18.1.10

O ciumento e o infiel


Os romanos já diziam: enquanto a maternidade é uma certeza, a paternidade é uma questão de fé.


Dizem que o ciumento é um indivíduo que passa os dias tentando encontrar a verdade que lhe destruirá a vida. Trágico? Cômico? As duas coisas. Como é gostoso rir da cornisse alheia ("Olha lá, a fulana se arrumou. Claro, o trouxa já saiu pro trabalho.")! Como é aviltante ser-se o próprio lesado! ("Não, meu amigo, ela não estava me traindo, aquilo era só um beijo técnico. A coitada tem essa mania de atriz!").


A fidelidade é uma cláusula revogável
A fidelidade pode bem ser um comportamento admirável. Mas, assim como o amor, ela só pode ser doada, nunca comprada ou exigida. "Tentar garantir a fidelidade de uma vontade livre", como disse D. Innerarity, " é incompatível com o amor a um ser livre." Melhor dizendo, pode-se até exigir, ou extorquir, uma fidelidade menor, de comportamentos, mas a de pensamentos, olhares, sonhos e cumplicidade, essa sempre só se obtém por pura liberalidade do que a concede. E um sultão pode até pôr vinte eunucos a vigiar a donzela, mas não pode impedir que seus desejos escorram pelas frestas do pensamento. Nesses casos, quem vigia é sempre o único cativo, o único fiel a sua própria obsessão.


Tentar pôr à prova uma fidelidade, então, só prova uma coisa: que o ciumento não sabe quão movediça é a areia em que pretende dar saltos. Não sabe que a fidelidade é, não interessa como nem quando, bem indisponível, que não se entrega ao outro sem reservas; um dia se a pode querer de volta, por lapso, erro, necessidade, vontade ou desespero... E aí não há promessa que não seja retratada, não há jura que não perjure.

Cosi fan tutte
Na ópera de Mozart Cosí fan tutte, Don Alfonso convence dois jovens a testar a fidelidade de suas respectivas noivas. Cada um simularia à sua pretendida uma viagem, para uma campanha militar duradoura. Antes da partida, ambos conseguem das moças juras eternas de amor e fidelidade. Mas o que os dois fazem? Reaparecem cada um diante da noiva do outro, e utilizam todo seu talento galanteador para, na ausência do legítimo parceiro, roubar a mulher alheia, pondo assim à prova a tal fidelidade.
Miseravelmente, ambos são bem sucedidos na conquista clandestina. E o que ficou dessa aventurazinha? Duas jovens corrompidas e dois jovens destruídos pela perda do amor. Só Don Alfonso ganhou algo: a convicção de que de fato elas eram todas iguais (cosi fan tutte..). E eles não menos...


Tem coisas que é melhor não testar. Fidelidade (assim como a religião) não deve ser uma questão de evidências, mas de fé. Segure na mão do outro e vá. É isso que fazem os sujeitos realmente sagazes, ladinos, safos.


Saber ou não saber?
Por isso ninguém é otário quando é traído, nem ninguém é necessariamente mau por tê-lo feito. Mas é otário aquele que vive em estado de corno (achando-se traído, por paranóia) e feliz aquele que, muito embora contra ele já tenha havido quebra de fidelidade, continua firme em sua dignidade, sabendo que há coisas (arranhões no carro, cabelo na comida e palavrões na boca dos filhos) que só incomodam quando você delas toma ciência. Se não, toca-se em frente a vida, firme, altivo, de cabeça erguida (menos quando for passar pelo umbral da porta).

Havia um ditado que dizia: antes da conquista devemos manter os olhos bem abertos, depois dela, o mais fechados possível. Deus me livre saber de tudo! Que os outros riam da gente, vá lá. "O outros falam demais. " Mas descobrirmos que eles têm motivos fortes para tal, aí é insuportável.