27.1.08

A incômoda solução chamada ação afirmativa

Professor Sandro Sell


Introdução

É possível que nenhuma engenharia social contemporânea tenha trazido tanta polêmica quanto aquelas que, mediante expedientes como cotas previamente definidas ou políticas de acesso preferencial, prometem a inclusão eqüitativa de negros, deficientes, índios e mulheres nos espaços socialmente valorizados. São as chamadas medidas de ação afirmativa. Medidas que representam a tentativa de alguns Estados de matriz liberal de corrigir a falácia da meritocracia, segundo a qual, num Estado em que a Constituição valoriza, sobretudo, a liberdade, as desigualdades devem ser atribuídas a diferentes graus de esforço e talento individual . A pobreza e a riqueza, em tais Estados, são atribuídas a opções (esforçar-se mais ou menos), fatos genéticos (possuir maior ou menor grau de inteligência) ou a eventos aleatórios (sorte ou azar).

No entanto, quando as análises estatísticas começaram a mostrar que a pobreza tinha cor (de tonalidade escura) ou que o poder tinha sexo (masculino), a idéia de que o sucesso era uma questão de competência individual ficou seriamente questionada. E se não ficasse, o questionamento deveria dirigir-se ao consenso contemporâneo de que as diferenças de cor, raça ou sexo não são relevantes para sustentar distinções de capacidades mentais entre os diferentes grupos humanos. Consenso que desde a Declaração da UNESCO sobre as Raças, de 1948, estava firmemente estabelecido - e que os anos e a ciência só têm feito reforçar .

Por ironia, foi os EUA, o país do “sonho americano” (a ideologia de que todos podem tudo se estiverem dispostos a lutar por seus ideais), que, no início da década de 1960, popularizou as políticas de ação afirmativa, como uma incômoda forma de superar o déficit entre as promessas de acesso universal às riquezas pelo esforço e a vida real permeada por critérios pré-modernos de ascensão social (cor, sexo, raça, estirpe). Era incompatível com a ideologia do “querer é poder” a distância social que separava os negros dos brancos, as mulheres dos homens.

Se deixada às suas próprias regras competitivas (que incluem além da competência, também a fraude, o preconceito e a discriminação), a sociedade não conseguia sequer proporcionar uma aparência de justiça capaz de convencer os discriminados a continuar acreditando no sistema social. Foi necessária a intervenção estatal corretiva.

E eis aí o paradoxo representado pela ação afirmativa: para combater a falta de eficácia da doutrina meritocrática precisou-se romper com ela, garantindo o acesso privilegiado de indivíduos que, por algum motivo repugnado pelo Estado (comumente o preconceito e a discriminação ) não conseguiriam, por si só, fazerem-se presentes nas posições sociais cobiçadas. Dessa conjuntura, emerge a idéia das discriminações positivas. O que, de certa forma, seguia na contramão das transformações ético-políticas da modernidade ocidental, cuja direção era a de superar a política de privilégios de qualquer ordem em benefício de políticas de igualdade de todos na lei e perante a lei. No âmbito constitucional, a doutrina do colour blind, segundo a qual a Constituição é cega para discriminações de cor, exemplificava a positivação da tendência à igualação formal.

Neste afã, quebrando uma linearidade histórica, as vítimas dos preconceitos ancestrais (de cor, sexo, raça) passaram a não mais clamar pelo simples fim de qualquer forma de discriminação. Mas reivindicavam, elas próprias, diferenciações que as beneficiassem e que servissem de confirmação oficial de que políticas estatais baseadas na neutralidade quanto à cor, raça ou sexo representavam uma omissão criminosa diante dos reflexos das discriminações passadas sobre o presente. As discriminações desumanas haviam deixado seqüelas que caberiam aos Estados combater, caso contrário, manter-se-ia funcionando o perverso círculo da exclusão pelo preconceito.

Muitos questionaram se “privilégios corretivos” eram menos odiosos do que os vetustos privilégios de honra e sangue. Temiam que as ações afirmativas se tornassem o patrocínio do ócio e da mediocridade a expensas do esforço e do talento. Afora o labor pessoal e o adequado uso dos dons naturais, a sociedade ocidental havia assentado que só o direito de herança, a sorte, a caridade ou as políticas públicas isonômicas eram legítimas beneficiadoras de indivíduos em amargas condições sociais: fossem negros, índios ou brancos, homens ou mulheres. Criar políticas públicas ou exigências legais orientadas sexual ou racialmente era injusto e uma subversão das regras do jogo democrático.

Para o pensamento tradicional, o problema das discriminações calcadas no preconceito era matéria que estaria suficientemente equacionada pela sua proibição oficial. Não seria uma questão de políticas públicas específicas, mas de sanção penal. Sanção que, no Brasil, tornou-se simbolicamente das mais enfáticas e praticamente das mais inócuas. Das mais enfáticas porque o crime de racismo, por exemplo, é caso excepcional de crime não apenas constitucionalmente definido (Art. 5o, XLII), mas também reforçado pela anacrônica característica da imprescritibilidade penal – a possibilidade ad eternum de o Estado perseguir o réu. Já na prática, a dificuldade de diferenciar a ocorrência do crime de racismo em face de outros tipos penais , aliada ao caráter fluido da discriminação racial à brasileira (travestida, muitas vezes, em piadas, brincadeiras e condutas de interpretação duvidosa - o chamado “racismo cordial”) tornou rarefeita a eficácia do tão simbólico crime.

Não obstante a ineficácia da mera punição ao crime de racismo como forma de combater as práticas discriminatórias, ela ainda é preferida – por legisladores, intérpretes e população em geral - às medidas de ações afirmativas. E os dois principais pontos de apoio a essa preferência são a valorização social dos sistemas meritocráticos e a idéia de que o princípio constitucional da igualdade repudia qualquer sistema de cotas.

No que segue, analisaremos como o pensamento jurídico contemporâneo tem lidado com a questão das flexibilizações do princípio da igualdade que o tornam receptivo às medidas afirmativas. Antes, no entanto, vamos analisar mais detidamente o que é o mérito, principal cânone justificador da ascensão legítima em nossa sociedade.

Meritocracia e justiça

Na pré-modernidade ocidental, a “pureza e qualidade do sangue” eram considerados critérios suficientes para legitimar a ascensão e permanência de alguém no topo das posições de poder e prestígio social . Com a substituição do conceito de honra – a marca dos diferentes – pelo de dignidade – a marca universal da igualdade (TAYLOR, 1994), operada na época das revoluções burguesas, tornava-se preciso justificar em termos de talento pessoal a posse de uma posição socialmente elevada. Montesquieu (1987:102) escrevera: “para que um homem esteja acima da humanidade, pela honra de linhagem a ele atribuída, é preciso que os outros paguem caro demais”. A honra de uns implicava o servilismo de muitos. Incentivava também a indolência do honrado e o reprimir dos talentos dos submetidos. A sociedade perdia duplamente.

Nos Estados Unidos da América, o precoce desprestígio do nobre rebuscado (que representava o colonizador inglês) e a ascensão ovacionada dos self made men é a versão mais enfática dessa passagem da política da honra para a do mérito pessoal. Em nosso meio brasileiro recente, a decadência dos socialites de estirpe e o simultâneo culto aos “emergentes” (que se fizeram, presumivelmente, à custa do trabalho, sorte, empreendimentos ousados e um assumido desprezo pela alta cultura) dão uma versão caricatural, mas não menos contundente dessa passagem.

É difícil negar que uma cultura que prefere os mais realizadores, os mais talentosos e os mais esforçados, apresenta uma abertura à mobilidade social maior do que aquelas em que as posições são fixadas a partir do nascimento ou do casamento. Privilegiar o talento e não a linhagem é também um poderoso incentivo para que a sociedade possa usufruir pessoas talentosas que, em busca de recompensas individuais, podem vir a promover o bem coletivo. Numa ética utilitarista, em que as políticas públicas devem se organizar segundo princípios que tragam o máximo de benefícios ao maior número de pessoas, premiar por méritos é não apenas uma aposta razoável, como, talvez, a única justificável.

Nesse sentido, as políticas de ação afirmativa seriam um prejuízo público, ao ajudarem a ascensão de pessoas que, por si só, não ascenderiam, além de ser um “meio artificial” de gerenciar a sociedade. Mas o que é um prejuízo público? Certamente isso só poderá ser respondido se soubermos qual é o presumível ganho social que se deixou de obter. Essa é a razão pela qual Dworkin (2000: 446) sustenta não haver mérito em sentido abstrato, que o mérito deve ser entendido como a posse de um meio capaz de permitir à sociedade atingir algum de seus fins. O talento atlético pode ser um mérito, se for socialmente importante à obtenção de vitórias em competições esportivas; a inteligência é ordinariamente um mérito, já que possibilita, em tese, a resolução de problemas sociais. E a cor negra poderia ser um mérito? Sim, desde que pudesse ser vista como um meio capaz de permitir o alcance de um fim socialmente valorizado.

Há fortes indícios de ganhos sociais gerais caso a sociedade privilegiasse as minorias sociológicas, como os negros. No clássico artigo The epidemic theory of ghuettos and neighborhood effects on dropping out and teenage childbearing (1991), Jonathan Crane, com grande apoio estatístico, sustenta que quando numa determinada população o número de modelos sociais econômicos (pessoas que sejam, pelo menos de classe média) chega a uma proporção muito baixa (algo em torno de menos de 5% da população total), a violência, o consumo de drogas, o abandono escolar e a gravidez na adolescência crescem explosivamente. Estudos qualitativos, como o realizado por Willis (1991) na Inglaterra, parecem sugerir efeitos análogos quando os jovens não encontram base concreta para acreditar que vale a pena lutar para ser alguém na vida. Assim, privilegiar as minorias seria uma forma de se obter benefícios gerais e públicos.

Mas, o segundo argumento, que diz que os negros ascenderiam “por meios artificiais”, talvez neutralizasse seu efeito de “modelo social”, pois os negros, por exemplo, socialmente bem-sucedidos, após a implantação de medidas de ação afirmativa, seriam vistos como indivíduos ajudados. Tal crítica padece, no entanto, do erro de supor que o sucesso predominante dos brancos é algo naturalmente conquistado. Se a ação afirmativa restringe artificialmente a concorrência que os negros terão de enfrentar para serem bem sucedidos, a discriminação racial historicamente também vem ajudando a reduzir a concorrência ante as posições que os brancos procuram alcançar. E, a não ser que se encare a discriminação racial contra os negros como algo natural (o que tem sido comum), por trás da predominância dos brancos na sociedade há uma política artificial que os favorece. A diferença da ação afirmativa para essas políticas igualmente artificiais (socialmente desenhadas) está no fato de que aquela é explícita e tem, pelo menos, uma razoável presunção de justiça, enquanto essas são sub-reptícias e perpetuadoras de desigualdade.

Portanto, a não ser que se elabore um conceito de mérito abstrato (que seria tão fluido a ponto de não ter muita utilidade), e não de mérito para determinado fim (que bem pode ser o de combate à discriminação racial), a promoção privilegiante de determinadas pessoas a partir de critérios como raça ou gênero pode ser veículo de justiça, desde que esteja a serviço do combate ao preconceito.

Ademais, mesmo se abandonarmos o conceito utilitarista de justiça e buscarmos o conceito de justiça como igualdade, não há estranheza no que é valorizado pela ação afirmativa. Já que ela simplesmente corrige – com eficácia discutível, é verdade – as desigualdades pré-ordenadas, ao ponderar no critério de avaliação a maior dificuldade presumida que aquele indivíduo negro teve, por exemplo, que enfrentar para chegar até o momento da inscrição no concurso. Conforme se extrai da leitura de Singer (1984) uma nota média de um negro no vestibular pode bem representar um potencial de superação maior do que a nota máxima daqueles cuja vida escolar não foi marcada pelo preconceito, discriminação e exclusão social.

As discriminações e o direito

Todos são iguais perante a lei, diz o princípio da igualdade, consignado na grande maioria das constituições contemporâneas. Segundo alguns, estaria aí evidenciado o óbice principiológico às políticas de ação afirmativa. Para outros, o aludido princípio vedaria apenas e tão somente as discriminações atentatórias ao conceito de igual dignidade humana, permitindo que se discriminasse sempre, e apenas, quando a resultante de tal processo fosse uma redução das desigualdades sociais. Assim, a prisão especial (CPP, art. 295) seria uma discriminação atentatória ao princípio isonômico – e como tal, não recepcionada por nossa Constituição atual -, já a prioridade na tramitação de processos em que figure como parte ou interveniente alguém idoso (Estatuto do Idoso, Art. 71) estaria correta, uma vez que tem por escopo permitir uma mais imediata prestação jurisdicional àqueles que, na média, dispõem de menos tempo para aguardá-la ou usufruir seus resultados.

O fato é que discriminar, ou seja, dar tratamento jurídico diferenciado a casos aparentemente iguais, é uma das tarefas mais corriqueiras no direito, já que, como lembra Alexy (1997: 384), tratar a todos, e sob todos os aspectos, de forma igualitária, levaria à criação de normas injustas, disparatadas e disfuncionais, uma vez que as pessoas diferem em suas posições jurídicas (um eleitor é diferente de um candidato), situações de fato (homens são diferentes de mulheres) e em suas ações (um criminoso é diferente de um inocente). Diante disso, o problema das discriminações estabelecidas pela lei resume-se, na lição de Bandeira de Mello (1997: 13), em saber quais os limites que adversam este exercício normal, inerente à função legal de discriminar.

A busca de limites aceitáveis para as operações de discriminação jurídica tem levado à construção de teorias sobre os critérios que diferenciam uma discriminação legítima de uma discriminação legalmente vedada. Vejamos o que dizem sobre isso, alguns autores de inegável influência no pensamento jurídico atual.

Para o jurista alemão Robert Alexy (1997), o que a máxima da igualdade proíbe são os tratamentos arbitrariamente desiguais. Valendo-se dos critérios freqüentemente utilizados pelo Tribunal Constitucional Alemão, diz que a arbitrariedade ocorre quando não há uma razão suficiente para justificar a desigualação operada. Assim, toda distinção que não é razoável, atinente à natureza das coisas ou concretamente compreensível estaria vedada. Pode-se operar discriminações, não se pode é operá-las a partir de critérios bizarros ou irrazoáveis.

Essa é, para Alexy, a versão atenuada do princípio da igualdade, porque permite a desigualdade desde que haja razões suficientes para promovê-la. Assim, poder-se-ia tratar negros e brancos de forma diferenciada, desde que presente alguma razão suficiente para realizar tal diferenciação. Mas Alexy vai além: sustenta um dever do Estado em tratar desigualmente os cidadãos desde que haja razão suficiente para isso. Nesse sentido, os cidadãos têm um direito prima facie a serem tratados de forma juridicamente desigual com vistas a seu benefício, desde que as razões que apresentem para que se opere tal diferença a justifiquem. E tal justificativa deve ser suficientemente forte a ponto de permitir, para o caso, a quebra da igualdade formal de todos.

Dessa forma, uma política de ação afirmativa (como a de cotas reservadas para negros em universidades) seria não só aceitável como devida, desde que as razões em favor dessa desigualdade pudessem desbancar o peso dos princípios que exigem um igual tratamento de todos na lei e perante a lei. Em síntese, o Estado alexyano deve tratar a todos de forma igualitária, repudiando quaisquer diferenciações, a menos que suficientes razões forem apresentadas em favor de um tratamento desigualitário.

O norte-americano Ronald Dworkin, por sua vez, enfrentando a questão da ação afirmativa no seu país cuja Constituição abrigou, durante a maior parte da história, concepções escravagistas e segregacionistas, pretende demonstrar por que há inconstitucionalidade na discriminação racial baseada em preconceitos, mas não o há nas discriminações raciais que sustentam as medidas de ação afirmativa.

Pela 14a Emenda à Constituição dos EUA está vedado que qualquer estado negue a uma pessoa sob sua jurisdição a igual proteção das leis. Isso significa, para Dworkin (1999: 455), que as leis e disposições políticas hão de demonstrar igual interesse pelo destino de todos. Tal emenda embora não especifique o que deve ser entendido por igualdade, exige que cada órgão governamental possua uma concepção plausível desse princípio, capaz de garantir a igual proteção legal de todos diante de qualquer um ou de qualquer um diante de todos. É a idéia do direito de igualdade como um trunfo individual, oponível erga omnes.

Sendo dever de cada órgão, legislativo, administrativo ou judiciário, basear suas decisões numa certa concepção de igualdade, Dworkin (2000: 445) analisa as concepções ordinariamente apresentadas:

I. Teoria das classificações suspeitas. É aquela que nega qualquer direito especial contra a discriminação, seja feita a partir de qualquer critério, só vedando distinções não-razoáveis. Como as classificações raciais historicamente têm sido feitas sem essa base de razoabilidade, elas são tidas como suspeitas. Mas essa suspeita é um impeditivo meramente relativo. Bastaria mostrar que segregar os negros, por exemplo, traria amplos benefícios públicos para que tal segregação fosse tida como razoável. Assim, em se provando que a separação dos freqüentadores de casas noturnas por critérios raciais seria capaz de diminuir a violência urbana, seria dito haver razoabilidade nesta distinção, autorizando-a. O critério que inspira esta teoria é claramente utilitarista: uma discriminação é razoável em função do grau de benefícios públicos por ela gerados.

II. Teoria das categorias banidas. Para essa teoria, a Constituição negaria a utilização de certas categorias para fazer distinções, independentemente de seu resultado. Estaria banido das autorizações constitucionais o emprego de termos como cor e raça enquanto operadores de diferenciação jurídica, independentemente de seus objetivos ou resultados. Aqui não haveria diferença entre medidas de ação afirmativa e políticas segregatórias baseadas em ideologias que pregam a inferioridade dos negros: ambas as políticas estariam vedadas.

III. Teoria das fontes banidas. Para essa teoria não se analisaria nem o resultado da política discriminatória, nem as categorias que ela utiliza, mas sua relação com direitos individuais e preconceitos. Assim, mesmo políticas discriminatórias que trouxessem um benefício máximo à maioria das pessoas estariam vedadas se fossem calcadas em preconceitos – já que é um direito individual (oponível contra toda a sociedade) não ter um negro, por exemplo, que se sacrificar para promover o bem-estar coletivo, sob o patrocínio de preconceitos. Mas se uma política discriminatória não se baseasse em preconceito, mas em seu combate, não haveria sua vedação em tese. Com efeito, tal política, num regime democrático, poderia ser traduzida como uma restrição que os privilegiados fazem a si próprios (diminuindo suas vagas nas universidades, por exemplo) na busca de resultados sociais mais justos (distribuição mais eqüitativa de vagas entre os diferentes grupos sociais).

Dworkin é partidário da teoria das fontes banidas como a única que leva os direitos a sério. Com efeito, a primeira tem um caráter marcadamente utilitarista: se os benefícios da segregação forem altos, seria dito haver razoabilidade em manter políticas de separação racial, e o direito dos prejudicados à igualdade seria desconsiderado. A segunda teoria (das categorias banidas) simplifica demais a questão, impedindo que se separe uma medida desigualitária em sua execução, mas igualitária em seus fins, de uma teoria marcadamente racista. Por essa teoria, uma medida de ação afirmativa equivaleria a uma medida de segregação racial nos moldes históricos das sociedades de passado escravocrata.

Já a teoria das fontes banidas, ao sustentar que o que não pode prevalecer são as preferências baseadas em preconceitos, deixa qualquer distinção por categoria no âmbito das possibilidades, permitindo separar adequadamente uma medida que quer fazer valer o direito das minorias das medidas que querem prejudicá-las

A exemplo de Dworkin, o jusfilósofo italiano Luigi Ferrajoli (2001) também classifica os diversos modelos de que dispõe o juiz para decidir acerca das distinções que podem ser conduzidas num regime que tenha no princípio da igualdade sua pedra angular. Tais modelos são expostos a seguir.

I. Indiferença jurídica das diferenças.Nesse modelo não se atribui qualquer relevância jurídica às diferenças. Deve o legislador/juiz proceder como se elas não existissem (color blind). Mas, ao não tutelar preferencialmente as categorias mais vulneráveis da sociedade (negros, mulheres, idosos etc.), o direito, quer admita ou não, está tutelando os mais fortes, já que tudo de que esses necessitam é a própria ausência de direito (abstenções de Estado) para fazer valer sua superioridade política. São os que vivem em situação socialmente precária que dependem, prioritariamente, que o direito lhes empreste à tutela, como forma de resistirem à opressão dos grupos socialmente poderosos fortes.

II. Diferenciação jurídica das diferenças.Nesse modelo há uma hierarquização das diferentes identidades, atribuindo a algumas status jurídico privilegiado e a outras sujeições discriminatórias. É o regime adotado pelos Estados que valorizam o homem mais do que a mulher, o branco mais do que o negro etc. Estados marcadamente discriminatórios e fundamentados em concepções arcaicas sobre a natureza das diferenças entre os fenótipos humanos. Corresponderia, tal doutrina, à tutela jurídica dos preconceitos.

III. Homogeneização jurídica das diferenças. Aqui as diferenças são desconsideradas para que cedam lugar a uma identidade normativa, única que o Estado admite como relevante. Assim, não existe o branco ou o negro, mas apenas o cidadão universal. O problema é que esse “modelo universal” é construído à imagem e semelhança do modo de vida dos dominantes: homens brancos. À vitimização pelo preconceito ou discriminação é dada pouca ou nenhuma relevância. É possível notar que, neste caso, há uma “universalidade de fachada”. A despeito de não dar relevância às diferenças, reduzindo-as a denominadores comuns, o direito patrocina determinado modo de vida que serviu de standard à formação do modelo que passou a ser considerado universal, deixando de levar à sério os problemas enfrentados pelas categorias sociais oprimidas.

IV. Igual valorização jurídica das diferenças. Nesse último modelo, o Estado tutela as diferenças de forma igualitária, permitindo seu livre desenvolvimento. Para isso, empresta-lhes a força equilibrante dos direitos fundamentais. Diz o autor (2001: 76):

A igualdade diante dos direitos fundamentais resulta assim configurada como o igual direito de todos à afirmação e à tutela da própria identidade, em virtude do igual valor associado a todas as diferenças que fazem de cada pessoa um indivíduo diverso dos demais e de cada indivíduo uma pessoa como todas as outras.

Trata-se do direito à igual dignidade; do reconhecimento de que as diferenças existem e que são bases legítimas para reivindicar a tutela do Estado para continuarem a existir.

É esse último modelo o defendido por Ferrajoli, que, especificamente referente à ação afirmativa, acredita que ela pode ser usada como um corretivo à tese da homogeneização. Como já dito, o direito, ao pretender tratar todas as diferenças a partir de um único critério (sujeito abstrato universal), acaba beneficiando as identidades que foram tomadas como modelo para a constituição desse sujeito (ao qual se atribui abstração e universalidade). Portanto, seria aceitável, com fundamento no princípio da igualdade, a existência normas que selecionem positiva e transitoriamente (enquanto necessário) certas identidades que, por se afastarem do modelo padronizado pelo direito, amargam a desigualdade de tratamento no mundo dos fatos.

Embora não esteja tratando diretamente sobre as políticas de ação afirmativa, a análise que Celso Antônio Bandeira de Mello (1997) faz do princípio da igualdade pode-nos esclarecer como tais políticas dialogam com o ordenamento jurídico pátrio. Para esse autor, uma diferenciação de tratamento jurídico é intolerável não só quando resulta de uma norma que individualiza prévia e absolutamente seu destinatário (concedendo a alguém um privilégio pessoal e único ou perseguindo-o de forma pessoal e individualizada), como quando não há correlação lógica entre a base material de diferenciação (sexo, raça, idade etc.) e o regime jurídico diferenciador correspondente. Diz Bandeira de Mello (1997: 17):

(...) que as discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula da igualdade apenas e tão-somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida, por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição.

A análise da quebra ou não do princípio igualizador seguiria, para Bandeira de Mello, as seguintes etapas:

I. Determinar o fator de desigualação (sexo, raça, altura...);
II. Analisar os regimes jurídicos diferenciados por força daqueles fatores (“às mulheres é vedado...”, “aos descendentes de escravos será concedido...”, “não serão admitidos candidatos com altura inferior a...”);
III. Analisar se há correlação lógica entre as etapas I e II, entre a diferença considerada e o regime jurídico diferenciador (“às mulheres é vedado ingressarem na Academia de Polícia”; “Aos descendentes de escravos serão concedidas bolsas de estudo para compensar a situação social em que freqüentemente se encontram hoje...”; “Para ingresso na Marinha, o candidato deve ter altura mínima de 1,63 m...”);
IV. Analisar se tal correlação lógica é compatível com as prescrições constitucionais (a igualdade constitucional entre homens e mulheres não proibiria a vedação de seu ingresso em academias de polícia? A categoria “descendentes de escravos” não seria uma discriminação pela cor vedada pela Constituição, ainda que estatisticamente se possa provar que a herança do período escravocrata lhes traz embaraços econômicos presentes? A exigência da altura mínima para ingresso na Marinha seria aceitável num regime constitucional que diz que é dever do Estado integrar até deficientes em seus quadros de pessoal, quanto mais pessoas levemente abaixo da altura padrão?).

Em resumo, para se saber se uma norma faz uma discriminação legítima ou arbitrária é preciso ver se ela não discrimina de forma absoluta seu destinatário e se há razoabilidade entre a diferenciação feita e os objetivos pretendidos, que devem, ainda, serem, pelo menos, não vedados pela Constituição.

Dessa forma, há um amplo leque de possibilidades de criação de regimes jurídicos diferenciados legítimos. Permanecendo como inválidos aqueles que não sejam capazes de cumprir os requisitos acima descritos. Quanto às políticas de ação afirmativa (no seu modelo mais simples, de cotas), não haveria vedação a priori, já que não individualizam prévia e absolutamente seus destinatários (ao contrário, se estendem a toda uma classe de pessoas) e têm por escopo reduzir a desigualdade (o que corresponde a um princípio basilar do Estado Brasileiro).

Em conclusão a este tópico, parece claro que os citados autores atestariam a justiça interna, nos ordenamentos dos Estados democráticos de direito, da aplicação de medidas de ação afirmativa, desde que tais políticas:
I. Não estivessem baseadas em preconceitos;
II. Operassem apenas em situações nas quais a aplicação ortodoxa do princípio da igualdade se mostrasse ineficaz veículo de justiça;
III. Fossem realizadas como flexibilizações razoáveis do princípio da igualdade;
IV. Ponderassem valores fundamentais concorrentes do ordenamento jurídico em questão;
V. Garantissem a dignidade do ser diferente mediante o combate à desigualdade de oportunidades sociais.

Apontamentos finais

A despeito dos que defendem, no Brasil, a doutrina do color blind, não há dúvida de que quando a Constituição Brasileira, por exemplo, veda distinções por cor, raça ou sexo, isso está direcionado à proibição das distinções inferiorizantes e não àquelas cujo objetivo é a redução das desigualdades. Para confirmar o sentido dessa interpretação basta proceder a um inventário do porquê histórico de palavras como cor e raça figurarem em nosso texto constitucional. Sem dúvida: para combater as distinções que tomavam os diacríticos raça ou cor como fonte de hierarquização social. E, como lembra Coelho (1997: 44):

Refazer a pergunta sobre quais foram os problemas sociais que ensejaram determinada resposta normativa, é, portanto, um recurso hermenêutico a mais, que não pode ser desprezado, sobretudo quando se pretenda descobrir a razão subjacente a um enunciado normativo cujo significado se nos apresente, de alguma forma, problemático.

Nossa Constituição não proíbe distinções por origem, raça, cor, sexo ou idade, veda-as, isto sim, quando baseadas em preconceitos (Art. 3o, IV). Veda-as quando constituem práticas atentatórias aos direitos e liberdades fundamentais ou quando constituem prática de racismo (Art. 5o, XLI e XLII). Veda-as, ainda, quando são usadas para dificultar o acesso ou aviltar o salário dos trabalhadores negros, mulheres e idosos (Art. 7o, XXX). Mas aceita-as quando são favoráveis aos menos protegidos socialmente: proteção do mercado de trabalho para a mulher (Art. 6o, XX), reserva de vagas aos portadores de deficiência (Art. 37, VIII) etc.

Tanto o sentido da proibição das citadas distinções, verificado em nossa Constituição, limita-se ao seu uso preconceituoso que poucos – se é que os houve - ousaram alegar que a reserva de vagas para portadores de deficiência física representava uma contradição no Texto-Mor. E por que não representa? Porque seu objetivo é uma maior isonomia final na sociedade e não o de perpetuar distinções odiosas. Da mesma forma, o recente Estatuto do Idoso é pródigo em reservar vagas para pessoas com mais de 60 anos (3% nos programas habitacionais; 5% das vagas nos estacionamentos; 10% dos assentos nos coletivos urbanos etc.). Também neste caso ninguém alegou inconstitucionalidade. A verdade é que a reserva de vagas aceita em nosso país vai da participação obrigatória de mulheres em candidaturas a cargos políticos à reserva de espaços privilegiados aos presos de “primeira classe”, abrangidos pela mais que discutível rubrica da prisão especial.

Diante, então, de um país tão receptivo a sistemas de cotas, como justificar que tal expediente seja visto com tanta desconfiança quando os beneficiários são os negros? É claro que há problemas de operacionalidade adicional nas cotas raciais. Afinal, quem é negro no Brasil? Num país de miscigenação como o nosso, o número varia entre 5 e 45 por cento da população!, conforme sejam, ou não, somados os que se auto-intitulam, junto ao IBGE, como pardos ou descrições afins (mulatos, caboclos etc.). Quanto de “negritude” é preciso possuir para exercer legitimamente o direito às cotas? Haveria perícia para isso? Negros ricos também fazem jus ao privilégio a expensas dos interesses de brancos pobres?

Talvez sejam essas questões relativas à operacionalidade o que tem impedido que o debate sobre as ações afirmativas no Brasil saia da fase embrionária, ou que não passe de mera exegese da doutrina norte-americana sobre o assunto. Expediente, este último, comumente utilizado para nos fazer sentir em sintonia com o debate universal dos grandes temas, sem que precisemos lidar com os óbices apresentados em suas concretizações. É mais um caso em que a tão sonhada fantasia de pureza no direito procura nos inocentar diante de nossa dificuldade em lidar com a miscigenação da realidade.


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ARTIGO ORIGINARIAMENTE PUBLICADO NA REVISTA IMES: DIREITO, da Universidade de São Caetano do Sul (SP), no seu n. 6 do ano III, em 2003.

2 comentários:

Anônimo disse...

Professor Sandro
E se em vez de cotas para negros ou descendentes de escravos (categorias difíceis de empregar na prática) fossem definidas cotas para pobres, que são definitivamente os prejudicados no sistema da meritocracia? Que complicações surgiriam, na sua opinião?
Abraço

Sandro Sell disse...

Caro Paulo, várias análises têm mostrado que se ao invés de se darem cotas para negros se desse para pobres, poucos negros seriam beneficiados. Há mecanismos sociológicos que explicam por que é verdade que os negros são os mais pobres entre os mais pobres e, em média, tiram as piores notas em exames vestibulares, mesmo que comparados aos de igual renda. Alguns acreditam que isso se deve a uma profecia auto-realizável efetuada pelos estudantes negros: não enxergam negros bem-sucedidos, logo passam a acreditar que de nada vale estudar porque, com estudo ou não, as vagas desejadas continuarão na mão dos brancos. A ação afirmatica serviria para criar modelos copiáveis - negros bem-sucedidos - para evitar a auto-sabotagem dos próprios jovens negros ao seu futuro...
O Professor Marcelo Tratemberg tem estudos sobre a UFSC mostrando que se não houver cotas para negros, mas apenas elevadas cotas para estudantes de escolas públicas ainda assim a UFSC continuaria branca como sempre...