dos barbados? Por que metemos os pés e, às vezes, a pá pelas mãos? Por que nos matamos uns aos outros (sim, a vítima preferida dos homens é outro homem), enquanto elas se conformam em criticar a roupa ou a plástica da mocréia ao lado, ou o desempenho sexual e o fracasso econômico do marido amansado?
(Nós matamos o corpo, elas destroem a alma...)


Seriam os animais homens?
As teses derivadas da biologia lembram uma verdade evidente: nossa espécie tem mais tempo de animalidade do que de humanidade. Somos bichos em quase tudo (lembre que, para grande parte das pessoas, felicidade tem a ver, sobretudo – e antes de tudo - com boa comida, parceria sexual atrativa e disponível, território exclusivo e ausência de dor. Como não é difícil notar, quando o assunto é felicidade, pessoas, gatos, cachorros, macacos e coelhos se entendem. Consenso geral no reino da bicharada.
(Vai uma bananinha aí?)

O fato de sermos bichos torna possível entender a maior agressividade masculina apelando para a natureza diferenciada de nossos corpos. Os machos - de quase todas as espécies – são fisicamente maiores e mais fortes do que suas fêmeas. E como a seleção natural não costuma poupar diferenças inúteis, a Mãe Natureza, apesar de ser mulher, espera do macho uma maior dose de grosseria para vencer obstáculos (por exemplo: disputar entre muitos pretendentes a única fêmea disponível), manter metas (como preservar em paz um território, para que a fêmea possa educar seus filhotes), fiscalizar o equilíbrio natural (não deixando que uma espécie cresça desproporcionalmente aos recursos ambientais, por ausência de predadores), e assim por diante. Temos uma missão de força!
(Meninas, apressem o jantar que o papai tem que ir caçar...)

Além de mais fortes, os machos têm doses cavalares daquele hormoniozinho que é acusado de fazer tanto a festa da humanidade, quanto sua desgraça: a testosterona. Vários estudos mostram que ratinhos que recebem doses extras desse hormônio, ou aqueles bombados de academia (travecos masculinizados) que aumentam artificialmente sua concentração, tornam-se mais irritadiços e agressivos.
(“Somando meus 40 de bíceps, meus 3 de neurônios, os 120 cavalos do meu carro, mais a mesada do papai para eu passar o dia longe dele, fico entre os 10-Mais no ranking dos gostosos do El Divino Club!” E dá-lhe loira nos pés...).

Contra as armas biológicas

Muitos criticam qualquer tese dessa natureza, alegando que isso é uma “verdade perigosa”, pois poderia dar azo a inocentar, por exemplo, estupradores sob a alegação de excesso de testosterona. Mas isso é o mesmo que dizer que o fato de as mulheres ficarem mais irritadiças na TPM, ou mais suscetíveis na menopausa, as isentará de suas possíveis agressões. Uma explicação (uma descoberta de fatores intervenientes num resultado) não equivale, necessariamente, a uma justificação (aceitação social do comportamento).
("Tá estressado? Vá se adestrar!")

Em arremate, numa explicação biológica, a Natureza tornou o macho (inclusive o da nossa espécie) potencialmente mais agressivo. Coisa que não é muito problemática (é até vantajosa) na selva. Lá matar e estuprar são charme, é requisito para se tornar o macho-alfa. Mas entre os civilizados humanos e seus códigos penais, isso passou a ser chamado de crime e a ordem é: machos controlem seus impulsos! Assim, o macho-alfa de ontem, que circulava na selva como ídolo, acabará hoje, com muita probabilidade, atrás das grades, porque deu vazão socialmente inadequada aos seus impulsos ancestrais...
(Vitória dos machos delicados! Enquanto os machões estão algemados os machinhos fazem a festa, com muito jeito, perfume, e comida japonesa, é claro)!


Soldadinho de chumbo

Outro fator que levaria à maior agressividade masculina seria o estímulo social à belicosidade dos varões. Moçoilas raramente servem como soldados, não se precisando, então, incentivá-las desde pequenas a construírem um imaginário pessoal de guerreiras. Enquanto elas ganhavam bonecas, meninos ganhavam espadas e escudos; enquanto elas brincavam de casinha com suas mães, meninos se rolavam em lutinhas no tapete da sala com seus pais; enquanto meninas assistiam ao clipe da Barbie Girl, meninos estavam destruindo algum inimigo no Mortal Combate...
(Mais tarde enquanto elas procurarão um espelho que lhes permita ver a calda, eles só precisarão de um que permita o enquadramento dos músculos superiores, já que o resto de interesse eles vêem de cima... Esse Freud sabia mesmo das coisas.!).

A sociedade precisa formar o futuro guerreiro, por isso se tolera muito menos o homossexualismo masculino do que o feminino (repare que a mulher pode desistir de ser lésbica, casar e ter filhos, pode brincar de homossexual enquanto fantasia de casal, mas para o homem que experimenta, não haverá volta: não existe ex-...
(Uma vez flamengo, ronaldinho até morrer...).

Então prova!

Ninguém é homem em definitivo: deve-se provar todo dia a masculinidade. “Vai ser homem”, diz o papai ao filho medroso; “Se tu és homem, repete!”, diz o valentão de punho cerrado; “Quando deitamos, ele só quis conversar, ah, tá na cara, que ele não gosta da fruta, né amigaaa!”, conclui a piriguete da vez. No mundo masculino é assim: você é bicha até que prove o contrário...
(“Tá, tá, tá, eu vou com você na porra da montanha-russa...”)

Agressividade de gênero

Alguns sugerem que as mulheres não são menos agressivas. Elas são simplesmente menos corpóreas em sua agressão. Estudos em escolas, com crianças de 7 a 14 anos, mostraram o seguinte: meninos resolvem suas diferenças entre si, preferencialmente, de forma individual e física: “vou te pegar na hora da saída”. Os outros garotos torcem, mas não se metem na briga dos outros. Depois de trocarem socos e pontapés, os duelistas fazem as pazes e não guardam mágoas. Já as meninas, quanta diferença! Cada menina brigada (“de mal”) tenta arrebanhar a solidariedade das outras para o seu lado, tentando excluir a rival dos grupos (“se você falar com ela, não é mais minha amiga”) e, isso mesmo, difamando a coleguinha inimiga (“não sei quem viu ela no banheiro fazendo não sei o que com alguém”).
(Fofoqueiras!)

Homem quebra a cara do outro, mulher quebra a imagem da outra. Por isso que briga de mulher é tão divertida: é um show de baixaria trash, muito palavrão, muita referência a “vagabundagem da outra” – a gente fica sabendo de cada coisa! - e muitas tentativas de deixar a rival seminua (ah, pena que o rapaz da cerveja chega sempre depois da polícia...). No final, foi muito barulho e poucas conseqüências: duas ridículas descabeladas, arranhadas, rasgadas, e xingando a alegada vaquice da outra... Mas o pior virá depois, a rede de amigas de cada lado produzirá dossiês sobre a rival, e, não raro, fará chegar indícios comprometedores ao namorado, marido ou chefe da outra. É o terrorismo de reputação.
(Dia das mães: amor, vamos lavar roupa suja fora hoje....)

Arte da guerra

É que elas não aprenderam a arte da luta honrada do samurai, do cavaleiro medieval, do guerreio tupinambá. A batalha deve ser uma arte discreta e circunscrita a determinada arena. Aquele que perde deve ser honrado para que aquele que o venceu tenha sua vitória valorizada (ou seria como contar vantagem por ter furado a fila dos deficientes visuais no banco). Em geral isso significa que, entre homens, o que vence vai para o hospital e o que perde vai para o cemitério... mas ambos com muita classe.

Por isso, a Maria da Penha que me perdoe, mas violência física é conosco (e, por isso, temos que ser enjaulados, como bichos brabos, de vez em quando), mas violência moral e psicológica, como prevê a lei, ah, por favor, nisso a vítima somos nós, os homens. João da Penha nelas! Mas não precisa encarcerar não, que a gente depende delas, só dá um sustinho, caríssima autoridade, diz a ela que se não parar de encher a paciência da gente, o cartão Renner dela vai ser suspenso, ou que ela será proibida de usar salto por sessenta dias. Já vai ser mais que suficiente. Depois libera, porque a vida masculina perde todo o sentindo quando essas falantes criaturinhas encrenqueiras não estão por perto...
(Já tô indo, amor... não via mesmo a hora de saber detalhes sobre o tratamento da coluna de sua mãe...)