29.8.06

A cor do brasileiro

Professor Sandro Sell

Pelo Estatuto da Igualdade Racial teremos que declarar nossa cor em documentos como certidão de nascimento e outros. Qual a finalidade disso? Boa, nenhuma. Esse negócio de marcar obrigatoriamente as pessoas por seus pertencimentos a determinadas raças ou etnias tem mesmo um péssimo passado. O sonho de toda ideologia autoritária começa por algo assim: deixar tudo bem separado, preto no branco, para poder dizer: “Esses somos nós, aqueles são eles. Nós precisamos disso, eles daquilo. Nós devemos ter preferências, pois eles são os culpados”. Se não fosse a esquerda quem estivesse propondo esse estatuto, milhares de militantes brasileiros já estariam na ONU pondo em suspeita o ressuscitar dessa forma perigosa de classificar as pessoas. “Qual é a sua cor?” Terá que perguntar cada delegado, cada médico e cada funcionário de burocracia. “A cor da humanidade”, – numa democracia, essa deveria ser a única resposta possível e suficiente. Vai deixar de ser.
Dizem que o objetivo dessa separação é louvável: permitiria a produção de estatísticas sobre, por exemplo, “doenças de negro” (sic), como a anemia falciforme. Vamos supor, por um momento, que há doenças que seguem rigorosamente a raça do indivíduo. Só que seguir a raça de alguém no Brasil não é fácil. Brancos e negros – em flagrante conspiração ao simplismo do estatuto – teimaram em se casar sem declarar cores, dando origem a um sem número de misturas, que podemos ou nomear uma por uma (pardo, quase-branco, quase-negro, marrom, mulato, escurinho...), ou resumi-las, todas, sob o apelido genérico de “humanidade”. Esse último termo tem a vantagem de dar um recado aos racistas de plantão: as cores são um detalhe, as pessoas não.
Mas como seria definida a cor de alguém? Há duas possibilidades. A primeira seria ter uma palheta de cores para que o sumo classificador racial comparasse o indivíduo a um padrão e revelasse ao mundo sua verdadeira cor. A outra, preferida pelo estatuto, é a de que as próprias pessoas digam de que cor querem ser, ou de que cor se sentem. O problema com a primeira é óbvio; com a segunda, é que ela impede de fazer estatísticas confiáveis baseadas na autodescrição. Se há “doenças de raça” a serem mapeadas, de que adianta uma estatística racial derivada do auto-enquadramento sentimental do indivíduo a uma cor e não da quantidade de melanina em sua epiderme?
Mas o estatuto não é só isso, dirão, com razão, alguns. Ele é pior. É pela folclorizaçao do negro, acredita que sempre que alguém se diz negro as primeiras palavras que lhe devem ser associadas é samba e capoeira. Determina que o Estado ensine essas práticas que, diga-se de passagem, não precisam do Estado para estarem inseridas na cultura popular. É mais fácil ensinar Shakespeare a alunos (brancos ou negros) prometendo-lhe que, se estudarem direitinho, terão aulas de capoeira, do que o contrário. É mais fácil levar a loirinha pro samba do que convencê-la a ir à ópera.
Mas e a desigualdade racial? Ela existe e precisa ser combatida. Só que não será chamando alguns de negros e outros de brancos que isso será feito.

Para saber mais:

SELL, S. C. Ação afirmativa e democracia racial: uma introdução ao debate no Brasil. Florinópolis: UFSC/BOITEUX, 2002.

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