10.12.06

A razão e as paixões

Professor Sandro Sell


O cavalo e seu cocheiro

Como possível guia da existência, os seres humanos possuem o atributo da razão, essa capacidade de orientar sua conduta de forma planejada, calculada e compreensivelmente adequada aos fins a que se propõem. A posse da razão nos sugere a idéia de que, com prudência e discernimento, podemos controlar as situações em que nos encontramos, garantindo que delas surjam as melhores resultantes possíveis. Na imagem platônica, a razão é o experiente cocheiro a guiar o xucro cavalo dos impulsos imediatistas. Por isso é que se pode dizer que uma vida racionalmente guiada é uma vida protegida daquela parte do infortúnio humano cuja causa só podemos atribuir a nós próprios. Nesse sentido, a razão é uma defesa contra o acaso preguiçoso, daqueles que se dizem vítimas das circunstâncias quando o que lhes trouxe a ruína foi uma simples falta de planejamento e autocontrole.

Quem ainda não foi exortado a “ser racional”?, a agir “com racionalidade?”. É claro que o fato de precisarmos ser lembrados de que é melhor agirmos dessa forma já indica que o uso da razão não é tão natural quanto se supõe. Pela freqüência com que complicamos nossa existência podemos até supor que a razão é de utilização apenas excepcional em nossas vidas. No cotidiano, os impulsos mais imediatos tendem a prevalecer sobre os planejamentos racionais, o cavalo comanda o cocheiro. É assim que, em febres de consumismo, as pessoas levam para casa o que não conseguirão pagar; embriagam-se e dirigem, confiando na imagem do santo que penduraram no espelho do carro; têm relações sexuais sem proteção, acreditando que “o que tiver que ser será”. Ao mesmo tempo, falta-lhes força para seguir planos racionalmente traçados: concluir o curso de línguas, manter a dieta ou tornar-se mais paciente. Parece que, ao final das contas, a razão serve mesmo é para fazer os indivíduos sentirem-se culpados por não conseguirem ser aquilo que, em momentos de extrema calmaria do cavalo, o cocheiro lhes propôs.

A razão fracassa com tanta freqüência porque não é nosso único guia. O ser humano é um ser passional tanto quanto é um ser racional. Se a razão pretende nos conduzir para as melhores resultantes de vida possíveis, as paixões nos arrastam para caminhos que a própria razão desconhece. Por paixões estamos aqui nos referindo aos diversos tipos de obstinações (seja de pensamento, sentimento ou conduta) que nos atraem para algo, com uma pressa, maneira ou intensidade desautorizadas pela razão. A paixão é, sobretudo, produtora de parcialidade, exagera na atenção que concede a um único ponto deixando os outros a descoberto, motivo pelo qual ela é tão freqüentemente associada a uma espécie de vício. Se a complexidade é a lei da vida, concentrar-se em demasia no objeto da paixão é viver de forma desequilibrada e perigosa. Sim, perigosa, porque em desaparecendo esse objeto de paixão, desaparecerá também o sentido da existência do apaixonado. Ébrios sem bebida, dependentes sem droga, amantes sem amados, consumistas sem dinheiro, exemplos de vida em desespero.

Dando um destaque todo especial ao efeito equilibrador da razão sobre a vida de cada um, os moralistas sociais sempre temeram as paixões, por acreditarem que elas são os grandes destruidores do homem enquanto ser colaborativo da sociedade. Teme-se que, sob o império da paixão, o trabalhador deixe de ser obediente ao patrão; o casto, de ser obediente aos seus votos; e o soldado, de ser obediente à pátria, pois que o apaixonado só reconhece um senhor, seu objeto passional. Daí o ancestral controle social das fontes habituais de paixão: sexo, drogas e poder. Esses três elementos não têm autorização para circularem livremente, mas apenas quando acompanhados por rituais que mostrem a excepcionalidade de seu emprego, a coleira que os prende.

É assim que o sexo deve ser feito às escondidas, de preferência a noite, sendo considerado grosseiro perguntar a quantas anda a vida sexual alheia ou exibir suas peripécias sensuais. E duas pessoas correriam mais risco de serem vítimas de linchamento popular se estivessem em uma praça praticando sexo do que se estivessem perigosamente duelando entre si. Pois o duelo não é contagioso como o sexo. O controle sobre o sexo é o reflexo do medo social de que ele seja reconhecido como tão bom que ocupe tempo demasiado das pessoas, que, então deixariam de trabalhar, estudar e contribuir socialmente. A mesma interdição que hoje sofrem as drogas, sofreu a prática da masturbação: prazeres que não trazem benefícios sociais e são de fácil contágio fazem tremer as bases da sociedade. A imagem de que todo drogado é um delinqüente em potencial se equivale em simplismo à imagem feita, antigamente, do adolescente masturbador como um degenerado. Prazeres poderosos e de fácil obtenção devem ser estritamente regulados. Sua possibilidade de existência se resume à clandestinidade ou a momentos rituais, de quebra coletivamente aceita das regras sociais: só há carnaval porque há uma quarta-feira-de-cinzas já previamente estipulada. A sociedade exerce no coletivo aquilo que se acredita ser, individualmente, a função da razão: evitar que a paixão transborde a existência, resumindo-a à perseguição de caprichos pessoais.

Doentes de paixão

Entre os gregos, as paixões foram vistas como algo de que se sofria, um padecimento moral e físico. É assim que se compreende que da mesma palavra grega, “phatos”, haja derivado os vocábulos passional e patologia. Paixão não se tem; paixão se sofre. Em termos religiosos, a paixão era uma espécie de possessão divina, uma forma de os jocosos deuses do Olimpo perturbarem a vida dos pobres mortais. Quem nunca soube da vida toda certinha de alguém que ao defrontar-se com uma enorme paixão caiu como um castelo de cartas? E que esse mesmo alguém, anos mais tarde, refere-se ao período em que se “libertou” daquela paixão, como o período em que se “curou”? Enquanto ele estava doente, nenhum dos apelos de seus amigos à razão eram suficientes. A paixão seria como um daqueles vírus sem vacina ou remédio: ao contrai-lo tudo o que se pode fazer é esperar o fim natural de seu ciclo, pois que o uso da razão lhe é inócuo.

O cristianismo herdou essa má-vontade grega para com as paixões. Passou a considerá-las vícios de caráter, associando-as a pecados, num rol que ia da luxúria à gula. Para o cristão, uma vida racional seria aquela que, mediante a eliminação das paixões, levasse o homem a Deus. Jesus havia dado a fórmula do cálculo de uma vida racional por excelência: “De que adianta ao homem ganhar o mundo e perder a sua alma?” Aquele que acreditava em Deus e não extirpava suas paixões fazia o pior negócio do mundo: trocaria a eternidade bem-aventurada por uns poucos anos de sucesso entre humanos. Sic transit gloria mundi. Daí, o mestre do Evangelho poder dizer com grande convicção “Perdoai-vos, eles não sabem o que fazem”. De fato, só quem não conhecesse as regras do novo jogo (que era, sobretudo, a de um cálculo de rendimentos celestes), ou fosse um completo estúpido, cederia às paixões, comprometendo os dividendos eternos de uma vida regrada.

Com relação à paixão relacionada ao sexo e ao amor, a posição cristã foi incisiva. Os santos eram castos, ou assim se tornavam ao serem convertidos, como no caso de Santo Agostinho. Melhor seria que se imitassem os santos, mas como isso não era possível (sobretudo em termos demográficos), um matrimônio estável era a solução. Se as paixões amorosas se caracterizam pela inconstância, pela troca do objeto de afeto, devido ao esgotamento das forças ou da frustração das inflacionadas expectativas dos amantes, o casamento cristão era o inverso dessa tendência: indissolúvel, exclusivista e cercado de inúmeros deveres que arrefeceriam qualquer paixão exacerbada. Se na Idade Antiga e Média, o casar-se por amor ou desejo recíproco já não era a regra, o casamento aos moldes cristãos estava aí para garantir que, quando tal ocorresse, esse “acidente” seria logo corrigido pelo dever da moderação sexual, da procriação em larga escala e pela necessidade de vigiar não apenas ações e palavras, mas o próprio pensamento. O casamento cristão é, sobretudo, uma tecnologia moral antipaixão.

Enquanto no mercado oficial das condutas, a paixão tinha circulação proibida, no mercado paralelo valia qualquer coisa para possui-la. É assim, que, em plena Idade Média, vemos o “ressurgiumento” da paixão, na sua versão galante. Na medida em que casamento cristão exortava a renúncia, a fidelidade, a indissolubilidade, o cavaleiro medieval tornava-se o símbolo da paixão enquanto arte. Sua astúcia em cortejar damas proibidas, arriscando a vida por amores inconseqüentes, era uma virtude pagã na mesma medida em que era um vício cristão. Nas cortes, a hipocrisia foi a fórmula para lidar com essa dualidade: cerimônias de casamento cada vez mais pomposas, com a multiplicação das testemunhas ao solene ato, disfarçavam a circulação cada vez mais corrente da infidelidade elevada à categoria de arte.

Séculos mais tarde, indignados com o racionalidade rígida do Iluminismo, membros do movimento romântico convertem a paixão no próprio sentido da vida. Alguns acreditam que só se vive bem quando se vive de forma apaixonada. Há, então, a criação de uma estética do sofrimento passional. As paixões nos levam à ruína, é verdade, mas a paixão, em particular a paixão amorosa, nos leva a um sofrimento que redime. A aventura de seguir seus caminhos tortuosos, o risco de ser devorado pelos dragões que a protegem, a convicção de que viver bem é descobrir uma paixão pela qual vale a pena viver ou morrer, tudo isso daria à mísera existência humana uma experiência de grandiosidade. Sob o desespero da razão, a paixão amorosa tornava-se, assim, a forma sublime do sofrimento humano, em síntese: o único que valia a pena.

Paixão e lucro

E as outras paixões, pela glória pessoal, pela riqueza, pelo poder? No geral, continuavam a receber a qualificação de condutas viciosas, indesejáveis, vis, o oposto da razão. Mas não por muito tempo. Numa verdadeira mudança de paradigma, começou a surgir por volta do século XVII um termo tido como o motivador por excelência da conduta humana: o interesse próprio. Formado por um amálgama de razão (de perseguir algo de forma planejada) com paixão (de querer algo obstinadamente), os interesses seriam logo louvados como o guia mais sensato da existência humana. O problema não estava, então, nas paixões, mas na forma irracional de guiá-las. Aceitou-se,até, que as paixões davam o impulso necessário ao progresso da vida humana (Hegel achava que uma vida sem paixão era uma vida imobilizada), mas justamente por serem de natureza impulsiva as paixões tendiam a sugerir caminhos ruinosos para a sua obtenção, e era por isso que precisavam ser guiadas pela razão: deixe que a paixão lhe dê o objeto de afeto (dinheiro, mulheres, glória), mas transfira à razão o modo de conquistá-los e, só assim, a fortuna lhe será estável. Em suma: nós não podemos ser guiados apenas pela razão (pois somos passionais), mas também não podemos ser guiados sem ela: descubra sua combinação ideal de paixão e razão (de interesse) e seja bem-sucedido.

Max Weber, na sua obra mais famosa (A Ética protestante e o espírito do capitalismo) enxergou no capitalista moderno essa junção venturosa de paixão e razão, de interesse, que o levava a acumular riquezas de forma segura e a gasta-la de forma excessivamente prudente. O capitalista queria mais e mais, só que não como seu antecessor, o aventureiro do ouro: se este conquistava de forma espetacular e esporádica (pilhagens, pirataria, caça a tesouros) e gastava de forma mais espetacular ainda (banquetes, bebedeiras e luxúria), o capitalista racional conquistava com método (investimentos contínuos, calculados) e gastava com excessiva discrição e prudência, já que ostentar - sobretudo entre os protestantes, os novos ricos da modernidade - seria prova cabal de um afastamento de Deus e de uma queda nas paixões, no mal sentido do termo.

O homem como ele é

O conceito de interesse nasceu da constatação, sobretudo a partir de Maquiavel, de que o homem é um ser mesquinho, egoísta, passional e que sempre o será. Por mais que a Igreja exortasse a humanidade a ser boa, não haveria jeito, o homem jamais superaria sua natureza. Ele era como aquele escorpião da fábula do lago, que após implorar que o sapo o atravessasse no rio caudaloso, sob a promessa de que não o envenenaria, ainda no meio do trajeto, pica o gentil anfíbio, que, moribundo, balbucia a seu ingrato passageiro: “Grande lucro! Agora eu morrerei envenenado e você afogado”. Ao que o escorpião teria resignadamente respondido: “Sinto muito, meu amigo, mas não posso trair minha natureza”. Por mais que o homem procurasse imitar Cristo em sua pureza, ele fracassaria: o veneno das paixões lhe era superior. Se o cristianismo queria algo da humanidade teria que se render a essa constatação, como fez o protestantismo com a questão do enriquecimento financeiro: ao invés de proibir os juros (à moda católica) apenas os regrou. Não havia como deixar o escorpião humano menos venenoso, apenas como moderar a freqüência de sua picada.

As concepções de homem da modernidade, de Maquiavel, Hobbes indo até Freud tiveram em comum o reconhecimento de que as paixões nos definem no mínimo tanto quanto a razão. A paixão não é assim, como pensavam os gregos, um vírus que nos é inoculado a partir de fora. As paixões estão em nós, como parte intrínseca do que somos. Podem variar seus objetos, aquilo a que nos apegamos, mas não o fato de que suas manifestações de parcialidade obstinada, mais dia menos dia, acabarão por nos render. A razão não é nosso único senhor, e viver enquanto humano é, em total desagrado à regra bíblica, equilibrar-se na função de serviçal de senhores contrapostos.

Ao contrário do que se pode pensar, reconhecer a força das paixões não é um problema apenas pessoal, mas o problema político por excelência. Se Maquiavel é tido como o pai da moderna política, enquanto ciência, é justamente porque ele estava preocupado em fundar um Estado não para o homem de boa-vontade do cristianismo, nem tampouco para o homem lógico criado pela razão, mas para o homem como ele é: astuto, estúpido, racional e apaixonado. O homem em sua inteireza e simplicidade. E se o mercado, com suas grifes e marcas, pode nos vender tantas adoráveis quinquilharias, que nos encarecem sobremaneira a vida, sem contribuir em nada com a funcionalidade da existência, é porque não fabrica seus produtos para a razão, mas nos delicia a partir de nossa carente passionalidade. Em resumo não só a política séria, quanto a economia bem-sucedida dão especial atenção às nossas paixões. Se o cidadão e o consumidor um dia forem plenamente racionais teremos que reinventar o mundo, correndo o risco de deixar para traz quase a totalidade dos sonhos que, por enquanto, enchem de sentido nossa precária existência.

Um comentário:

Anônimo disse...

Há muito nao via uma abordagem tao interessante e humana a respeito daquilo que considero o maior dilema humano, ser racional ou passional.Como tenho tendencia a ser mais passional do que racional e sempre acabo PAGANDO de alguma forma por ser deste jeito, a abordagem do Mestre nos mostra que este dilema é inerente a condiçao humana e que o importante é estarmos conscientes do equilibrio.