14.5.10

A naturalidade do supérfluo

Shakespeare dizia que mesmo um mendigo tem algo de supérfluo – uma garrafinha de estimação, um barbante em volta do pescoço, uma anel de lata que seja - pois sem isso ele se tornaria um animal. Será que é o supérfluo que nos humaniza? Com efeito, os animais, por si mesmos, não carregam nada: eles têm seus corpos e nada mais. Não possuem a noção de vida estilizada, de existência tornada singular pelo que se possui, coisa tipicamente humana: “Lá vai a moça do piercing”, “Lá vai o rapaz da BMW”, “Lá vai o garoto que só anda de calça remendada”. Em nossa espécie ter e ser estão intrinsecamente ligados. É mesmo difícil dizer quem se é deixando de dizer o que se tem (propriedades, emprego, diplomas, filhos...).

Na ausência absoluta de maquiagens, posses ou poses a pessoa vai perdendo pouco a pouco sua especificidade, vai se animalizando. Repare como os náufragos são representados nos filmes: cobertos de pelos e desprovidos de modos, quase macacos. O excesso de pelos justifica-se pela ausência de lâminas, assim como a falta de modos se justifica pela ausência de semelhantes próximos. Pois é essa presença – o olhar dos outros - que garante aquela dose de artificialismo diário – as tais normas de etiqueta – que diferenciam, por exemplo, nosso civilizado jantar do comer dos porcos. Haja disfarces, discrição e pedidos de licença para comermos “como gente!”.

Sim, eu estou defendendo que, para nós humanos, a artificialidade é essencial, sendo mesmo nosso estado mais adequado. E, por paradoxal que possa parecer, é justamente quando queremos nos aproximar de uma suposta “naturalidade” que nos artificializamos ao extremo. Veja o que se passa quando as moças bonitas aceitam pousar nuas em revistas: as manchetes dirão que, finalmente, teremos a chance de vê-las “ao natural”. Mas mesmo o mais desinformado de nós sabe que esse natural é artificialidade pura, onde se controla tudo, desde quantas gotinhas de suor devem aparecer na foto da ginasta nua, até quanto de quadril deve ser retirado da atriz recém-saída da gravidez. Em suma, a celulitezinha da modelo deverá ser gentilmente apagada para não atrapalhar a “naturalidade” de suas formas em estado puro (aquele que jamais existiu).

O natural é assim, apenas, uma forma de disfarçar o supérfluo indispensável para que as coisas pareçam boas. E é o supérfluo –repito - que nos singulariza. O uniforme da moça do McDonalds é sempre o mesmo, mas a lateral do nariz furada, a tatuagem na nuca, o perfume inspirador ou o brinco estiloso a salvam da padronização plena. Ela é única porque se fez supérflua, porque trás consigo coisas que poderia não trazer, - mas, como todos sabem, é mais fácil que ela esqueça seu crachá, que, de fato, nada diz de interessante sobre ela, do que os brincos, com os quais expressa que há uma vida diferenciada – e por isso interessante - por trás do balcão, e que ela não é apenas uma McPessoa.

Alguns sustentam que nosso estado natural é aquele para o qual tendemos quando não nos sentimos vigiados (pelos pais, patrões, professores, namorada, ou vizinhos, não importa). O natural não exigiria esforço: a ele nos dirigiríamos por pura inércia. Siga um mês essa regra e a preguiça, a gula, o desleixo e os impulsos sexuais inconseqüentes detonarão sua vidinha artificialmente controlada. Em “estado natural”, não somos grande coisa. É por isso que nossas irmãs sempre casam com os irmãos das outras na ilusão de que eles serão de fato muito diferentes daquele “porco, malandro, malcriado” com que elas conviveram em casa. Coitadinhas, ao casar descobrirão que namorado legal não passa de uma versão artificializada do maninho asqueroso – natural -, cujo modelo de pessoa as moças não queriam “nem pintado de ouro”.

Ser artificial, - isto é, dissimulador e amaneirado, - e possuir supérfluos é de nossa história cultural; não direi que é de nossa natureza, mas bem que poderia, já que sem os maneirismos culturais não existiria humanidade. Como bem disse o antropólogo C. Geertz: se tirassem dos humanos o que lhes é cultural (aprendido, artificial) eles não regrediriam aos macacos: eles se transformariam em abóboras. A sentença do célebre pensador é fértil em conclusões agrícolas: entregues unicamente à sua natureza biológica os humanos não se animalizam, vegetalizam-se. Faz sentido: um macaco não é simplesmente um humano em estado de náufrago, ele é um ser inteligente, hábil e muitíssimo bem adaptado às árvores e bananas da ilha deserta; já o ser humano nesta mesma ilha viraria uma criatura patética, atormentada e cada vez mais próxima da insanidade, - a ponto de, na interpretação cinematográfica de Tom Hanks, doar seu sangue a uma bola, na esperança de torná-la alguém, um outro humano.

Que outro animal seria capaz de tamanha estupidez? Só mesmo nós, os humanos e, quem sabe, nossos primos, as abóboras...


O luxo das tribos

Só entendendo a necessidade do supérfluo é que se vai entender o porquê do consumo de luxo. Consumir por consumir, sem uma função prática definida, consumir só por gosto de ostentação, eis aí o supra-sumo do artificialismo de nossa espécie.

Seria o luxo uma invenção da sociedade capitalista moderna? Não, claro que não, nossa sociedade apenas o democratizou. Houve um tempo em que luxar era para reis e princesas. Hoje não é incomum vermos um garoto pobre com um Nike no pé, ou portando um celular com câmera. A situação econômica pode estar sofrível, mas vá até as lojas populares e note como a compra de superficialidades de estilo (celulares, perfumes, roupas fashion e câmeras digitais) lideram as vendas. O fato é que estilizar a vida é tão essencial quanto colocar comida na mesa.

Irracional? Não, típico de nossa espécie, cujo habitat simbólico atual exige que nos endividemos para comprar com estilo e onde nossas moças passam fome para caber na calça com numeração inadequada ao seu tipo físico “natural”. Autênticos ou não, os artificialismos femininos – do creme anti-idade ao silicone – as deixam com um aspecto “fruta tipo exportação”. São as tais belezuras transgênicas, podem até suscitar dúzias de questionamentos bioéticos, mas que ofuscam a naturalidade brejeira das made in home, ah, isso ofuscam.

Depois delas, haja consciência ecológica para querer voltar pro sítio!

Poder-se-ia dizer: as pessoas fazem isso porque são alienadas pela sociedade de consumo. Em parte isso é verdade. Alienação (alien = estrangeiro) significa o processo de identificação com os interesses alheios em traição aos nossos (v.g., brasileiros apaixonados pelos EUA que, por sua vez, os trata como um bando de latinos sacoleiros e pervertidos). Assim, quando alguém consome supérfluos, alienadamente, quer se identificar com o “outro”, com a tribo dos que, por exemplo, vestem a marca Diesel – patrocinando assim, com “seu” estilo, os iates dos donos da marca. Isso parece muito capitalista, não? Mas o que é essa vontade de pertencer à tribo Diesel senão a atualização antropológica da necessidade de pertencer a um totem primitivo, a um grupo que permita alguma inclusão social, por mais superficial que seja (nós, os do clã do norte vs. eles, os do sul; fashion vs. eles, os fuleiros)?

É lamentável que as tribos que tenham se formado em nossa sociedade sejam, predominantemente, por filiação a grupos de consumo, - fazendo com que seus totens sejam grifes e seus espaços rituais sejam shoppings. Mas as tribos do passado também eram alienantes: eram, sobretudo, tribos religiosas. Ao invés de consumir para o corpo, fenômeno típico de nossa época, consumia-se para os deuses, dando-lhes luxos e estilo: das pirâmides do Egito ao trono de Pedro em Roma; da pompa do templo de Salomão ao sacrifício de dúzias de virgens nas religiões nativas pré-colombianas. A única diferença, talvez, do luxo presente para o do passado, é que as novas tribos não dividem nem o dinheiro, e menos ainda suas virgens, com os deuses. Eles que se contentem com ladainhas e velas.

Claro, há exceções, como as tribos religiosas do presente, que continuam sacrificando dízimos aos deuses (virgens ficou difícil), e esses deuses, em contrapartida, para retribuir o agrado da clientela, estão cada vez mais tolerantes. As saias das crentes subiram, seus cabelos encolheram, e, ao lado dos católicos-felizes, compõem rock, rap, funk e fazem turismo. O tal do consumismo devoto. Fala-se até mesmo em – revire-se no túmulo, vó Ernestina – “carnaval do Senhor”! Acrescente-se a isso que o padre Marcelo vende mais Cds que a Xuxa e os crentes constroem templos que deixariam Salomão humilhado, com lojinhas anexas, - tudo para que o fiel sinta-se num shopping center, que, até onde eu pesquisei, seria a construção humana mais parecida com o paraíso celeste. Dizem os cínicos até – e eu não tive tempo de checar essa informação - que na porta do céu há uma plaquinha dizendo: “Pague com Visa”.

Supérfluos, modo de usar

A função básica do supérfluo, é, como já dito, singularizar e destacar nossa existência da vulgaridade genérica, filiando-a a uma tribo de especial requinte. O supérfluo é para ostentar ou não serve para nada. Historicamente há duas formas básicas de ostentação: 1. desperdiçar com estilo, ou 2. esbanjar com boas intenções. A primeira forma deriva do primitivo potlach, uma forma de desperdício ritual (praticado por tribos da Melanésia ao Canadá), em que, para mostrar seu poder, o sujeito distribuía prodigamente seus bens ou os destruía na frente de alguém que se dizia mais poderoso. A lógica era: “quanto mais me desfaço insensatamente do que possuo, mais rico eu sou”.

Hoje, quando nossos emergentes comemoram suntuosamente o aniversário de seus cachorrinhos, compram inutilidades práticas, mas de grande valor financeiro e simbólico, atualizam o velho potlach, e, de fato, deixam a platéia babando. Repare:

“O rapper e presidente da gravadora Def Jam Records Jay-Z surpreendeu a namorada Beyoncé Knowles com um presente de aniversário bastante inusitado e caríssimo: um Rolls-Royce conversível, 1959, avaliado em quase US$ 1 milhão”

Com efeito, o luxar no melhor estilo desperdício (dá para imaginar a utilidade que o Rolls-Royce, 59, vai ter na vida da internacional negra-do-tchan, Beyoncé?), para além do gasto sem-sentido, ganhou uma função social: entreter o público que consome o consumismo alheio. A maior parte dos comuns baba diante de tanta ostentação. Acham ma-ra-vi-lho-so! “Ilha de Caras para eles, revista Caras para nós”, é o lema; cada um com a parte que lhe cabe no mundo do luxo. O importante é que, no final da matéria, até a faxineira se delicie com o presente da cantora. Jay-Z presenteou sua amada diretamente e, por tabela, todos nós. Thank you, Jay-Z!

Mais uma.

“Depois de presentear a futura esposa Katie Holmes com um jatinho de US$ 20 milhões, agora o ator Tom Cruise comprou um moderno aparelho de ultra-sonografia para monitorar seu bebê.”

Eta potlacheiro de estilo esse Tom. Dar jatinho é idéia velha entre sua nababesca tribo, já tava cansando, mas um aparelho médico, isso é mais do que luxo: é luxo criativo! Se eu que tenho Unimed (leia-se, vi meus filhos acondicionados na barriga da mãe, umas três vezes), já babei, imagine a galera do SUS (leia-se: só viu seu filho na barriga quando ele, após o parto, foi posto para mamar)! Já o Tom não, instalou um big brother na barriga da Katie e pôde fazer um diário realista do bebê enquanto nós (morda-se classe média!), temos meia dúzia de imagens do feto para editar.

Mas nem tudo é desperdício no mundo do luxo de alta classe. Existe também um luxar politicamente correto. Se quiser seguir essa onda, faça como Angelina Jolie ou Madonna: adote crianças, uma por continente, cada uma com a carinha de uma etnia diferente (só tome cuidado onde encomendar, porque podem vir carinhas repetidas!). É um luxo só, um chinesinho aqui, uma belezinha tribal ali, uma brasileirinha lá. Madonna e Jolie são as novas Noés da arca: se o mundo se extinguir em dilúvio, mas o playground delas sobreviver, a história étnica da humanidade estará preservada. Não é lindo?

Não gostou da idéia de adoção? É, dá trabalho, crianças não ficam comportadas na garagem como Rolls-Royce da morenaça, nem dá para descartar na despensa, como os aparelhos de ultra-som da loirinha. Então, vá para o luxo ecológico, invente alguma coisa "CO2 Free". Faça uma corrida de automóveis e neutralize o carbono plantando árvores, faça um show de rock e plante árvores, mande o vizinho para puta-que-o-pariu e plante árvores. Se você agir assim, estará salvando o planeta. Seja um ecologista-capitalista-consciente: destrua e reponha simultaneamente e tudo estará bem, as ONGs vão certificá-lo por módica quantia. Ah, e não esqueça de comprar os discos do Bono Vox, nossa Madre Tereza pop, e de fazer um minuto de silêncio pela Lady Di, a mulher que, como a nossa vizinha Evita Perón, mostrou que ninguém precisa deixar de usar chanel para fazer caridade: é possível neutralizar a ostentação. Com suas ações de caridade, elas criaram, assim, muito antes dos ecologistas-capitalistas, uma versão primitiva do CO2-free: o chanel-free.

Não gostou da forma politicamente correta de ostentação, nem do potlach? Então, faça como os capitalistas protestantes de Max Weber: acumule, acumule e acumule. Esconda seu capital, coloque-o a juro, seja agiota. Ande de fusca e guarde o dinheiro das Ferrari para o futuro. Faça como as formigas: trabalhe como um cavalo, e viva como um asno sem baia. E assim, você não terá escapatória, seu masoquista, irá se ferrar. A morte lhe pegará contando moedas nunca utilizadas. E, no outro lado da vida, se ferrou de novo: se Deus existir, você será punido por não ter dividido seus tesouros com os irmãozinhos; se Ele não existir, terá perdido sua única chance de desperdiçar com estilo. De qualquer forma perdeu.

Ah, você, leitor, é pobre, e essas coisas estão muito longe de sua realidade? Para você a dica já foi dada: assine Caras e vá até a laje tomar sol e consumir a felicidade alheia. Ria por eles porque para que os ricos possam rir à toa é preciso uma tonelada de pobres à-toas fazendo coro com eles.



bota sua cadeira mais para lá, que eu não quero sombra!
14/08/2008

7 comentários:

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Professor: adorei seu curso de pós-graduação (e esse texto também). Obrigada por compartilhar tanto conhecimento.
Sucesso,
Alexandra

Anônimo disse...

Muito engraçado esse seu texto. Não sabia que o sr. tinha esse lado sátiro.
Marcos Bitencourt

Anônimo disse...

Meu carissimo e dignissimo professor Sandro Sell !!!
Deveras eu não quero acumular riquezas; Deveras eu não gosto de passear no Shopping; Deveras eu não quero ser Diretor executivo da empresa onde eu trabalho; Deveras eu sou um indolente assumido.
Por outro lado, eu sou homem, hetero e em plena capacidade reprodutiva...e eu juro, tô no mercado...quero conquistar aquela colega gostosa que senta no meu lado e que, por mais de uma vez eu a ví lançando olhares sôfregos para o professor (não necessariamente você) que por sua vez é homem, hetero e em plena capacidade reprodutiva e não precisa dizer, meu concorrente !!!
Dito isso, não adianta eu dizer que não gosto de ir ao shopping, que não gosto de dinheiro, que não penso em ter carrão e etc e tal. É imperativo meu amado mestre !!! eu tenho que ter tudo isso ou eu fico fora do mercado, relegado ao submundo dos "sem mulher" e nem você, do alto dessa sua "torre de marfim acadêmica" dirá que eu não tenho razão. pois eu sei que por trás de toda essa retórica, desse papo intelectualizado, há também um homem hetero e em plena capaciade reprodutiva querendo me tirar do mercado e me jogar ao limbo dos "sem mulher". o dia que eu encontrar uma mulher bonita que não goste de superficialidades, dessas coisas toda que você tão bem relatou no texto...eu juro, nunca mais coloco meus pés no shopping, nunca mais estudo, nunca mais vou querer "enricar"...mas enquanto isso não ocorre...meu dileto professor, vou continuar seguindo a humanidade.
Fraterno abraço ao mestre e amigo.

Manuela d`Eça Neves disse...

Adorei, professor!
Vida longa a quem sabe escrever e ainda ironicamente.
Não há como discordar de algo, por mais que algumas coisas sejam de certa forma, um tapa na cara, já que todos nós somos parecidos com tudo isso.
E como é complicado, classificar supérfluos. Se pararmos para pensar, TUDO, que não seja nosso desde sempre, ou que não nos sirva para nos manter vivos, é supérfluo.
Eu tenho uma compulsão que cabe nesse conceito: tudo que gosto muito, preciso ter em quantidade exagerada...filmes e livros, por exemplo... ainda que não consiga ler ou ver todos logo, adoro ver as estantes cheias deles.
É meu mundo supérfluo, que não me impede de morrer de fome, sono, frio... mas faz o viver mais divertido, posso viver em mundos diferentes, em cada livro e cada filme.
Será que existe ser humano que viva sem isso?

Beijoca!

Anônimo disse...

e pensar que um dia eu pensei que só eu pensava assim... mas não faço questão nenhuma de dividir o sol, prefiro uma "gelada" hahaha.
Valeu.

Murilo disse...

Perfeita a continuação!

Abraço