30.6.10

A filosofia do espelho


Ser é ser percebido.
Essa frase de George Berkeley sempre me perturbou. Ser é ser percebido, ou seja, nada existe fora da percepção. A existência dos seres no mundo depende do fato de que alguém os esteja notando. Se ninguém notar, eles não existem.
Se os idealistas berkelianos estiverem certos, o mundo humano é, então, semelhante a um sonho, se pararmos de sonhar (perceber onírico), toda aquela “realidade” que nos encantava, agoniava, excitava ou apavorava desaparece imediatamente.
O que reflete o espelho quando ninguém o está vendo?
Refletiria as coisas que estão à sua frente? Não, ele refletirá as "coisas" habituais apenas se um humano olhar para ele. Loucura? Em termos práticos, parece. Mas se você pensar que as coisas como as percebemos são o resultado da “leitura” que nossos sentidos fazem delas, a afirmação começa a fazer sentido. O espelho do daltônico não faria distinção entre verde/vermelho; o do cão não atribuiria às coisas à maior parte de suas cores; o da anoréxica mostraria gordura onde outros só veriam pele e osso. Isso ocorre porque o espelho não reflete as “coisas”, ele reflete, isto sim, a “nossa percepção” das coisas. Logo, nada parecido com o que vemos no espelho pode estar nele sem alguém que o perceba.



espelho de anoréxica, mentiroso. Mas qual não é?


“Ah”, diz você, “mas as pessoas normais verão todas as mesmas coisas!” Se é que existem coisas além da percepção, o que você está chamando de normal são as pessoas que possuem uma percepção semelhante à maioria das outras. Anoréxicas, cães e daltônicos não são os normais para o caso. Mas se o daltonismo fosse a regra entre humanos, quem não o fosse seria acusado de imaginar distinções de cores inexistentes na “realidade”. Em terra de cego –dizia Marceu Mauss – quem tem um olho só é aleijado! Não, a vantagem dos “normais” não está em perceberem corretamente (em relação à realidade das coisas), mas só em perceberem da forma socialmente normatizada para cada funcionalidade social (homens não vêem a metade das coisas que as mulheres vêem em seus espelhos!). E o socialmente útil não significa essencialmente verdadeiro.
Assim, uma pessoa que não visse as coisas invertidas no reflexo do espelho (o lado esquerdo tornando-se direito e vice-versa) como fazemos, veria uma imagem mais próxima da “realidade” do que a nossa, e seu espelho mostraria – para ele – uma outra realidade. Da mesma forma, quem tivesse uma visão tão potente quanto um microscópio, veria no espelho um mundo bastante distorcido em relação ao nosso habitual (ele logo teria que adquirir um espelho que diminuísse sua capacidade, sob pena de enxergar milhares de ácaros na sua face, ao invés de a barba por fazer). Que espécie de visão reflete exatamente o mundo lá fora?
Se há um mundo lá fora, não podemos saber, - a não ser com ajuda do nosso cérebro que, na melhor das hipóteses, filtra ao seu capricho à realidade que lhe chega e, na pior, cria a própria "realidade" que jamais existiu. Mas como não podemos ir lá fora sem nós mesmos, estamos condenados a viver sem saber se nosso mundo é uma conspiração da matrix ou a realidade é isso que de fato nos parece ser. Como dizia Wittgenstein: “não é possível sair da própria pele, analisar nossas práticas de um lado, o mundo do outro e voltar para comentar essa relação.”
Voltemos ao espelho. Aí você diz: “tudo bem, mas alguma coisa é refletida, ainda que nunca venhamos a saber exatamente o que é!” Bem, a nossa questão não era apenas se alguma coisa estaria sendo refletida na ausência de expectadores, mas se o espelho refletiria aquilo que ele habitualmente reflete, aquilo que faz com que o tenhamos instalado no móvel.

Fantasmas. Durante boa parte da infância, eu acreditava que os espelhos solitários na casa germânica da minha avó paterna podiam refletir fantasmas, almas de meus antepassados, - em geral com intenções mesquinhas e vingativas, porque havíamos descoberto no sótão seus velhos vestidos e moedas. E, de fato, muitos de nós (primos) acabamos vendo tais almas. Ilusão? Talvez... mas bobagem? Não sei. Só sei que se ser é ser percebido, aquilo que é percebido, ainda que erroneamente, ganha vida. Como argumenta a criança apavorada pelo pesadelo que a acordou: "como pode ser falso um monstro que me deixou assim?" (e pega a mão da mãe e põe sobre seu coraçãozinho saltitante). O monstro de pesadelo é tão real que pode enfartar o cardíaco enquanto dorme (e se a realidade não passasse de um sonho coletivo? - questionava-se Descartes, nas suas Meditações).

Por uns momentos, a ilusão compartilhada entre primos criou fantasmas, ressuscitou antepassados, povoou o sótão de assombrações. Quando crescemos, os estudos, a ciência, a razão, essas outras ficções, nos proibiram de ver tais coisas (de fato, só os que não foram à universidade continuaram percebendo...). E então – em tardias racionalizações - vultos no espelho tornaram-se apenas distorções provocadas, quem sabe, por alguma luz refletida, cuja origem não identificamos. Os espíritos voltaram às suas tumbas.
Esquecidos, eles de fato morreram.

(Às vezes acho que gostamos tanto de histórias de fantasmas pela esperança de que nos aconteça, após a morte, o mesmo que aconteceu com os fantasmas de meus antepassados: passem, nos velhos espelhos, a serem novamente percebidos e, assim, pela mágica da percepção alheia, voltem à vida. Alma penada seria, então, alma percebida. Alma intrometida novamente no mundo pela existência que os crédulos acharam razoável lhes dar. Alma penada é alma viva. Quanto às outras... bem, essas estão além da percepção, além do espelho, num mundo que, desde Kant, parece estar fechado para nós...)

Não me xinguem por tais reflexões! Quando não se é perfeitinho, refletir sobre o espelho pode ser mais divertido do que ver-se refletido nele.

26.6.10

O sagrado direito de duvidar

Grande e sem limite é minha tristeza. Ninguém sabe disso, exceto Deus no Céu, e Ele não pode ter pena.” (S. Kierkegaard).

Vim disposto a falar sobre Deus. E isso não é fácil. Nunca foi. Já rolaram cabeças e reputações por tal ousadia. Não pretendo ser a próxima vítima, por isso alego, em preliminar, que aqui não discutirei Deus em essência. Como poderia? Falarei tão-somente de algumas idéias que minha espécie – a humana – tem feito dele, ou melhor, Dele.

Falarei Dele porque Ele não fala comigo. E esse silêncio é insuportável. Seus supostos mensageiros, ah esses sim, falam demais, porém não convencem. Não é com esses que eu quero falar, quero o direito de ter uma audiência direta com o Pai, e com mais ninguém; quero perguntar-Lhe, à moda de Milton, frivolidades essenciais do tipo: por que transformou meu barro em homem? Por que me fez um animal metafísico que passa os dias a ruminar acerca de seu destino último? Por que sou esse serzinho que chegou à metade de sua existência provável sem ter a mínima idéia de se terá que enfrentar o Ser ou o Nada? Diga-me, Senhor Deus, sem metáforas, sem rodeios, sem intermediários, o que será feito de mim e dos meus?

Não chego aqui, então, para ofender carolas, beatos e suas crenças. Se podem crer firmemente – o que eu duvido – que se agarrem a isso! Não questionem, creiam, pois crer é mais útil do que saber. Os seres humanos não foram feitos para a verdade, não somos animais epistêmicos, fomos feitos para levar a existência como os camponeses de Montaigne: “Vão, vêm, pulam e dançam; e da morte nenhuma palavra.” Silêncio.

Outro dia minha filha de cinco anos perguntou: “Eu também vou ter que morrer, pai?”, Sim, um dia, respondi. “Mas por quê?”. Não sei, querida, só posso lhe dizer que há perguntas que quanto mais tarde a gente fizer, mais gostoso é o sorvete, mais doce é a noite e mais leve é a vida. Com mais poesia, Fernando Pessoa teria dito o mesmo:

Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!


Não tenho lá muita convicção de ter driblado a angústia da pequena Júlia. Mas, o que mais eu poderia fazer? Honestamente, dado que eu não tinha a resposta, só me sobravam o drible e o silêncio.

Mas Dele, eu posso exigir uma resposta que não seja um drible. Ele tem que me dar uma palavra sobre a morte e a vida. E tem que ser rápido, porque o tempo na Terra é acelerado para quem é mortal. Não posso por isso esperar a provável volta do Messias, pois temo já não estar aqui para recebê-lo. Eis o drama humano genérico encarnado em minha pessoal singularidade.

O que segue então é, à moda do que se faz em direito, apenas um embargo de declaração, recurso que interponho contra as lacunas e obscuridades presentes nas mensagens das religiões e seus heróis. O objetivo é simples: dizer que me deram razões insuficientes para crer e que viver assim não tem sido fácil.

Vamos ao texto.

Das provas da existência de Deus

Pesado e medido, acerca de Deus só temos provas testemunhais, aquelas mesmo que o velho jurista chamava de “a prostituta das provas”, dada facilidade com que se prestam à fraude. Se o testemunho for de um só, então o risco do engodo é tão considerável que a prudência romana não queria sequer ouvi-lo: testis unus, testis nullus.

O falso testemunho não é um problema relativo apenas ao estreito universo do Direito, na Ciência e na Religião ele também costuma aparecer, fazendo emergir um preocupante manancial de falsas alegações, falsas confirmações, falsos milagres e falsos santos.

Em adição, o testemunho humano quando não é frontalmente malicioso, corre ainda o risco de ser incorrigivelmente ingênuo. Nessa modalidade, a pessoa pensa que viu o que não viu, que ocorreu de uma forma o que ocorreu de outra, ou tira conclusões irrelevantes acerca do efetivamente visto. Assim não é raro um indivíduo dizer: “Eu posso dar testemunho de Deus, pois estava com câncer e me curei de uma forma que os médicos não puderam explicar!”. Ora, uma pessoa sensata só poderia disso concluir que sua cura estava fora do previsto pela Medicina e não que foi “Deus”, especificamente, que o salvou. Repare, inclusive, que um eventual crente no poder dos duendes poderia ter atribuído a eles a causa do seu “milagre”, - o que não seria logicamente diferente de atribuí-lo a Deus, já que os únicos fatos com os quais se está lidando, no caso, são a cura e a ignorância a seu respeito. Da ignorância não podemos derivar a existência de seres, quanto mais de seres específicos, ao estilo: “Só pode ser Deus”.

Por isso juizes e cientistas costumam ser bastante cautelosos com as testemunhas em geral. Pessoas ingênuas que vêem luzes no céu e que, por não saberem do que se trata, logo concluem serem “discos voadores”, e pessoas que identificam, “pelo jeito suspeito de olhar”, que o acusado deve ter sido mesmo o culpado são antes óbices que auxílio na busca da verdade.

O problema se agrava ainda mais caso as testemunhas forem de má reputação, ou se o seu testemunho harmonizar-se com seus interesses ou crenças. O testemunho de um médium sobre a verdade de um documento ter sido de fato produzido em estado de transe durante uma sessão espírita, é mais difícil de acatar do que o de um padre que, contra sua crença oficial, o confirmasse.

Boas testemunhas seriam, então, aquelas de boa reputação e não parcialmente interessadas no deslinde específico da questão.

Nesse aspecto as coisas se complicam para Deus, ou melhor para nossa crença Nele. Primeiro porque quase todos os testemunhos de manifestações de Deus provêm de funcionários de igrejas ou de seus mais fervorosos beatos. O testemunho de Saulo de Tarso seria nisso uma exceção, já que ele fora surpreendido por uma visão divina oposta às suas crenças, capaz de convertê-lo de perseguidor implacável de cristãos em seu embaixador máximo? Creio que não. Na essência, Saulo já era um crente, só migrou do Deus judaico para a sua mais notória dissidência, o Deus do cristianismo, - que nem é tão diferente assim. São extremamente raros os testemunhos de descrentes de verdade. Em regra, primeiro a pessoa se converte, depois recebe a graça de uma audiência particular com Deus ou suas hostes.

Mesmo a mais nobre testemunha divina – um certo carpinteiro – era pessoa má vista em sua comunidade, andava com pecadores, prostitutas, tinha pouca instrução, ainda que para os padrões da época. Não gozava de boa reputação geral, razão pela qual fora confundido com bandidos e equiparado a eles quando de sua condenação. Subiu à cruz sem conseguir provar a existência daquele que, segundo ele mesmo, faltara na hora marcada: “Por que Me abandonastes?”. Se o testemunho de Jesus não convenceu seus contemporâneos, que o mataram, por que convenceria as pessoas que dele só ouviram falar por relatos? Por que só uma escassa minoria dos que o conheceram pessoalmente levaram fé no que ele disse? Diante disso como aceitar facilmente que, muitos séculos depois, milhões de pessoas dizem-se tocados pessoalmente por suas palavras, como força viva? Seja como for, é certo que o impacto das palavras que Jesus pronunciou em vida foi imensamente menor do que aquele causado por elas após sua morte. Fruto da ressurreição, dirão alguns, ao que se responde: da crença na ressurreição, cuja garantia de ocorrência, novamente, depende do crédito que se atribua às poucas testemunhas que a alegaram, e que, logicamente, tinham interesse em propagar a história de que seu deus havia sobrevivido à crucificação.

Prova lógica

Conscientes de tais dificuldades, alguns funcionários da Igreja tentaram formular outras espécies de provas, cuja força não derivasse de relatos testemunhais. Santo Anselmo de Cantuária, ainda na Idade Média, foi um deles. Seu argumento ontológico constituiu uma criativa forma de validar logicamente a existência de Deus, sem que se precisasse apelar às sempre questionáveis verificações de fatos históricos.

Mais ou menos, dizia Santo Anselmo: por definição Deus é o ser perfeito, insuperável, e nosso entendimento pode compreender o que isso significa. Perfeito é aquilo que não pode ser aperfeiçoado, aquilo a que não falta nada, absolutamente nada, caso contrário não seria perfeito. Sabendo o que significa ser perfeito e que temos o entendimento de que Deus o é, pergunta-se: se Deus não existisse ele seria perfeito? Claro que não, já que lhe faltaria o mais essencial: a própria existência. Lembre-se de que ser perfeito significa ser completo, não carecer de nada, e quem carece de existência, carece de tudo.

Portanto, se Deus é perfeito, ele tem que existir. Se ele não existisse, não seria perfeito e assim não seria Deus. Em resumo: sem o atributo da existência, Deus não é perfeito e sem a perfeição Deus não é Deus, o que levaria a uma contradição lógica.

Deus existe, em verdade e lógica!

Apesar da elegância de tal raciocínio, que foi rejeitado por São Tomás de Aquino, ressuscitado por Descartes, e combatido por Hume e Kant, - já que derivava a existência de um ser a partir de atributos que a ele havíamos previamente atribuído. Com efeito, como poderíamos dizer que Deus é perfeito antes de termos presumido sua existência? Fica parecendo uma daquelas esféricas verdades chinesas: "Deus existe porque é perfeito e é perfeito porque é Deus".

Mesmo na época de Anselmo, seu argumento foi ironizado. Adaptando o contra-exemplo de seu contemporâneo Gaunilo (que era um monge católico), também poderíamos dizer: dado que posso conceber a idéia de uma mulher perfeita, ela terá necessariamente que existir ou perfeita ela não é, já que lhe faltaria um enorme detalhe: a existência. Isso demonstra que meu entendimento é capaz de criar conceitos absolutos, como perfeição, sem que necessariamente eles tenham que existir na realidade. Em outros termos, um raciocínio de linguagem só pode gerar resultados de linguagem, e não inferir, como logicamente necessária, certa realidade, quanto mais as absolutas.

O mesmo vale para o argumento da complexidade. O fato de haver muitas coisas complexas, de uma beleza ou harmonia incompreensível para a ciência (como o universo, as células, o olho humano) não significa necessariamente que são obras de Deus. Não podemos deduzir um ser para completar as lacunas de nossa ignorância. Da ignorância não se inferem realidades. Ora, se alguém dissesse no senado romano, alguns anos antes de Cristo, que a partir de uma caixa com um vidro na frente seria possível, um dia, assistir ao vivo a campanhas militares, como a de César na Gália, os sábios da época diriam que só os deuses seriam capazes de tal astúcia. Os índios sul-americanos tinham um deus para cada fenômeno que desconheciam. Deus e o inexplicável se confundiam. Isso significa que quanto maior for a ignorância científica de um povo, maior o espaço para o seu “sobrenatural”. Há de fato coisas que não somos capazes de entender, nossa ignorância é vasta, vastíssima até. Mas deduzir a existência de Deus por causa do que nos é incompreensível é fazer como os matutos que criam extraterrestres quando não conseguem entender o sumiço repentino de alguém.

Quando não sabemos o que causa algo, melhor investigarmos, aceitar com paciência a dúvida ao invés de povoar as lacunas de nosso saber com criaturas desejadas. Como disse Joubert, “mais vale examinar uma questão sem resolvê-la do que resolvê-la sem examiná-la”. O mesmo vale para a idéia de “as perfeitas leis do universo só poderiam ter sido escritas por...”, Deus? Ou por algum modo que até agora não compreendemos. Atribuir isso a Deus, sem mais, é comprometer-Lhe a reputação no caso de amanhã os cientistas encontrarem uma explicação materialmente razoável para tal.

Se Deus é perfeito, ele não precisa de nossas fraudes lógicas para confirmar-lhe a existência.

Evidências

Faltam evidências acerca da existência de Deus. Tudo bem que o Sol brilha, as estrelas reluzem no firmamento, a criança cresce e os amantes se deliciam. Mas igualmente há o câncer que corrói, o tsunami que devasta, a morte prematura que agarra, a cegueira de nascença. Parece até que, bem ponderado, a maldade cósmica para conosco supera infinitamente a bondade.

Pessimismo?

Por mais feliz que seja uma existência humana, ela é, à semelhança da lingüiça no freezer, dotada de prazo de validade. Poderíamos até vir com a advertência: “Consumir preferencialmente antes dos setenta anos. Depois, manter refrigerado e, por fim, depositá-lo no solo de forma ambientalmente correta”.

Se Deus de fato existir, Ele tem que nos explicar muito por que não disse que estava aqui. Por que nos deu a razão para dele duvidar e em função disso - pecado de pensamento - ser jogado no porão do inferno? Que urupuca é essa? Aceita-Me ou devoro-te!

Albert Camus tinha razão quando dizia que diante de nossa necessidade de resposta acerca do nosso significado no mundo e do silêncio na resposta – o universo não fala nossa língua -, a única saída era a revolta. Revoltar-se contra o silêncio, pela falta de gentileza de um ser aparecer e dizer: “Eu estou aqui”. Mas ao contrário, seguindo as crenças expressas pela maioria das religiões, esse ser mandaria seus eleitos, ao que parece, com uma única função: cobrar vassalagem. Devemos ser humildes, tementes, submissos, pormo-nos de joelhos, confessarmos nossos pecados, fazer de conta que não duvidamos. Por que o orgulho é um pecado. Pecado divino por excelência, pois é o que cobra mesuras e não os que as fazem que se considera acima dos demais.

Deus nos criou assim perecíveis, estúpidos, sujeitos a doenças, a vermes, tendo que manter comidas apodrecidas dentro do corpo, para que tivéssemos que lembrar, diariamente, do lixo que somos... Diante disso ainda vem pedir para que sejamos humildes? Não precisava, Excelência. Nosso orgulho é apenas uma forma de revolta, uma frivolidade menor, uma mania de nos fazermos de importantes antes que o ceifador sinistro venha rir por último. Nosso orgulho – como disse Victor Hugo – não é um vício, é apenas a prova do nosso ridículo.

Na história

Os deuses quase nunca foram flores que se cheirasse. Na maior parte das culturas, eles exigiam sacrifícios humanos, queriam virgens, queriam filhos. “E Deus disse: “Toma teu filho, teu único filho a quem tanto amas, Isaac; e vai à terra de Moriá, onde tu o oferecerás em holocausto sobre um dos montes que eu te indicar.” (Gênesis 22,2)”. Com o tempo, evoluíram e passaram a exigir apenas sacrifícios de animais (no caso acima, Deus teria se contentado com um cordeiro). Evoluíram ainda mais e, de acordo com seus procuradores na Terra, passaram a aceitar penitências, doações e hoje, em certas igrejas, aceitam até vale-transporte e ticket alimentação.

Ademais, se a idéia de nossos religiosos coincidir com a natureza de Deus, a organização política do céu parece mesmo é com o Brasil. Sua oração tramita muito mais rápido junto ao Padre-Eterno se você tiver um pistolão. Nesse caso, vou toda noite de Ave Maria, na esperança de que o “rogai por nós pecadores...” faça a minha oração subir sem maiores entraves burocráticos. Ora, ou o pedido é justo e Deus, sendo perfeito, irá atendê-lo, ou é indevido, e deve rejeitá-lo. O que não parece razoável é que, pelo intermédio de Maria, Ele mude de idéia, ou que precise dela para atentar para a justeza da solicitação – neste caso onde foi parar a perfeição?! Será que até no Céu só podemos pedir algo via advogados?! Ou lá, como em alguns lugares desse planeta, é mais útil para o convencimento do magistrado os amigos que se tem do que a razoabilidade do pedido que se faz?

Muitos sujeitos são devotos desse ou daquele santo, dependendo da especialidade do seu problema (se é casamento ou doença, cadeia ou intestino preso). Santos especialistas. “Matrimônio, matrimônio? Isso é lá com santo Antônio.” Parece até o cidadão comum dizendo: “Vou falar direto com o ortodontista.” ou “O meu vereador já disse que vai dar um jeito no meu IPTU”. É a idéia do santo especialista, do santo advogado, do santo despachante, do santo pistolão, do santo que faz jus a honorários, pagos em velas e ajoelhamentos. Isso sem falar das entidades pistoleiras de aluguel, que fulminam seus inimigos por módicas oferendas de encruzilhada.

Acho que alguém tem que falar ao Padre-Eterno que sua assessoria está levando por fora – em velas e preces - para fazer o que lhes seria devido por caridade. E o pior: seus mensageiros estão fazendo os pobres-diabos subir escadarias de joelhos, fazer procissões, pagar por celebrações, tomar banho de descarrego, comprar cachaça e charuto e dar o que não têm para os que não pretendem jamais descer do trono.


Revolta infantil

Essa revolta infantil aqui manifestada pode ser, na verdade, como dirão os críticos, um mero choro de criança contra as decisões do santo Pai que ele, por ser pequeno e estúpido, não compreende. Nesse caso, eu poderia antever qual seria a resposta do Eterno: “deixe-o chorar que quando ele crescer, vai compreender meus mistérios”, - os mais exaltados esperarão que um raio me parta!

Então vamos mudar a linha de argumentação, concedendo a Deus a gentileza do in dúbio pro Criador.

O deus do meu jardim

Será que a rosa sabe que o jardineiro existe? E se sabe, compreende suas podas e transplantes? Se Deus é o ser perfeito - o Sumo Jardineiro - eu seria, na melhor das hipóteses, a bonitinha, mas ainda assim estúpida rosa. Como querer compreendê-lo sem cair no ridículo? Minha existência de poucos dias me capacitaria para entender o eterno? Ou minhas conclusões sobre Deus seriam tão ridículas quanto a ilustrada por Fontenelle, ao relatar que “até onde qualquer rosa poderia lembrar nenhum jardineiro havia morrido.” Até onde este autor pôde notar, a presença de Deus não se fez sentir de forma indubitável. Mas quem é esse autor senão a rosa falando do jardineiro?

Pode ser mesmo difícil afirmar se Deus existe ou não. Vai ver até que as chances são iguais para os dois lados. E quanto mais pensamos mais confusas se tornam as coisas. Sagaz mesmo foi Tertuliano (155-220) quando afirmou: “Credo quia absurdum” (creio porque é absurdo). Com isso, o teólogo cristão quis dizer que a base da fé não pode ser a razão, afinal Deus, com Cristo, se revelou a nós de forma absurda: ele poderia ter mandado um super-Aristóteles refutar qualquer problema lógico que pudéssemos esboçar à sua existência, poderia ter mandado exércitos de Einsteins viverem entre nós para satisfazer nossas demandas por verdades, mas não: ele mandou seu filho vestido na humildade dos ofícios manuais. Poderia tê-lo mandado assumir o trono na Terra, mas o mandou agonizar na cruz como um criminoso. Isso tem um caráter de ilógico, de absurdo, de milagre, de infinitamente diferente do que esperávamos... São as linhas tortas pelas quais Ele escreve...

É possível que Deus tenha feito isso porque sabia que a razão da rosa era incapaz de compreender a razão do jardineiro. Então, simplificou, mandando que escutássemos parábolas e relatos simples, até que um dia, quem sabe, possamos escutar explicações de verdade. Quando nossos filhos vão deitar, não lemos tratados de física quântica para eles, lemos coisinhas para que durmam, e dormindo, não nos perturbem com maiores interrogações. As parábolas tranqüilizam as crianças. Mais tarde eles terão chance de aprender... por enquanto, Deus zela pelo nosso sono...

Para que a inteligência se a crença desaconselha seu emprego? Sei lá... é estranho mesmo. Mas Deus parece ter essa mania: dá-nos a razão, porém - fórmula de Tertuliano - pede para que Dele nos aproximemos pelo absurdo; dá-nos desejos, mas exige que os controlemos; não nos dá certeza, mas quer fé inabalável. Diante disso a quem compararei este Deus? “É semelhante aos meninos que, sentados nas praças, clamam aos seus companheiros: Tocamo-vos flauta, e não dançastes; cantamos lamentações, e não pranteastes. Porquanto veio João, não comendo nem bebendo, e dizem: Tem demônio. Veio o Filho do homem, comendo e bebendo, e dizem: Eis aí um comilão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores” (Mt, 11). Ou seja, recebemos um baita equipamento cognitivo (nossa razão) e muitos comichões animais (nossos desejos e apetites), mas, pelo menos em face de Deus, não devemos usá-los. Esses foram nossos presentes e nossa maldição. Isso parece até uma parábola, de um pai que dera de presente para seu pequeno filho um isqueiro e uma garrafa de álcool, e quando este se queimou disse: “Néscio, por acaso não desconfiastes da tentação a que vos submeti? Porque não fostes prudente como a serpente, ardeis agora no fogo.”


Um deus terrível

A concepção que nossa cultura tem de Deus não é de um ser bondoso, mas de um ser que carrega em si todos os vícios dos monarcas históricos: vingador implacável, queimador de sodomas e pompéias, requisitador de súplicas, concedente de mercês, mantenedor de infernos e calabouços, negligente para com o sofrimento dos inocentes, criador de culpas presumidas e pecados originais, dono da verdade, senhor da vida e da morte. Todo-Poderosíssimo.

Ora, dirão, você não está falando de Deus, mas de uma certa compreensão sobre Ele, uma compreensão equivocada, na qual inserimos na figura de Deus nossos defeitos. Deus é infinitamente bom, má é a descrição que Dele fazemos.

É possível.

Mas há também outra possibilidade, terrível é verdade, mas que há, há. Se não somos competentes para interpretar a natureza de Deus, se projetamos Nele o que há de pior em nós, podemos igualmente ter projetado Nele também nossa aspiração de que Ele seja bom, justo e misericordioso. Se o compreendemos equivocadamente, se somos a rosa em face do jardineiro, podemos errar para os dois lados. Como saber se o Deus bom é o Deus que existe ou o que queríamos que existisse? Terei que voltar ao valor dos testemunhos...

Talvez Deus seja mau. Goste do espetáculo de ver-nos construindo nossos sonhos, cultivando nossas habilidades e celeiros para, na calada da noite, vir nos ceifar. Pode lhe ser cômico assistir à primeira espécie de animal consciente do seu funesto destino – a morte – debatendo-se impotente para dele se defender. É possível que seja mesmo hilário ver esse animal se travestir de herói, se encher de coquetismo, ir à Lua, criar teologias e tecnologias, gerar filhos e sonhos para, inexoravelmente, entregá-los ao implacável abismo que nos espreita...

Essa não é uma tese forçada. È a compreensão mais comum dos deuses ao longo do tempo. Dizem que as culturas indígenas do México se chocaram com a revelação dos padres católicos de que estes vinham representando um Deus que se oferecera em sacrifício, quando os nativos estavam acostumados a deuses que mandavam sacrificar. Ao longo da história deuses foram mesmo mais temidos que amados.

Estaria eu me afundando em absurdos cada vez maiores? Volto a repetir: de onde provêm as noções do que/quem é Deus? Alguém pode gabar-se de ter acesso direto a Ele? Ah, você confia na veracidade dos relatos que lhe foram apresentados. Tudo bem. É uma crença. Pode ser verdadeira, pode ser falsa, pode lhe ajudar a viver, pode ser muito, mas é preciso crer para ver.

A verdade, se há alguma, é que se não somos competentes para conhecermos nem a nós mesmos, o que se dirá da pretensão de dizer: “Eu conheço Deus no meu íntimo!”. Isso é tolice. Quem não se conhece em essência – todos nós – não pode ter a pretensão de conhecer algo/alguém supostamente muito maior que nós...

Mas há um tertium genus entre o deus todo bondoso e o deus maldoso: o deus indiferente. Um deus que não se ocupa das coisas humanas, que, talvez, tenha mais o que fazer. Um jardineiro desinteressado pelas suas rosas. Bem pesado e medido, esse é o deus mais fácil de defender a partir do absurdo desse mundo. Catástrofes e dores atrozes ao lado de belezas e prazeres. Contra-senso deliciosamente apontado por Machado de Assis: “O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?”. Deus não tomaria ciência ou parte em nada disso. O mundo humano, com suas contradições, abundâncias e martírios, não Lhe seria afeito. Problema humano não atrairia a atenção do Sumo Perfeito.

Essa hipótese assusta.

É engraçado que os historiadores dizem que o orgulho humano foi seriamente abalado com a mudança do sistema geocêntrico para o heliocêntrico. Tenho minhas dúvidas. Não conheço ninguém que, na prática, esteja lá se importando se é o Sol ou a Terra que gira em torno do outro. Isso parece descrição de historiador das idéias e não das idéias na história. Até porque o fato de algo girar em torno de outro não significa o que domina o quê. Não precisaríamos nos abalar por tal mudança. Era só fazer o que de fato fizemos: modificar o conceito de centro de universo. É centro do universo o planeta que possuir a forma de vida mais inteligente. A Terra, pronto! O Sol que continue a mandar em outras plagas, na anatomia do universo continuamos no umbigo.

Agora se Deus fosse algo semelhante ao deus de algumas concepções teológicas, um deus que está de costas para o universo, que o move, mas nele não interfere. Se Deus fosse como eu em relação ao bem-estar das plantas de meu jardim: não me interessando se essa morreu ou aquela floresceu, me interessando apenas pelo todo: se o jardim está bonito ou não, aí sim estaríamos órfãos. Não boto nome nas plantas, porque elas são fungíveis – uma planta pode ser trocada por outra mais nova. E se Deus agir assim conosco? Se para Ele eu for uma individualidade fungível, uma formiga cujo sofrimento ou morte é incapaz de abalar a força do formigueiro? Então teremos sido retirados do centro do universo.

É por isso que nós homens sempre preferimos os deuses perversos a deuses indiferentes. Pois um deus perverso – como qualquer sujeito mau – dá importância as suas vítimas. Diante de seu altar pedimos clemência, misericórdia, mea culpa mea culpa. Agora diante de um deus indiferente nós pedimos, louvamos, xingamos e ele permanece em silêncio.

Pior do que as pessoas que nos odeiam são aquelas que nunca notaram nossa existência. As primeiras podem nos fazer mal e até mesmo nos extinguir, mas só as segundas podem nos convencer de que viver não vale a pena. O perseguidor nos atribui valor na exata medida que nos persegue, já o indiferente nos retira o valor proporcionalmente ao que não percebe.

Enquanto escrevo isto, sinto a nítida impressão de que estou sendo observado, de que vou ser castigado... Tranqüilizo-me! Pior seria se Deus sequer lesse esse desabafo...

21.6.10

Se não pode criar uma Julieta...


FREI LOURENÇO — Homem sem juízo, ouve-me ao menos uma palavrinha.

ROMEU — Oh! vais falar de exílio novamente.

FREI LOURENÇO — Vou emprestar-te uma armadura, para esse termo amparar: filosofia, o leite doce e são da adversidade, que te há de confortar, embora estejas, em verdade, exilado.

ROMEU — Apesar de exilado? Que se enforque essa filosofia! Se ela não pode criar uma Julieta, se não pode mudar uma cidade de lugar, ou anular um decreto... Se isso a filosofia não pode, de nada me serve! Não falemos mais nisso.

FREI LOURENÇO — Insensato! Agora vejo que os loucos não têm ouvidos.


Shakespeare. Romeu e Julieta, ato 3o., cena III.

20.6.10

O homem é lobo do lobo

A menor C.V. foi visitar a sexagenária vovó.
Vestida apenas com sua capinha vermelha da Lilica Repilica
Levava doces numa bolsinha Vitor Hugo
Ao invés de pegar a rua do shopping
Resolveu subir o morro
Ia passando um lobo pobre, excluído e triste,
Negro como a noite que não tem luar
A menor gritou
O caçador Capitão Nascimento ouviu os gritos
Nada perguntou, atirou na criatura suspeita
Ela tombou de primeira
E a menina sorriu para o capitão, que comeu com ela a sopa da vovó,
A alcatéia da colina, revoltada, queimou pneus e bloqueou o caminho para a floresta
Ninguém entrava ou saía.
A não ser a “tropa das elites”.
Foi o último dia que se ouviu falar de lobos naquela comunidade.
Nas Ongs e na ONU aquele ficou conhecido como o “dia do massacre dos lobos pobres”
No judiciário da Floresta aquele ficou conhecido como o “dia nacional da regular legitima defesa”
Mais tarde Chapeuzinho desabafa na net:
(...)
Chapeuzinho13: q medo! Aquela coisa preta enorme olhando pros meus doces...
Velho-do-saco51: hum... ele olhou pra onde mais?
Chapeuzinho13: não sei, tava escuro...
Velho-do-saco51: como vc tava vestida?
Chapeuzinho13: Só de toquinha...
Velho-do-saco51: auuuuuuuuuuuu...
Chapeuzinho13: ai, parece um uivo... você é lobo?
Velho-do-saco51: não, sou médico pediatra... Você tá sozinha...
Chapeuzinho13: Tô... mamãe foi jantar com o caçador Nascimento...
Velho-do-saco51: tá com medo?
Chapeuzinho13: to... Sei lá, lobos...
Velho-do-saco51: posso passar aí pra te levar pro cinema?
Chapeuzinho13: Espera... vou ter que ligar pra mãe...
Velho-do-saco51: não!!!!!
....
Chapeuzinho13: a mãe perguntou se você é médico mesmo...
Velho-do-saco51: sou.
Chapeuzinho13: então vou botar minha capinha.
....
(Chapeuzinho nunca mais foi vista. A polícia deflagrou a operação: “lobos vingativos”, considerou falsos os indícios que levavam à clínica de um conhecido médico. Mas, para não dizer que isso ia ficar assim, conseguiu, mediante regular mandado, a prisão preventiva do lobo G.U.A.R.A. , apesar de testemunhas alegarem que ele: 1. não tinha computador; 2. estava preso no zoológico na hora do crime. Um pedagogo lembrou aos pais que fossem mais cuidadosos com seus filhos na internet; um comentarista de da Tv culpou a Igreja Católica por ser contra o controle de natalidade dos lobos; a mãe do lobo teve sua toca destruída; e a polícia anunciou que mais mandados de prisão contra lobos suspeitos serão expedidos nos próximos dias.
E todos viveram infelizes como sempre.
P.S. A capinha da menor C.V. acaba de ser encontrada na lixeira da casa daquele médico. A polícia pediu cautela, e prometeu averiguar.

Sandro Sell

19.6.10

Como se fosse a segunda vez...



E se fosse possível corrigir os erros do passado?
Muitos dizem que queriam ter a experiência de hoje para fazer o conserto do ontem: “Se eu soubesse o que sei agora, as coisas teriam sido diferentes...”.
É claro que, pelos menos nos grandes equívocos da existência, os erros do passado convertem-se em mais do que simples cicatrizes: tornam-se parte constitutiva do que se é, e, inclusive, a marca mais distinta de nossa personalidade. São os defeitos, os equívocos, as seqüelas do que não deveria ter sido o que efetivamente nos singulariza.
Só o que é torto distingue e sobressalta.

(
A perfeição é como um móvel novo, com design simétrico em aço escovado e produção em série. Enquanto as histórias de vida enviesadas são como uma escrivaninha de antiquário, que vale pelos arranhões, vale pelo quanto manchou, entortou e vergou sob o peso dos usos inadequados. Seus danos à forma pura são sua assinatura e seu critério de valor, - a escrivaninha do Saramago, quem vai ficar com ela?)
Só os erros são realmente nossos. O acerto, as virtudes e a busca da perfeição nos legitimam diante do mundo e dos outros, por nossa capacidade de seguir o conforme-se-manda, mas, quanto mais perfeito se é, menos original também se fica. Deus é perfeito, por isso deve ser imitado, pois a função normativa da perfeição é justamente essa: atrair tudo para o seu padrão tamanho-único. O dia em que pudermos olhar o mundo com os olhos divinos, o dia que pudermos acessar a verdade plena, o dia em que não mais cometermos erros, será também o fim do estilo próprio e da perspectiva de relance que só os imperfeitos podem obter.
(
Sem os equívocos da linguagem, como se faria poesia e literatura? Restaria a matemática, a lógica e os memorandos de repartição).
(Sem os equívocos de entendimento, sem situação distorcida de fala, como surgiriam as ironias, os floreios e rodeios, a criação de ideologias e dos mundos paralelos?).
Falar, para iniciar pelo ato mais constitutivo de nossa imperfeição, é assumir o risco de mal-entendidos: colocamos um sentido em uma palavra, lançamo-la e o interlocutor colhe outro. E não raras vezes, somos perseguidos, ou adorados, por esses franksteins lingüísticos acerca dos quais não temos controle. (“Não era bem isso que eu quis dizer.” – Conforme-se: entre o dito e o captado há montanhas de subjetividades que impedem a exata transmissão da mensagem).

O que a Deus é negado
Deus amaldiçoa o pecador porque este não reflete sua perfeição (Deus precisa de muitos espelhos). Mas, no fundo, parece haver uma divina atração por nossa singularidade degenerada. Afinal, quem tocava mais de perto o coração de Cristo? Anjos? Claro que não. Seus amigos eram uma súcia do que havia de mais deplorável no seu tempo: ladrões arrependidos, pescadores ignorantes, prostitutas decadentes e beberrões inveterados. Afora João Batista – cujo contato com Jesus foi mínimo – nosso Salvador não perdia tempo com os “sãos”, abraçava os caídos, e fazia de tudo para tê-los em sua companhia.
Nossos defeitos: essa é a cobiça divina, - por ser a única coisa que falta para que Nele não falte nada. São os Seus limites, por isso nos amaldiçoa: não sabe o que é remorso e assim não pode saber o que é reconciliação, não sabe o que é perder-se, logo Lhe falta a noção do que seja se encontrar; não sabe o que é sofrer, portanto, não pode nos ajudar (e por isso pragueja, castiga e ameaça).
(Ninguém deveria ser culpado pela perfeição alheia).
Deliciar-se de excessos, curtir o que de bom há na carne, arriscar-se por pouco, rir dos próprios erros (e dos tombos alheios), criar ilusões compartilhadas: podem não ser um ideal bonito, mas representam um libertário afastar-se do caminho da escola, uma fuga do grupo de escoteiros, a vingança contra o projeto do papai de fazer-nos coroinhas. E garotos perfeitos nunca terão nada a contar que não sejam notas adequadas, posturas adequadas, relações convenientes: vida de mentirinha.
É por isso que Mark Twain disse que preferia o Céu pelo clima e o inferno pela companhia. Por isso que elas sonham com um homem certinho enquanto se apaixonam pelo incorrigível, enquanto eles largam as boazinhas em busca das atrevidas menos virtuosas. Também é por isso que o cachorro rejeita a ração, os pirralhos fogem do banho, nosso colesterol sobe e a grama vive sendo pisada.
Errar é exclusivamente humano, por isso os perfeitos nos invejam.

Reconciliar-se com os inocentes
Bom, melhor não terminar esse texto assim: afrontando autoridades e pregando um hedonismo rasteiro. Pode haver inocentes lendo, e tais pessoas esperam que de tudo possa ser extraído algo edificante. Melhor não os decepcionar. Pois então vamos lá: de volta ao início do texto: seria possível corrigir os erros do passado valendo-se da prudência do presente?
Sim. Se por isso entendermos não um apagar do que já foi, mas uma re-significação do erro numa positividade presente. Isso é o que fazemos o tempo inteiro na história: imagine a indignação do povo pobre da França tendo que arcar com os custos do palácio de Versailles ou a agonia dos escravos egípcios tendo que construir as faraônicas pirâmides: duas obras criminosas, fruto da exploração humana mais aviltante e de crenças duvidosas sobre a natureza apoteótica do poder do soberano. Mas hoje o que são? Patrimônios da humanidade: vemo-las como corpos estéticos e não como monumento erigido à exploração do homem pelo homem.
(Se levássemos a coerência moral e histórica a ferro e fogo deveríamos implodir o Coliseu, como se fez com a estátua de Sadan e de Lênin).
Não se pode reviver o passado (um óbvio difícil de praticar), mas se podem converter os defeitos pretéritos no interessante atual (as melhores histórias são sempre contadas pelos piores personagens). Pode-se pegar a ruína do ontem e colocar-se na moldura do hoje como prova de que os erros feitos não podem ser apagados, mas re-enquadrados numa outra gestalt, num outro contexto em que, por alteração da relação figura e fundo, o que foi um vexame torna-se um patrimônio cognitivo consolidado.
(O que não nos mata só nos fortalece, senhor filósofo, se re-significarmos os ferimentos: caso contrário, o que não nos mata, nos traumatiza, nos lança no terror da fobia de reencontrar o velho fantasma).
E sobre o futuro? O psiquiatra Viktor Frankl, fundador da logoterapia, e sobrevivente heróico dos campos de concentração, diz que na busca da singular tarefa de dar sentido à vida, de aproveitar melhor cada momento deveríamos seguir o seguinte imperativo:
“Viva como se você estivesse vivendo a segunda vez, e como se estivesse agido tão erradamente na primeira vez quanto está prestes a agir agora.”
Em outras palavras, só vivemos cada situação uma única vez como presente, melhor então lidar com ela sem amadorismo, isto é presumindo que nossos velhos esquemas (erros do passado) querem roubar de nós as possibilidades positivas do presente. Uma coisa é estar aberto ao erro original (feito por nossa humanidade e gosto por descobertas), outra é cristalizar-se em velhos esquemas mentais que sempre transformam o futuro numa amarga repetição do passado.

Em síntese: 1. Defeitos passados são marcas de personalidade positivas, quando aceitos como parte constitutiva de nossa biografia singular (e por isso existencial e esteticamente consistentes) e re-significados pela nossa perspectiva presente; 2. Vida em virtuosismo pleno é não-vida, pelo menos na forma humana como até hoje a temos conhecido; 3. Podemos usar a perspectiva do futuro para analisar o presente, e agir com desenvoltura calculada, a fim de manejarmos impulsividades que no congelem em velhos erros, impedindo-nos de manifestar o traço mais apreciável dos seres humanos: errar com originalidade e com as melhores intenções.


Sandro Sell

18.6.10

A um passarinho


Para que vieste

Na minha janela

Meter o nariz?

Se foi por um verso

Não sou mais poeta

- Ando tão feliz!

Se é para uma prosa

Não sou Anchieta

Nem venho de Assis

Deixe-te de histórias

Some-te daqui.


Vinicios de Morais

17.6.10

10 motivos para supor que o êxtase melhorará nossa política antidrogas

1º. O mercado de ecstasy concentra os consumidores mais ricos e a droga vêm do exterior, trazida por moços acima de qualquer suspeita; portanto, esses consumidores não injetam dinheiro nos traficantes armados nacionais, que perdem espaço e dinheiro para comprar armas (menos balas perdidas!!!);
. As festas raves, quando associadas ao consumo de ecstasy, mostram uma realidade válida para as drogas em geral: estas só geram crimes (para além dos elementares porte e tráfico) quando são efetivamente proibidas. É dessa proibição que surge a necessidade de se armar, corromper e matar para garantir que a droga chegue – e permaneça - nos mercados de repasse;
3º. É falta de conhecimento pensar que o sujeito drogado se torna – só por isso - mais perigoso do que os demais cidadãos. Quando você bebe, nem por isso sai por aí querendo matar os outros. Quando a rapaziada faz uso da “bala”, dançam freneticamente, tornam-se serial-kissers, pulam feitos sapos, mas não matam os coleginhas de festa;
4º. Os garotos das raves (“menores”, se fossem funkeiros), devido ao consumo exagerado de ecstasy podem mesmo vir a óbito (um problema individual de escolha e, no máximo, social, de saúde pública), mas não barbarizam a vida alheia, - o que, aí sim, seria um problema de segurança pública;
5º. Os consumidores de ecstasy são riquinhos e muitos deverão ser enquadrados por tráfico, a sociedade gostará de ver, ainda que por uma noite, filhinhos-de-papai na cadeia (“perseguição aos playboys!”);
6º. Uma noite só? Você que leu a lei de drogas deve estar discordando. Certo, no rigor da lei, você tem razão, tráfico é equiparado a crime hediondo, mas tal classificação, meu ingênuo leitor, surgiu pela pressuposição – dogmática, no sentido persecutório do termo - de que só quem cometeria ações de tráfico seria o neguinho do morro (você sabe o que a nova lei trouxe em benefício do menininho-consumidor-bem-nascido? Eu conto: no lugar de uma pena, uma bronca do titio-juiz, uma excrescência chamada “audiência de admoestação!”). Mas agora que vai ser “fichado” como traficante, o bom-menino-do-bom-colégio-do-pai-bem-empregado-e-do-advogado-rico, todos (principalmente os mais moralistas e dogmáticos) vão chegar a brilhante conclusão de que a lei de drogas é ruim, fascista mesmo;
7º. Então acontecerá o inesperado: juristas dogmatas moralistas, com o filhinho atrás das grades, tirando injustamente a vaga reservada aos mostrengos de favela, vão ler os odiados, os irresponsáveis, os quase-meliantes autores críticos e, com base neles, farão diferenciações impensáveis pela prática jurisprudencial do dia anterior. Salientarão que a lei de drogas pune com mais seriedade um traficante do que quem rouba, do quem estupra, do quem mata – não se engane com a pena mínima, é muito mais fácil você ser absolvido nesses últimos três crimes do que no de tráfico. Dirão que cadeia não conserta ninguém, - menos ainda seus filhinhos... Anote aí: a lei de drogas será dita inconstitucional, e até cestas básicas serão tidas como suficientes para penalizar crimes de tráfico – de ecstasy no início, depois - para não ficar feio - para as demais drogas;
. Como o esctasy está escondido na cobertura de luxuosos edifícios, a classe jurídica e política (que se avizinham em tais lugares), assustados com a devassa policial, mudarão a lei e a jurisprudência. Salientarão como óbvia e urgente aquela velha denúncia dos autores-críticos-quase-meliantes, de que não se pode ir metendo os pés nas portas alheias sob a desculpa de que, sendo o tráfico um crime permanente, o flagrante estará ali, presumidamente no aguardo, dando à autoridade a desculpa para arrombar qualquer porta, sem mandado ou coisa que o valha. O Supremo vai mudar a jurisprudência nesse sentido. Pode anotar!
9º. Abandonados pelos financistas da droga (aqueles figurões que não botam os pés no morro, mas botam os lucros das mortes do tráfico na Suíça), os traficantezinhos de favela serão exterminados de vez, pois terão se tornado apenas fonte de incomodação e não mais parceiros de crime;
10. A polícia fará plantão nas festas raves, cuidando para que o menininho não convulsione, nem torça o pezinho, com isso teremos um lado mau: sua casa será assaltada, já que os policiais estarão todos na rave, cuidando das crianças-zona-sul, para que elas não botem cacaca na boca. Então no lugar da caveira, o BOPE terá como símbolo a mamadeira e o capitão Nascimento fará, finalmente, jus ao seu nome.

16.6.10

Verdade, amor e solidão



Ao que parece, não fomos feitos para a verdade. Não somos animais epistemológicos, nossa capacidade de crer em algo tem mais a ver com nossa necessidade de sobrevivência do que com as exigências rigorosas das descobertas científicas. Tanto é assim que nossas crenças mais importantes são as mais questionáveis: crença no amor do outro (que provas se podem exigir?), crença na existência de Deus (que prova se pode obter?), crença na melhora de nossa situação (como podemos confirmá-la?). Mas sem tais crenças, como sobreviveríamos? Como teríamos filhos, plantaríamos árvores e escreveríamos em blogs ou livros?
Não é à toa que todos (do Einstein ao Esteves da Tabacaria) esboçam crenças igualmente duvidosas sobre as situações citadas. Todos são igualmente imaturos e ingênuos nas suas crenças sobre o amor, Deus e o destino. O cinema explora bem isso, quando mostra como os homens mais inteligentes comportam-se feitos pré-adolescentes diante de uma menininha bonita: todo o seu saber sobre verdades não lhes dá um passaporte privilegiado ao mundo das pequenas incertezas onde repousam nossas esperanças e felicidades.
Mas a crença no logaritmo, na lógica quântica, ou na teoria da evolução, é coisa tão pouco necessária a se levar a vida - e dar-lhe continuidade - que poucos realmente as adquirem. Tratam-se de produtos de luxo no supermercado da credulidade. O sujeito as adquire se quiser, mas isso não o torna mais apto para as demandas mais radicais da existência. Quem se lembra do filme Uma mente brilhante, percebe como a genialidade para o existencialmente inútil (embora socialmente fenomenal) de J. Nash convive com sua imbecilidade emocional e existencial.
Fernando Pessoa remete a isso quando seu rebuscado narrador do poema Tabacaria iguala-se num sorriso ao Esteves-sem-metafísica: o mistério da superfície iguala-se ao mistério do fundo. Fumar charutos ou criar filosofias, no final, resulta na mesma inutilidade: o sujeito sai de tais atividades sem nenhum consolo consistente ao que lhe oprime o peito; são apenas distrações do espírito, para esfumaçar as demandas por um sentido de vida que não seja precário e passageiro.
Nietzsche parece ter chegado a essa conclusão. Não é sem razão que dizia que suas verdades eram todas verdades sangrentas, sofridas. No entanto, errou na saída. A idéia do seu super-homem, aquele que poderia dançar, afirmar-se corajosamente e triunfar num mundo sem deuses ou amores plenos, era uma saída tão irreal ao seu niilismo, que ele próprio nunca chegou sequer perto dela: viveu enlouquecido, indignado e desprezado. O magistral filósofo (talvez o maior de todos), não conseguiu sequer se livrar do julgo da irmã autoritária, da maldição de um pai severo e das peripécias histriônicas da Lou Salomé.
Seu Zaratrusta devia ter deixado mais claro que não há escapes verdadeiros para as crises de sentido: apenas distrações. E para isso tentaremos de tudo: beberemos álcool, inventaremos poesia, filosofia e teogonia; passearemos com cachorros e namoradas, baixaremos aquela canção do youtube; teremos filhos, carros e bicicletas; faremos academia, bolos e castelos de lego; tatuaremos o corpo em busca da nossa tribo, desprezaremos outros que não pertencem a ela. Diplomas na parede, prozac na gaveta, terapia agendada. Uma nova promoção (que atesta nosso sucesso na distração), uma nova casa (para guardar velhos troços e fantasmas)...
Tentaremos também o amor parte 1, o amor parte 2, e, decepcionados, descobriremos que o amor partes 3 a n, é apenas o amor 1 e 2 sob novos corpos. Mas aceitaremos os novos assim mesmo, pois se o amor não nos dá o sonhado sentido da existência, nos dá, ao menos, a temporária idéia de que é possível viver sem um sentido para além do amado. Mas essa distração também cansará. Virá a crise, eas demandas por verdade surgirão de cada lado da cama. Por trás da exigência de “parar de viver uma farsa”, de recuperar “a verdade da relação”, está o essencial motivo: o auto-engano acabou, nossa demanda por sentido está de volta.
De novo, sozinhos. Cada um com suas velhas crises atribuídas a novos culpados. Cada um se sentindo incompreendido e maltratado do seu lado. Cada um querendo uma briga, uma análise, um processo, a palavra de uma autoridade que lhe diga: “Foi ele (ou ela) o errado!”. Maneira hipócrita de tentar esquecer que o errado mesmo foi acreditar que um outro (tão perdido quanto nós) pudesse resolver o insolúvel. Mas, lutamos, advogamos à altura de nossa indignação e ganhamos o processo. E é, então, que podemos, tranqüilos, com pleno sentimento de posse, chorar sobre a cama que era repartida e agora é apenas nossa, de pleno direito.
Vencemos! E assim recuperamos nosso sagrado direito de dormir atravessados e sonhar velhas fantasias...

15.6.10

traídos pelo falso em nós

É de manhã; mas não há manhã que possa restaurar
O que pusemos a perder.
Não vejo pecado algum:
O mal está misturado. Na trágica vida, Deus sabe,
Não há necessidade de vilões! A paixão tece a trama:
Somos traídos pelo que há de falso dentro de nós mesmos
.
George Meredith (Modern Love).