10.7.10

Zonas de incerteza punitiva


Uma das formas de entender os raciocínios que, em Direito, ligam o crime à pena é a idéia de zonas de certeza punitiva. Quando uma conduta dita criminosa, em termos jurídicos, for também uma transgressão social (causar repulsa pública) emergirá como corolário lógico a idéia de que a ela deve corresponder uma punição. Pensemos num indivíduo que, por mera ganância, mata a esposa para receber um seguro de vida. É difícil encontrar quem discorde que, neste caso, uma punição penal é devida e merecida. Estamos na zona de certeza positiva: é claro que é crime. Zona de certeza punitiva positiva é aquela em que direito e sociedade concordam: a conduta sob análise é crime e merece uma resposta à altura.
Em outras vezes, há uma grande clareza de que uma dada conduta não é criminosa, e qualquer um sabe disso. Pensemos num casal de namorados beijando-se em público. Há ainda quem ache que merecem punição? É claro que houve um tempo em que tal beijo, se fosse lascivo, – como diria o vetusto tratadista, - suscitava a repugnância pública e o enquadramento criminal. Hoje não. Muito embora haja em Direito penal uma estranha mania de dar voz a autores do passado na interpretação de costumes do presente, a idéia de que um beijo na boca seja portador de lascívia criminosa é algo superado, tendo se tornado uma ação penalmente irrelevante. Trata-se de conduta situada na zona de certeza criminal negativa: é claro que não constitui crime.
Como resposta a ambos os casos – matar por ganância/ beijar com desejo - o consenso é esperado: deve-se punir aquela morte; deve-se isentar esse beijo. Zona de certeza positiva e zona de certeza negativa, respectivamente. A regra é clara, como diria, em uníssono, o comentarista, o juiz e a sociedade. O Direito aqui é cheio de certezas. Não sendo necessário para aplicá-lo nenhuma sutileza, apenas uma consulta às fontes jurídicas e sociais do presente. Em outras palavras, basta interpretar a lei antevendo a revolta que causaria a absolvição do que mata por cupidez e a indignação resultante da punição do casal por seu beijo. Nessas situações, a resposta jurídica devida aparece sem meio-termo, ou é ou não é. São casos para comemoração no edifício da dogmática. Finalmente, o Direito apresenta-se claro, claríssimo. É destacar a norma e colar no caso.
Mas, no mais das vezes, estamos diante de condutas fronteiriças, não sendo possível dizer, de pronto, se são ou não criminosas. Fim de festa na casa dogmática. Pensemos na interrupção intencional da gravidez do feto anencefálico (feto sem cérebro). Muitas decisões sustentam tratar-se de crime de aborto; outras, dizem que não se trata de crime, pois, sem cérebro, não há vida viável e seria crime impossível atentar contra a vida de um feto que, "tecnicamente", não é vivo. Aqui há polêmica. Polêmica indica a existência de dúvida razoável. Há pessoas inteligentes e bem intencionadas dizendo sim, e outras, igualmente qualificadas, dizendo não. Não há como simplesmente passar a régua, a conta não fecha. Estamos, neste caso, na zona cinzenta do sistema jurídico. Falta clareza. Olhando por um lado, acha-se que é crime, olhando pelo outro, acha-se que não. Onde católicos enxergam crime, feministas laicas enxergam o exercício de um direito; onde alguns vêem uma desvalorização da vida humana em suas diferentes formas, outros anunciam o surgimento do respeito devido ao corpo e sentimentos femininos. A desejada certeza penal resta esfacelada.
Muitos tipos penais são excepcionalmente pródigos em produzir zonas cinzentas. Pensemos no artigo 233 do Código Penal. Ato obsceno. "Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa". O que é ato obsceno? Segundo Maggiore, ato obsceno representa a conduta positiva do agente, com conteúdo sexual, atentatória ao pudor público, que suscita repugnância". Resolvido? Não. Tudo bem. Só os incautos conseguem dar rápida operacionalidade penal a tal conceito. As pessoas ponderadas enchem-se de dúvidas. De fato, a explicação dada por Maggiore não permite nenhuma segurança jurídica, pois dizer que ato obsceno são condutas com conteúdo sexual ofensivo ao pudor público equivale a dizer que é ato obsceno o que a sociedade assim o considerar. O beijo ardente, o topless, a micção no muro da escola, serão ou não tidos por obscenos? Zona tão cinzenta e embaçada quanto as vidraças do carro em que namoram, lascivamente, o casal apaixonado na fria madrugada do fim-de-festa, pondo em polvorosa a donzelice do Direito e a hipocrisia da sociedade. Na caracterização de um ato enquanto obsceno um juízo de valor há de ser feito. A obscenidade de um ato depende do que se entenda por pudor público.
Plácido e Silva, em seu respeitável Vocabulário Jurídico, vem a nosso socorro, dizendo que pudor público: "É o decoro público ou sentimento coletivo a respeito da honestidade e decência dos atos, que se fundam na moral e nos bons costumes. Ofender o pudor público, assim, é praticar atos que ofendam os bons costumes e a moral pública." Como já se deve ter notado, para utilizar essa explicação é preciso saber antes o que é decoro público, é preciso saber o que é decência e moral públicas e, nessa redução sucessiva, nos depararemos sempre com a necessidade de fazer juízos de valor, acerca do que é ofensivo ou não, do que é bom ou mau. Ledo engano, o velho Plácido não nos socorre e a dúvida permanece.
Mas mesmo neste polêmico artigo 233, há zonas de certeza. Certeza positiva: é crime. Imagine um homem normal que baixe as calças na via pública e comece a se masturbar, sem se importar com os transeuntes. Ponto para Maggiori: é conduta sexual que choca o público. É ato obsceno. Merece reposta pública e criminal. Até o pai do acusado há de concordar. Plácido e Silva pode ser aplicado na íntegra: isso ofende os bons costumes, a moral pública, a decência e outras coisas mais. É tão óbvia a obscenidade desse ato quanto óbvia é a não obscenidade do beijo que a noiva dá no noivo por ocasião do casamento. Nesse caso, Maggiori, o padre e as testemunhas - embora possam antever nele intenções lascivas – emocionam-se sem se chocar. Zona de certeza negativa. Podem dispensar o delegado, o fato é atípico, digno até de beatificação.
Mas e o sujeito que toma banho nu no pátio de sua casa, sem se importar com a vizinhança, por ser adepto do naturismo? Está no seu direito ou abusando dele? Está em prática de ato obsceno ou em exercício regular de seu direito de propriedade e de livre expressão? Há polêmica. Zona cinzenta. Veja que ele não manifesta intenções lascivas – sexuais - ao tomar banho no quintal, apenas não vê problema em que os outros o vejam nu, embora ele não se esforce para que isso ocorra. Porém, o que dizer da opinião pública expressa pelos vizinhos? Parece legítima. As mães baixando a cortina, as visitas chocadas e por aí vai. Mas também não nos parece totalmente ilegítimo o direito de quem – sem intenção libidinosa – no interior de seus muros, queira bronzear-se sem roupa. Mas, e as crianças vizinhas? É, infelizmente, essas hipotéticas crianças já devem ter sido socialmente condicionadas pelos adultos a presumir lascívia no corpo desnudo. Crianças índias não se chocariam, já que não tiveram seu olhar enviesado pela moral cristã do corpo-pecado. Tudo bem, tiremos as crianças da cena. Na vizinhança só há adultos. E agora? Têm os adultos vizinhos maior direito a reprimirem a conduta do nosso naturista do que este de expressar-se, em casa, da forma como lhe parece correta? Zona cinzenta.
Há mais.
Em outubro de 2003
, o polêmico diretor de teatro Gerald Thomas, como protesto às vaias dirigidas a seu espetáculo, baixou as calças, mostrou as nádegas ao público e simulou masturbação. Ato obsceno? Foi processado e conseguiu um apertado habeas corpus no Supremo Tribunal Federal: 2 votos a favor, 2 contra. Beneficiou-se do empate. Mas ficou claro em quão cinzenta zona o acusado se movimentava. O fundamento dos votos que o absolveram baseou-se no fato de que o espetáculo era para um público urbano, elitizado, e ocorrido às 2 horas da manhã. De fato, é possível acreditar que diante do comportamento grosseiro do diretor muitos se houvessem ofendido, mas difícil é acreditar que se sentiram sexualmente molestados. Tanto assim o é que, se Gerald houvesse feito idêntica conduta como personagem de sua peça, o público a consideraria como exercício de liberdade de expressão. Parece que o diretor não errou na ação, mas no momento de sua inserção diante do público.
Em julho de 2003, o casal homossexual João e Rodrigo beijou-se no hall do shopping Frei Caneca, em São Paulo. Segundo testemunhas, foi um beijo efêmero, um "selinho". Mas os seguranças do shopping não gostaram e o repreenderam. Tal beijo constituiu ato obsceno? O shopping alegou que sim. A reprimenda ao beijo foi um ato discriminatório? O juiz assim o entendeu. E lembrou que se fosse um casal heterossexual a importunação dos seguranças não teria ocorrido. Dado que, no Brasil, ser homossexual não é crime, proibir manifestações de afeto homossexual que seriam toleradas de casais héteros, de fato, parece abusivo. Mas, e o pudor público? Certamente que chama mais a atenção um beijo entre dois homens (ou duas mulheres) do que entre um homem e um a mulher. Lembre-se que para Maggiore o ato de caráter sexual há de causar repugnância no público para haver ato obsceno. E se os freqüentadores do shopping houvessem sentido a tal repugnância? Haveria ato obsceno? Que tipo penal é esse que depende do que dele os outros pensam?
Quando uma conduta encontra-se situada na zona cinzenta do sistema penal, caberá ao intérprete ressituá-la em um dos extremos do continuum: não crime - zona cinzenta - crime. Acusadores vão tentar mostrar o crime da conduta; defensores farão o contrário. Como nosso sistema é in dubio pro reu, o trabalho dos que defendem a não existência de crime, nestas hipóteses, haveria de ser sempre mais fácil. Mas dificilmente é assim. Uma conduta situada em zona cinzenta, não podendo ser enquadrada unicamente a partir de critérios jurídicos, será enquadrada pelos critérios da moralidade estabelecida. In dúbio pro mores. O topless seria, talvez, ato obsceno numa piscina pública no interior catarinense, mas não o seria na Praia Mole, em Florianópolis. É justo punir a moça que exibe seus seios em Chapecó e tomar como exercício regular de direito a mesma conduta realizada na Capital? Nos dois casos há mais presunções do que conhecimento efetivo sobre a tolerabilidade social de tal conduta. Nem todas as pessoas de Chapecó se chocariam com os seios à mostra; nem todas as pessoas de Florianópolis seriam a isso indiferentes. Na ausência de sondagens seguras sobre a quantas anda a moralidade regional, tudo dependeria da cabeça do julgador, - que freqüentemente é pessoa estranha aos costumes locais. A segurança da lei é, então, substituída pelo risco de uma opinião pessoal.
Clarear zonas cinzentas pelo recurso à moral ocorre também em outras situações, quando a falta de certezas jurídicas é substituída por uma perigosa certeza moral. Imaginemos um indivíduo que, testando seu novo automóvel, em alta velocidade, atropela e mata um pedestre na faixa de segurança. A dúvida, neste hipotético caso, não é se houve crime. Parece claro que sim. A zona cinzenta paira aqui sobre a intenção do agente. Ele jura que se tratou de ato culposo. Foi imprudente, reconhece. Mas o promotor e a família da vítima discordam. Acham que ele, ao dirigir daquela forma numa via pública, assumiu o risco de produzir mortes e querem o seu enquadramento por homicídio doloso. Enquanto cada uma das partes tenta convencer o juiz de tratar-se de crime com ou sem intenção, imaginemos que surge uma notícia até então não sabida. Ele não estava sozinho no carro. Havia mais alguém, que se evadiu antes da chegada da polícia. A dúvida é sobre quem era o/a acompanhante. Advogado e promotor ficam imaginando quem eles gostariam que fosse, a bem de suas respectivas teses. E surgem dois cenários.
Cenário 1. Na imaginação do advogado de defesa, ideal é que o acompanhante fosse o filho do acusado, de dez anos, para quem o pai queria mostrar o desempenho do novo carro. Cenário simpático. É possível até imaginar o resto da história. O carro novo, o filho empolgado dizendo: "Acelera, pai!". O pai, sem se dar conta da imprudência, atende o esperançoso desafio da criança, e o azar! Infelictas facto! Foi agradar o filho e desagradou a sociedade! Por imprudência acelerou, por desgraça atropelou. Não houve dolo (intenção criminosa), apenas culpa (ausência de cautela).
Cenário 2. Na imaginação do promotor, bom seria se o acompanhante não fosse o filho, mas a amante do condutor, mulher casada, que se evadiu para evitar vexame. "Mulher à-toa, casal ordinário!". Aqui também se pode imaginar o resto da história: lascivamente, a fêmea infiel pede: "Acelera aí, amor", e ele, pensando que o mundo se restringia ao bordel em que se convertera sua vida, pouco se importa com os outros. "Que se danem!" Primeiro ele, primeiro ela. Os dois e suas aventuras exigem prioridade. Não há faixa que os detenha. Os outros? Os outros é que se acautelem!
Agora responda: em qual dos dois cenários há maior probabilidade que o homicídio seja tido como doloso? Bingo! Mas, veja bem, o fato de estar acompanhado de um filho, da avó, de um travesti, da amante ou de um fugitivo nada tem a ver com a questão sob julgamento, que é a de se a ação foi ou não dolosa. Pode ter sido dolosa com o filho e culposa com a amante. Mas, na zona cinzenta, a moral é chamada a ajudar no convencimento e é muito mais fácil encontrar o que reprovar criminalmente quando moralmente a conduta é deplorável.
É que o Direito é isso mesmo: convencimento. Convencer com base na lei. Convencer com base nos princípios jurídicos. Reunir evidências, provas e vestígios. Mas na zona cinzenta a prova é dúbia, o direito é nebuloso, os princípios são amplos demais. Não há o que fazer. Então, chama-se a moral para deslindar a questão. E chega ela com sua tacanha divisão de tudo em definitivamente certo e definitivamente errado. Momento de festa nas mentes simplistas. O réu será julgado pelo acompanhante que levava e não pela intenção que teve – nebulosa demais para se saber qual era. O direito passa aqui de custus legis (fiscal da lei) para custus mores (fiscal dos costumes). Feliz do safado bem acompanhado; lamentável a situação do honesto mal acompanhado.
Dize-me com quem andas e eu te direi teu destino penal.

3.7.10

Identidade e estigma


Nem sempre a pessoa tem como gerenciar sua imagem social. E, por vezes, a sociedade exige uma composição autobiográfica com ênfase na pior descrição que o indivíduo pode fazer de si mesmo. Isso ocorre com aqueles que são vítimas de estigmas. Estigma é, com efeito, uma atribuição negativa que inferioriza um indivíduo ou um grupo. Certas condições de nascimento (como cor da pele), de situação (como pobreza), de saúde (como ser aleijado), de moralidade (como ser criminoso) e de pertencimento (como ser cigano) são indutoras de estigmas. Elas facilitam a definição de seus portadores como decepcionantes exemplos de manifestação da condição humana.
O efeito básico do estigma é impedir que seu possuidor seja visto para além da situação que, aos olhos dos outros, o inferioriza. Assim, portadores do vírus da AIDS não são vistos como pessoas doentes, mas como “aidéticos”, um termo que simplifica a identificação social do sujeito, tornando-o quase uma subespécie. É como se o estigma apagasse a complexidade de seu portador em benefício de uma identidade socialmente desvalorizada. Nas prisões, existem criminosos – estigma genérico – e não pessoas que cometeram, em momentos específicos de sua vida, crimes. Nos manicômios, existem loucos e não pessoas com complicações existenciais. Não existe vida para além do estigma. Assim, quando nos jornais lemos manchetes como “Prostituta é encontrada morta”, isso, quase sempre, significa que ninguém se ocupará da história da pessoa por sob o rótulo. Prostituta é resumo suficiente de tudo o que aquela pessoa foi na vida, assim como ser encontrada morta integra de forma coerente seu destino esperado.
Na clássica obra Estigma (1988), Erving Goffman não deixa dúvidas de que os estigmatizados sabem o peso do estigma sobre o curso de suas vidas. Podem se sentir desacreditados. Isso ocorre quando sabem que seu estigma é conhecido. Como o aleijado que se sente apenas um aleijado. De outra parte, quando seu estigma é ocultável, sentem-se desacreditáveis. Vivem sob a paranóia de, a qualquer momento, virem a ser desqualificados. A estudante que, secretamente, é prostituta sabe que sua identidade de pessoa normal e aceita é provisória: a qualquer momento o estigma pode emergir como sinônimo de si própria.
Mas a ambigüidade que é, tantas vezes, a regra social no trato com os estigmatizados também se apresenta. Ora os estigmatizados têm seus defeitos superdimensionados pela sociedade, ora são depositários de fantasiosas qualidades excepcionais. Escreve Goffman (Estigma, 1998:15):
Tendemos a inferir uma série de imperfeições a partir da imperfeição original e, ao mesmo tempo, a imputar ao interessado alguns atributos desejáveis mas não desejados, freqüentemente de aspecto sobrenatural, tais como sexto sentido ou percepção.”
Ciganos e cegos são, não raramente, considerados portadores de poderes de percepção, intuição e previsão aguçados. Ter esse acesso ao sobrenatural é característica não necessariamente negativa, mas, em geral, não desejável para as pessoas normais. O juiz de direito que, em noites específicas, atua como “pai-de-santo” fará de tudo para esconder essa sua possibilidade de acesso ao além. Eventuais possibilidades dessa natureza não combinam com seu status de pessoa respeitável. Mas, ao revés, são capazes de tornar mais intrigante e, mesmo, digna de algum respeito a existência dos estigmatizados.
Um último efeito a ser salientado sobre as situações de estigma é que a posse de um facilita a aquisição de outro. Assim, quem é estigmatizado como sendo simplesmente “negro” ou “cigano” corre sério risco de ganhar outros estigmas como de “ladrão” ou “preguiçoso”. Para quem possui o estigma de aidético é facilmente visto também como homossexual. Para quem é apontada como prostituta não é difícil ser tida também como “mãe desnaturada” e desonesta. Um estigma atrai o outro, afundando seu portador em identificações sociais cada vez mais negativas.

Sandro Sell (do livro Comportamento social e anti-social humano).
Imagem: Picasso, Self Portrait Facing Death

2.7.10

Espelho e reconhecimento



A frase "ser é ser percebido" pode ser tomada também, para longe de seu contexto original (e do post anterior), como um imperativo ético contra a indiferença. A tal da ética do reconhecimento de que fala Charles Taylor e o Thiago Fabres: o olhar do outro nos constrói, nos melhora, nos deturpa ou nos destrói. E, por contraposição, a ausência de reconhecimento alheio, nos torna vazios, solitários e vegetativos.
O que é nossa identidade pessoal senão uma constante negociação entre uma vacilante auto-intuição e aquilo que os outros vêem em nós?
O olhar dos senhores coisificava os escravos, o olhar da tradição estupidificava as mulheres, o olhar dos padres originava o pecado, assim como o olhar do amante faz surgir à beleza inigualável da amada...
Em Psicologia social, chama-se esse dom, de construção do sujeito pelos seus expectadores referenciais, de efeito Pigmalião- referindo-se ao mito do escultor que amou uma estátua como se fosse pessoa e, assim, conseguiu torná-la gente (quem se lembra do filme My fair lady, recorda como a personagem de Audrey Hepburn passa de uma florista vulgar a uma nobre dama, simplesmente porque seu “amigos” conseguiram fazer com que ela fosse vista dessa segunda maneira – o nome da obra que deu origem ao filme era mesmo “Pigmalião”, de Bernard Shaw).
Nossa existência significativa, para nós e para o mundo, vai surgindo como resultado daquilo que Charles Cooley chamava de nosso reflexo no espelho social. Sabemos que existimos e que somos assim e não assado na medida e na maneira em que somos refletidos no olhar do outro. Jacquard diz:
“Minha capacidade para pensar e dizer “eu” não me foi fornecida pelo meu patrimônio genético; o que esse me deu era necessário, mas não suficiente. Só consegui dizer “eu”, graças ao “tu” que ouvi. A pessoa que sou não é o resultado de um processo interno solitário; só pôde construir-se encontrando-se no foco dos olhares dos outros. Não só essa pessoa é alimentada com todas as contribuições dos que me rodeiam, mas sua realidade essencial é construída pelas trocas com eles; eu sou os vínculos que vou tecendo com os outros.”

Se é o olhar que gera o mundo e seus seres, com maior razão ainda é ele que coloca os adjetivos nas coisas já percebidas. O olhar do pedófilo torna a criança apetitosa; o da mãe, a torna inocente; o do humanista confere dignidade ao criminoso que, pelas maiorias morais, já tinha se feito monstro.

Não alimente os presos!
Somos criaturas
de relação não apenas porque precisamos dos outros para sobreviver, mas porque precisamos deles para ser algo mais do que uma besta de cerébro avantajado. Um cão pode ser um cão na ausência de outros cães, enquanto nós só nos "humanizamos" no contato com nossos semelhantes, no reconhecimento recíproco de nossa humanidade.
Os párias de todo lugar, os deserdados, os que perderam a referência do olhar que humaniza, vivem num mundo existencialmente precário. Cadáveres sobre pernas vivas...
Vemos esses andarilhos de beira de asfalto: roupas podres, barba cavernosa, e um andar apressado como se estivessem a ponto de perder o vôo. Para onde vão esses indesejados com ares de subespécie? Seguem algum tipo de fluxo migratório? Seus resmungos de loucura, sua pele torrada a 40 graus, sua decisão firme de manter-se paralelo ao traçado da BR, atravessado por milhares de olhares motorizados, parece indicar uma necessidade de reforço megalômano de que de fato se perdeu tudo. Um milhão de olhares e nenhum reconhecimento de similitude, não tem como não se permanecer indigente...
Então os alunos me perguntam:
- Professor, quando é que a gente vai visitar o presídio?
- Vocês querem ver presos?
- Queremos!
- Façam publicamente um ato moralmente vergonhoso, depois tranquem-se no quarto e, passadas algumas semanas, olhem-se no espelho.
- Ah, professor, mas assim não vale, nós somos normais.
- Pois é, vocês são normais... Agora entenderam por que eu nunca irei levá-los?
- Não!
- Porque criaturas que se acham normais portam olhares anormalizantes e é justamente esses olhares que fazem com que estar na penitenciária seja intrinsecamente diferente de estar trancado no quarto.
- O Senhor está dizendo que a gente iria para estigmatizar os presos?
- Não, eu estou apenas dizendo que vocês aproveitariam melhor o seu tempo indo ao zoológico.
- Mas - ironiza um deles - nós não fazemos Biologia e sim Direito!
- Porém carregam os mesmos olhares dos biólogos diante de colônias de bactérias... O dia que construírem o olhar da semelhança, poderão ir à vontade, pois então a curiosidade de "ver presos" será substituída pela angústia da troca de olhares entre humanos. E aí,meus amigos, o bicho pega e vocês nunca mais vão conseguir dormir em paz, pois perderão a fantasia do que separava o eles e o nós. É mais ou menos como, aos 6 anos, descobrir que o papai noel sempre esteve na casa da gente, com gente, e que qualquer um pode vir a sê-lo: inclusive eu ou vocês...
- Entendi, prof! Acho que o zoológico será mais divertido mesmo...
- Com certeza! Até a próxima fase.
Sandro Sell
Imagem: Pablo Picasso: Girl Before a Mirror,1932. Oil on canvas, 64 x 51" (162.3 x 130.2 cm). The Museum of Modern Art, New York

30.6.10

A filosofia do espelho


Ser é ser percebido.
Essa frase de George Berkeley sempre me perturbou. Ser é ser percebido, ou seja, nada existe fora da percepção. A existência dos seres no mundo depende do fato de que alguém os esteja notando. Se ninguém notar, eles não existem.
Se os idealistas berkelianos estiverem certos, o mundo humano é, então, semelhante a um sonho, se pararmos de sonhar (perceber onírico), toda aquela “realidade” que nos encantava, agoniava, excitava ou apavorava desaparece imediatamente.
O que reflete o espelho quando ninguém o está vendo?
Refletiria as coisas que estão à sua frente? Não, ele refletirá as "coisas" habituais apenas se um humano olhar para ele. Loucura? Em termos práticos, parece. Mas se você pensar que as coisas como as percebemos são o resultado da “leitura” que nossos sentidos fazem delas, a afirmação começa a fazer sentido. O espelho do daltônico não faria distinção entre verde/vermelho; o do cão não atribuiria às coisas à maior parte de suas cores; o da anoréxica mostraria gordura onde outros só veriam pele e osso. Isso ocorre porque o espelho não reflete as “coisas”, ele reflete, isto sim, a “nossa percepção” das coisas. Logo, nada parecido com o que vemos no espelho pode estar nele sem alguém que o perceba.



espelho de anoréxica, mentiroso. Mas qual não é?


“Ah”, diz você, “mas as pessoas normais verão todas as mesmas coisas!” Se é que existem coisas além da percepção, o que você está chamando de normal são as pessoas que possuem uma percepção semelhante à maioria das outras. Anoréxicas, cães e daltônicos não são os normais para o caso. Mas se o daltonismo fosse a regra entre humanos, quem não o fosse seria acusado de imaginar distinções de cores inexistentes na “realidade”. Em terra de cego –dizia Marceu Mauss – quem tem um olho só é aleijado! Não, a vantagem dos “normais” não está em perceberem corretamente (em relação à realidade das coisas), mas só em perceberem da forma socialmente normatizada para cada funcionalidade social (homens não vêem a metade das coisas que as mulheres vêem em seus espelhos!). E o socialmente útil não significa essencialmente verdadeiro.
Assim, uma pessoa que não visse as coisas invertidas no reflexo do espelho (o lado esquerdo tornando-se direito e vice-versa) como fazemos, veria uma imagem mais próxima da “realidade” do que a nossa, e seu espelho mostraria – para ele – uma outra realidade. Da mesma forma, quem tivesse uma visão tão potente quanto um microscópio, veria no espelho um mundo bastante distorcido em relação ao nosso habitual (ele logo teria que adquirir um espelho que diminuísse sua capacidade, sob pena de enxergar milhares de ácaros na sua face, ao invés de a barba por fazer). Que espécie de visão reflete exatamente o mundo lá fora?
Se há um mundo lá fora, não podemos saber, - a não ser com ajuda do nosso cérebro que, na melhor das hipóteses, filtra ao seu capricho à realidade que lhe chega e, na pior, cria a própria "realidade" que jamais existiu. Mas como não podemos ir lá fora sem nós mesmos, estamos condenados a viver sem saber se nosso mundo é uma conspiração da matrix ou a realidade é isso que de fato nos parece ser. Como dizia Wittgenstein: “não é possível sair da própria pele, analisar nossas práticas de um lado, o mundo do outro e voltar para comentar essa relação.”
Voltemos ao espelho. Aí você diz: “tudo bem, mas alguma coisa é refletida, ainda que nunca venhamos a saber exatamente o que é!” Bem, a nossa questão não era apenas se alguma coisa estaria sendo refletida na ausência de expectadores, mas se o espelho refletiria aquilo que ele habitualmente reflete, aquilo que faz com que o tenhamos instalado no móvel.

Fantasmas. Durante boa parte da infância, eu acreditava que os espelhos solitários na casa germânica da minha avó paterna podiam refletir fantasmas, almas de meus antepassados, - em geral com intenções mesquinhas e vingativas, porque havíamos descoberto no sótão seus velhos vestidos e moedas. E, de fato, muitos de nós (primos) acabamos vendo tais almas. Ilusão? Talvez... mas bobagem? Não sei. Só sei que se ser é ser percebido, aquilo que é percebido, ainda que erroneamente, ganha vida. Como argumenta a criança apavorada pelo pesadelo que a acordou: "como pode ser falso um monstro que me deixou assim?" (e pega a mão da mãe e põe sobre seu coraçãozinho saltitante). O monstro de pesadelo é tão real que pode enfartar o cardíaco enquanto dorme (e se a realidade não passasse de um sonho coletivo? - questionava-se Descartes, nas suas Meditações).

Por uns momentos, a ilusão compartilhada entre primos criou fantasmas, ressuscitou antepassados, povoou o sótão de assombrações. Quando crescemos, os estudos, a ciência, a razão, essas outras ficções, nos proibiram de ver tais coisas (de fato, só os que não foram à universidade continuaram percebendo...). E então – em tardias racionalizações - vultos no espelho tornaram-se apenas distorções provocadas, quem sabe, por alguma luz refletida, cuja origem não identificamos. Os espíritos voltaram às suas tumbas.
Esquecidos, eles de fato morreram.

(Às vezes acho que gostamos tanto de histórias de fantasmas pela esperança de que nos aconteça, após a morte, o mesmo que aconteceu com os fantasmas de meus antepassados: passem, nos velhos espelhos, a serem novamente percebidos e, assim, pela mágica da percepção alheia, voltem à vida. Alma penada seria, então, alma percebida. Alma intrometida novamente no mundo pela existência que os crédulos acharam razoável lhes dar. Alma penada é alma viva. Quanto às outras... bem, essas estão além da percepção, além do espelho, num mundo que, desde Kant, parece estar fechado para nós...)

Não me xinguem por tais reflexões! Quando não se é perfeitinho, refletir sobre o espelho pode ser mais divertido do que ver-se refletido nele.

26.6.10

O sagrado direito de duvidar

Grande e sem limite é minha tristeza. Ninguém sabe disso, exceto Deus no Céu, e Ele não pode ter pena.” (S. Kierkegaard).

Vim disposto a falar sobre Deus. E isso não é fácil. Nunca foi. Já rolaram cabeças e reputações por tal ousadia. Não pretendo ser a próxima vítima, por isso alego, em preliminar, que aqui não discutirei Deus em essência. Como poderia? Falarei tão-somente de algumas idéias que minha espécie – a humana – tem feito dele, ou melhor, Dele.

Falarei Dele porque Ele não fala comigo. E esse silêncio é insuportável. Seus supostos mensageiros, ah esses sim, falam demais, porém não convencem. Não é com esses que eu quero falar, quero o direito de ter uma audiência direta com o Pai, e com mais ninguém; quero perguntar-Lhe, à moda de Milton, frivolidades essenciais do tipo: por que transformou meu barro em homem? Por que me fez um animal metafísico que passa os dias a ruminar acerca de seu destino último? Por que sou esse serzinho que chegou à metade de sua existência provável sem ter a mínima idéia de se terá que enfrentar o Ser ou o Nada? Diga-me, Senhor Deus, sem metáforas, sem rodeios, sem intermediários, o que será feito de mim e dos meus?

Não chego aqui, então, para ofender carolas, beatos e suas crenças. Se podem crer firmemente – o que eu duvido – que se agarrem a isso! Não questionem, creiam, pois crer é mais útil do que saber. Os seres humanos não foram feitos para a verdade, não somos animais epistêmicos, fomos feitos para levar a existência como os camponeses de Montaigne: “Vão, vêm, pulam e dançam; e da morte nenhuma palavra.” Silêncio.

Outro dia minha filha de cinco anos perguntou: “Eu também vou ter que morrer, pai?”, Sim, um dia, respondi. “Mas por quê?”. Não sei, querida, só posso lhe dizer que há perguntas que quanto mais tarde a gente fizer, mais gostoso é o sorvete, mais doce é a noite e mais leve é a vida. Com mais poesia, Fernando Pessoa teria dito o mesmo:

Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!


Não tenho lá muita convicção de ter driblado a angústia da pequena Júlia. Mas, o que mais eu poderia fazer? Honestamente, dado que eu não tinha a resposta, só me sobravam o drible e o silêncio.

Mas Dele, eu posso exigir uma resposta que não seja um drible. Ele tem que me dar uma palavra sobre a morte e a vida. E tem que ser rápido, porque o tempo na Terra é acelerado para quem é mortal. Não posso por isso esperar a provável volta do Messias, pois temo já não estar aqui para recebê-lo. Eis o drama humano genérico encarnado em minha pessoal singularidade.

O que segue então é, à moda do que se faz em direito, apenas um embargo de declaração, recurso que interponho contra as lacunas e obscuridades presentes nas mensagens das religiões e seus heróis. O objetivo é simples: dizer que me deram razões insuficientes para crer e que viver assim não tem sido fácil.

Vamos ao texto.

Das provas da existência de Deus

Pesado e medido, acerca de Deus só temos provas testemunhais, aquelas mesmo que o velho jurista chamava de “a prostituta das provas”, dada facilidade com que se prestam à fraude. Se o testemunho for de um só, então o risco do engodo é tão considerável que a prudência romana não queria sequer ouvi-lo: testis unus, testis nullus.

O falso testemunho não é um problema relativo apenas ao estreito universo do Direito, na Ciência e na Religião ele também costuma aparecer, fazendo emergir um preocupante manancial de falsas alegações, falsas confirmações, falsos milagres e falsos santos.

Em adição, o testemunho humano quando não é frontalmente malicioso, corre ainda o risco de ser incorrigivelmente ingênuo. Nessa modalidade, a pessoa pensa que viu o que não viu, que ocorreu de uma forma o que ocorreu de outra, ou tira conclusões irrelevantes acerca do efetivamente visto. Assim não é raro um indivíduo dizer: “Eu posso dar testemunho de Deus, pois estava com câncer e me curei de uma forma que os médicos não puderam explicar!”. Ora, uma pessoa sensata só poderia disso concluir que sua cura estava fora do previsto pela Medicina e não que foi “Deus”, especificamente, que o salvou. Repare, inclusive, que um eventual crente no poder dos duendes poderia ter atribuído a eles a causa do seu “milagre”, - o que não seria logicamente diferente de atribuí-lo a Deus, já que os únicos fatos com os quais se está lidando, no caso, são a cura e a ignorância a seu respeito. Da ignorância não podemos derivar a existência de seres, quanto mais de seres específicos, ao estilo: “Só pode ser Deus”.

Por isso juizes e cientistas costumam ser bastante cautelosos com as testemunhas em geral. Pessoas ingênuas que vêem luzes no céu e que, por não saberem do que se trata, logo concluem serem “discos voadores”, e pessoas que identificam, “pelo jeito suspeito de olhar”, que o acusado deve ter sido mesmo o culpado são antes óbices que auxílio na busca da verdade.

O problema se agrava ainda mais caso as testemunhas forem de má reputação, ou se o seu testemunho harmonizar-se com seus interesses ou crenças. O testemunho de um médium sobre a verdade de um documento ter sido de fato produzido em estado de transe durante uma sessão espírita, é mais difícil de acatar do que o de um padre que, contra sua crença oficial, o confirmasse.

Boas testemunhas seriam, então, aquelas de boa reputação e não parcialmente interessadas no deslinde específico da questão.

Nesse aspecto as coisas se complicam para Deus, ou melhor para nossa crença Nele. Primeiro porque quase todos os testemunhos de manifestações de Deus provêm de funcionários de igrejas ou de seus mais fervorosos beatos. O testemunho de Saulo de Tarso seria nisso uma exceção, já que ele fora surpreendido por uma visão divina oposta às suas crenças, capaz de convertê-lo de perseguidor implacável de cristãos em seu embaixador máximo? Creio que não. Na essência, Saulo já era um crente, só migrou do Deus judaico para a sua mais notória dissidência, o Deus do cristianismo, - que nem é tão diferente assim. São extremamente raros os testemunhos de descrentes de verdade. Em regra, primeiro a pessoa se converte, depois recebe a graça de uma audiência particular com Deus ou suas hostes.

Mesmo a mais nobre testemunha divina – um certo carpinteiro – era pessoa má vista em sua comunidade, andava com pecadores, prostitutas, tinha pouca instrução, ainda que para os padrões da época. Não gozava de boa reputação geral, razão pela qual fora confundido com bandidos e equiparado a eles quando de sua condenação. Subiu à cruz sem conseguir provar a existência daquele que, segundo ele mesmo, faltara na hora marcada: “Por que Me abandonastes?”. Se o testemunho de Jesus não convenceu seus contemporâneos, que o mataram, por que convenceria as pessoas que dele só ouviram falar por relatos? Por que só uma escassa minoria dos que o conheceram pessoalmente levaram fé no que ele disse? Diante disso como aceitar facilmente que, muitos séculos depois, milhões de pessoas dizem-se tocados pessoalmente por suas palavras, como força viva? Seja como for, é certo que o impacto das palavras que Jesus pronunciou em vida foi imensamente menor do que aquele causado por elas após sua morte. Fruto da ressurreição, dirão alguns, ao que se responde: da crença na ressurreição, cuja garantia de ocorrência, novamente, depende do crédito que se atribua às poucas testemunhas que a alegaram, e que, logicamente, tinham interesse em propagar a história de que seu deus havia sobrevivido à crucificação.

Prova lógica

Conscientes de tais dificuldades, alguns funcionários da Igreja tentaram formular outras espécies de provas, cuja força não derivasse de relatos testemunhais. Santo Anselmo de Cantuária, ainda na Idade Média, foi um deles. Seu argumento ontológico constituiu uma criativa forma de validar logicamente a existência de Deus, sem que se precisasse apelar às sempre questionáveis verificações de fatos históricos.

Mais ou menos, dizia Santo Anselmo: por definição Deus é o ser perfeito, insuperável, e nosso entendimento pode compreender o que isso significa. Perfeito é aquilo que não pode ser aperfeiçoado, aquilo a que não falta nada, absolutamente nada, caso contrário não seria perfeito. Sabendo o que significa ser perfeito e que temos o entendimento de que Deus o é, pergunta-se: se Deus não existisse ele seria perfeito? Claro que não, já que lhe faltaria o mais essencial: a própria existência. Lembre-se de que ser perfeito significa ser completo, não carecer de nada, e quem carece de existência, carece de tudo.

Portanto, se Deus é perfeito, ele tem que existir. Se ele não existisse, não seria perfeito e assim não seria Deus. Em resumo: sem o atributo da existência, Deus não é perfeito e sem a perfeição Deus não é Deus, o que levaria a uma contradição lógica.

Deus existe, em verdade e lógica!

Apesar da elegância de tal raciocínio, que foi rejeitado por São Tomás de Aquino, ressuscitado por Descartes, e combatido por Hume e Kant, - já que derivava a existência de um ser a partir de atributos que a ele havíamos previamente atribuído. Com efeito, como poderíamos dizer que Deus é perfeito antes de termos presumido sua existência? Fica parecendo uma daquelas esféricas verdades chinesas: "Deus existe porque é perfeito e é perfeito porque é Deus".

Mesmo na época de Anselmo, seu argumento foi ironizado. Adaptando o contra-exemplo de seu contemporâneo Gaunilo (que era um monge católico), também poderíamos dizer: dado que posso conceber a idéia de uma mulher perfeita, ela terá necessariamente que existir ou perfeita ela não é, já que lhe faltaria um enorme detalhe: a existência. Isso demonstra que meu entendimento é capaz de criar conceitos absolutos, como perfeição, sem que necessariamente eles tenham que existir na realidade. Em outros termos, um raciocínio de linguagem só pode gerar resultados de linguagem, e não inferir, como logicamente necessária, certa realidade, quanto mais as absolutas.

O mesmo vale para o argumento da complexidade. O fato de haver muitas coisas complexas, de uma beleza ou harmonia incompreensível para a ciência (como o universo, as células, o olho humano) não significa necessariamente que são obras de Deus. Não podemos deduzir um ser para completar as lacunas de nossa ignorância. Da ignorância não se inferem realidades. Ora, se alguém dissesse no senado romano, alguns anos antes de Cristo, que a partir de uma caixa com um vidro na frente seria possível, um dia, assistir ao vivo a campanhas militares, como a de César na Gália, os sábios da época diriam que só os deuses seriam capazes de tal astúcia. Os índios sul-americanos tinham um deus para cada fenômeno que desconheciam. Deus e o inexplicável se confundiam. Isso significa que quanto maior for a ignorância científica de um povo, maior o espaço para o seu “sobrenatural”. Há de fato coisas que não somos capazes de entender, nossa ignorância é vasta, vastíssima até. Mas deduzir a existência de Deus por causa do que nos é incompreensível é fazer como os matutos que criam extraterrestres quando não conseguem entender o sumiço repentino de alguém.

Quando não sabemos o que causa algo, melhor investigarmos, aceitar com paciência a dúvida ao invés de povoar as lacunas de nosso saber com criaturas desejadas. Como disse Joubert, “mais vale examinar uma questão sem resolvê-la do que resolvê-la sem examiná-la”. O mesmo vale para a idéia de “as perfeitas leis do universo só poderiam ter sido escritas por...”, Deus? Ou por algum modo que até agora não compreendemos. Atribuir isso a Deus, sem mais, é comprometer-Lhe a reputação no caso de amanhã os cientistas encontrarem uma explicação materialmente razoável para tal.

Se Deus é perfeito, ele não precisa de nossas fraudes lógicas para confirmar-lhe a existência.

Evidências

Faltam evidências acerca da existência de Deus. Tudo bem que o Sol brilha, as estrelas reluzem no firmamento, a criança cresce e os amantes se deliciam. Mas igualmente há o câncer que corrói, o tsunami que devasta, a morte prematura que agarra, a cegueira de nascença. Parece até que, bem ponderado, a maldade cósmica para conosco supera infinitamente a bondade.

Pessimismo?

Por mais feliz que seja uma existência humana, ela é, à semelhança da lingüiça no freezer, dotada de prazo de validade. Poderíamos até vir com a advertência: “Consumir preferencialmente antes dos setenta anos. Depois, manter refrigerado e, por fim, depositá-lo no solo de forma ambientalmente correta”.

Se Deus de fato existir, Ele tem que nos explicar muito por que não disse que estava aqui. Por que nos deu a razão para dele duvidar e em função disso - pecado de pensamento - ser jogado no porão do inferno? Que urupuca é essa? Aceita-Me ou devoro-te!

Albert Camus tinha razão quando dizia que diante de nossa necessidade de resposta acerca do nosso significado no mundo e do silêncio na resposta – o universo não fala nossa língua -, a única saída era a revolta. Revoltar-se contra o silêncio, pela falta de gentileza de um ser aparecer e dizer: “Eu estou aqui”. Mas ao contrário, seguindo as crenças expressas pela maioria das religiões, esse ser mandaria seus eleitos, ao que parece, com uma única função: cobrar vassalagem. Devemos ser humildes, tementes, submissos, pormo-nos de joelhos, confessarmos nossos pecados, fazer de conta que não duvidamos. Por que o orgulho é um pecado. Pecado divino por excelência, pois é o que cobra mesuras e não os que as fazem que se considera acima dos demais.

Deus nos criou assim perecíveis, estúpidos, sujeitos a doenças, a vermes, tendo que manter comidas apodrecidas dentro do corpo, para que tivéssemos que lembrar, diariamente, do lixo que somos... Diante disso ainda vem pedir para que sejamos humildes? Não precisava, Excelência. Nosso orgulho é apenas uma forma de revolta, uma frivolidade menor, uma mania de nos fazermos de importantes antes que o ceifador sinistro venha rir por último. Nosso orgulho – como disse Victor Hugo – não é um vício, é apenas a prova do nosso ridículo.

Na história

Os deuses quase nunca foram flores que se cheirasse. Na maior parte das culturas, eles exigiam sacrifícios humanos, queriam virgens, queriam filhos. “E Deus disse: “Toma teu filho, teu único filho a quem tanto amas, Isaac; e vai à terra de Moriá, onde tu o oferecerás em holocausto sobre um dos montes que eu te indicar.” (Gênesis 22,2)”. Com o tempo, evoluíram e passaram a exigir apenas sacrifícios de animais (no caso acima, Deus teria se contentado com um cordeiro). Evoluíram ainda mais e, de acordo com seus procuradores na Terra, passaram a aceitar penitências, doações e hoje, em certas igrejas, aceitam até vale-transporte e ticket alimentação.

Ademais, se a idéia de nossos religiosos coincidir com a natureza de Deus, a organização política do céu parece mesmo é com o Brasil. Sua oração tramita muito mais rápido junto ao Padre-Eterno se você tiver um pistolão. Nesse caso, vou toda noite de Ave Maria, na esperança de que o “rogai por nós pecadores...” faça a minha oração subir sem maiores entraves burocráticos. Ora, ou o pedido é justo e Deus, sendo perfeito, irá atendê-lo, ou é indevido, e deve rejeitá-lo. O que não parece razoável é que, pelo intermédio de Maria, Ele mude de idéia, ou que precise dela para atentar para a justeza da solicitação – neste caso onde foi parar a perfeição?! Será que até no Céu só podemos pedir algo via advogados?! Ou lá, como em alguns lugares desse planeta, é mais útil para o convencimento do magistrado os amigos que se tem do que a razoabilidade do pedido que se faz?

Muitos sujeitos são devotos desse ou daquele santo, dependendo da especialidade do seu problema (se é casamento ou doença, cadeia ou intestino preso). Santos especialistas. “Matrimônio, matrimônio? Isso é lá com santo Antônio.” Parece até o cidadão comum dizendo: “Vou falar direto com o ortodontista.” ou “O meu vereador já disse que vai dar um jeito no meu IPTU”. É a idéia do santo especialista, do santo advogado, do santo despachante, do santo pistolão, do santo que faz jus a honorários, pagos em velas e ajoelhamentos. Isso sem falar das entidades pistoleiras de aluguel, que fulminam seus inimigos por módicas oferendas de encruzilhada.

Acho que alguém tem que falar ao Padre-Eterno que sua assessoria está levando por fora – em velas e preces - para fazer o que lhes seria devido por caridade. E o pior: seus mensageiros estão fazendo os pobres-diabos subir escadarias de joelhos, fazer procissões, pagar por celebrações, tomar banho de descarrego, comprar cachaça e charuto e dar o que não têm para os que não pretendem jamais descer do trono.


Revolta infantil

Essa revolta infantil aqui manifestada pode ser, na verdade, como dirão os críticos, um mero choro de criança contra as decisões do santo Pai que ele, por ser pequeno e estúpido, não compreende. Nesse caso, eu poderia antever qual seria a resposta do Eterno: “deixe-o chorar que quando ele crescer, vai compreender meus mistérios”, - os mais exaltados esperarão que um raio me parta!

Então vamos mudar a linha de argumentação, concedendo a Deus a gentileza do in dúbio pro Criador.

O deus do meu jardim

Será que a rosa sabe que o jardineiro existe? E se sabe, compreende suas podas e transplantes? Se Deus é o ser perfeito - o Sumo Jardineiro - eu seria, na melhor das hipóteses, a bonitinha, mas ainda assim estúpida rosa. Como querer compreendê-lo sem cair no ridículo? Minha existência de poucos dias me capacitaria para entender o eterno? Ou minhas conclusões sobre Deus seriam tão ridículas quanto a ilustrada por Fontenelle, ao relatar que “até onde qualquer rosa poderia lembrar nenhum jardineiro havia morrido.” Até onde este autor pôde notar, a presença de Deus não se fez sentir de forma indubitável. Mas quem é esse autor senão a rosa falando do jardineiro?

Pode ser mesmo difícil afirmar se Deus existe ou não. Vai ver até que as chances são iguais para os dois lados. E quanto mais pensamos mais confusas se tornam as coisas. Sagaz mesmo foi Tertuliano (155-220) quando afirmou: “Credo quia absurdum” (creio porque é absurdo). Com isso, o teólogo cristão quis dizer que a base da fé não pode ser a razão, afinal Deus, com Cristo, se revelou a nós de forma absurda: ele poderia ter mandado um super-Aristóteles refutar qualquer problema lógico que pudéssemos esboçar à sua existência, poderia ter mandado exércitos de Einsteins viverem entre nós para satisfazer nossas demandas por verdades, mas não: ele mandou seu filho vestido na humildade dos ofícios manuais. Poderia tê-lo mandado assumir o trono na Terra, mas o mandou agonizar na cruz como um criminoso. Isso tem um caráter de ilógico, de absurdo, de milagre, de infinitamente diferente do que esperávamos... São as linhas tortas pelas quais Ele escreve...

É possível que Deus tenha feito isso porque sabia que a razão da rosa era incapaz de compreender a razão do jardineiro. Então, simplificou, mandando que escutássemos parábolas e relatos simples, até que um dia, quem sabe, possamos escutar explicações de verdade. Quando nossos filhos vão deitar, não lemos tratados de física quântica para eles, lemos coisinhas para que durmam, e dormindo, não nos perturbem com maiores interrogações. As parábolas tranqüilizam as crianças. Mais tarde eles terão chance de aprender... por enquanto, Deus zela pelo nosso sono...

Para que a inteligência se a crença desaconselha seu emprego? Sei lá... é estranho mesmo. Mas Deus parece ter essa mania: dá-nos a razão, porém - fórmula de Tertuliano - pede para que Dele nos aproximemos pelo absurdo; dá-nos desejos, mas exige que os controlemos; não nos dá certeza, mas quer fé inabalável. Diante disso a quem compararei este Deus? “É semelhante aos meninos que, sentados nas praças, clamam aos seus companheiros: Tocamo-vos flauta, e não dançastes; cantamos lamentações, e não pranteastes. Porquanto veio João, não comendo nem bebendo, e dizem: Tem demônio. Veio o Filho do homem, comendo e bebendo, e dizem: Eis aí um comilão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores” (Mt, 11). Ou seja, recebemos um baita equipamento cognitivo (nossa razão) e muitos comichões animais (nossos desejos e apetites), mas, pelo menos em face de Deus, não devemos usá-los. Esses foram nossos presentes e nossa maldição. Isso parece até uma parábola, de um pai que dera de presente para seu pequeno filho um isqueiro e uma garrafa de álcool, e quando este se queimou disse: “Néscio, por acaso não desconfiastes da tentação a que vos submeti? Porque não fostes prudente como a serpente, ardeis agora no fogo.”


Um deus terrível

A concepção que nossa cultura tem de Deus não é de um ser bondoso, mas de um ser que carrega em si todos os vícios dos monarcas históricos: vingador implacável, queimador de sodomas e pompéias, requisitador de súplicas, concedente de mercês, mantenedor de infernos e calabouços, negligente para com o sofrimento dos inocentes, criador de culpas presumidas e pecados originais, dono da verdade, senhor da vida e da morte. Todo-Poderosíssimo.

Ora, dirão, você não está falando de Deus, mas de uma certa compreensão sobre Ele, uma compreensão equivocada, na qual inserimos na figura de Deus nossos defeitos. Deus é infinitamente bom, má é a descrição que Dele fazemos.

É possível.

Mas há também outra possibilidade, terrível é verdade, mas que há, há. Se não somos competentes para interpretar a natureza de Deus, se projetamos Nele o que há de pior em nós, podemos igualmente ter projetado Nele também nossa aspiração de que Ele seja bom, justo e misericordioso. Se o compreendemos equivocadamente, se somos a rosa em face do jardineiro, podemos errar para os dois lados. Como saber se o Deus bom é o Deus que existe ou o que queríamos que existisse? Terei que voltar ao valor dos testemunhos...

Talvez Deus seja mau. Goste do espetáculo de ver-nos construindo nossos sonhos, cultivando nossas habilidades e celeiros para, na calada da noite, vir nos ceifar. Pode lhe ser cômico assistir à primeira espécie de animal consciente do seu funesto destino – a morte – debatendo-se impotente para dele se defender. É possível que seja mesmo hilário ver esse animal se travestir de herói, se encher de coquetismo, ir à Lua, criar teologias e tecnologias, gerar filhos e sonhos para, inexoravelmente, entregá-los ao implacável abismo que nos espreita...

Essa não é uma tese forçada. È a compreensão mais comum dos deuses ao longo do tempo. Dizem que as culturas indígenas do México se chocaram com a revelação dos padres católicos de que estes vinham representando um Deus que se oferecera em sacrifício, quando os nativos estavam acostumados a deuses que mandavam sacrificar. Ao longo da história deuses foram mesmo mais temidos que amados.

Estaria eu me afundando em absurdos cada vez maiores? Volto a repetir: de onde provêm as noções do que/quem é Deus? Alguém pode gabar-se de ter acesso direto a Ele? Ah, você confia na veracidade dos relatos que lhe foram apresentados. Tudo bem. É uma crença. Pode ser verdadeira, pode ser falsa, pode lhe ajudar a viver, pode ser muito, mas é preciso crer para ver.

A verdade, se há alguma, é que se não somos competentes para conhecermos nem a nós mesmos, o que se dirá da pretensão de dizer: “Eu conheço Deus no meu íntimo!”. Isso é tolice. Quem não se conhece em essência – todos nós – não pode ter a pretensão de conhecer algo/alguém supostamente muito maior que nós...

Mas há um tertium genus entre o deus todo bondoso e o deus maldoso: o deus indiferente. Um deus que não se ocupa das coisas humanas, que, talvez, tenha mais o que fazer. Um jardineiro desinteressado pelas suas rosas. Bem pesado e medido, esse é o deus mais fácil de defender a partir do absurdo desse mundo. Catástrofes e dores atrozes ao lado de belezas e prazeres. Contra-senso deliciosamente apontado por Machado de Assis: “O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?”. Deus não tomaria ciência ou parte em nada disso. O mundo humano, com suas contradições, abundâncias e martírios, não Lhe seria afeito. Problema humano não atrairia a atenção do Sumo Perfeito.

Essa hipótese assusta.

É engraçado que os historiadores dizem que o orgulho humano foi seriamente abalado com a mudança do sistema geocêntrico para o heliocêntrico. Tenho minhas dúvidas. Não conheço ninguém que, na prática, esteja lá se importando se é o Sol ou a Terra que gira em torno do outro. Isso parece descrição de historiador das idéias e não das idéias na história. Até porque o fato de algo girar em torno de outro não significa o que domina o quê. Não precisaríamos nos abalar por tal mudança. Era só fazer o que de fato fizemos: modificar o conceito de centro de universo. É centro do universo o planeta que possuir a forma de vida mais inteligente. A Terra, pronto! O Sol que continue a mandar em outras plagas, na anatomia do universo continuamos no umbigo.

Agora se Deus fosse algo semelhante ao deus de algumas concepções teológicas, um deus que está de costas para o universo, que o move, mas nele não interfere. Se Deus fosse como eu em relação ao bem-estar das plantas de meu jardim: não me interessando se essa morreu ou aquela floresceu, me interessando apenas pelo todo: se o jardim está bonito ou não, aí sim estaríamos órfãos. Não boto nome nas plantas, porque elas são fungíveis – uma planta pode ser trocada por outra mais nova. E se Deus agir assim conosco? Se para Ele eu for uma individualidade fungível, uma formiga cujo sofrimento ou morte é incapaz de abalar a força do formigueiro? Então teremos sido retirados do centro do universo.

É por isso que nós homens sempre preferimos os deuses perversos a deuses indiferentes. Pois um deus perverso – como qualquer sujeito mau – dá importância as suas vítimas. Diante de seu altar pedimos clemência, misericórdia, mea culpa mea culpa. Agora diante de um deus indiferente nós pedimos, louvamos, xingamos e ele permanece em silêncio.

Pior do que as pessoas que nos odeiam são aquelas que nunca notaram nossa existência. As primeiras podem nos fazer mal e até mesmo nos extinguir, mas só as segundas podem nos convencer de que viver não vale a pena. O perseguidor nos atribui valor na exata medida que nos persegue, já o indiferente nos retira o valor proporcionalmente ao que não percebe.

Enquanto escrevo isto, sinto a nítida impressão de que estou sendo observado, de que vou ser castigado... Tranqüilizo-me! Pior seria se Deus sequer lesse esse desabafo...