27.11.06

Descontos sexuais: o lado não polêmico da inconstitucionalidade cotidiana

Professor Sandro Sell



Em 1997, o Grupo de Teatro Olodum, movido pela idéia de que os negros têm menos acesso à cultura, resolveu dar um desconto inusual: eles pagariam apenas 50% do valor do ingresso na peça Cabaré da raça. Um preço para brancos, outro, menor, para negros. Sob a acusação de atentar contra o Princípio da Igualdade (art. 5o. caput da CF), o Olodum cedeu, estendendo o desconto a todos os freqüentadores. Devido a essa atitude preventiva dos produtores do espetáculo, o Judiciário não chegou a se posicionar sobre o caso. Seria ilustrativo vê-lo fazendo, pois o princípio isonômico não é apenas um dos nossos fundamentos constitucionais: ele é a base do nosso sistema de direitos. Tal é o que entende, por exemplo, Celso Ribeiro Bastos quando salienta que o fato de o citado princípio estar localizado não num dos incisos, mas no próprio caput do artigo 5o da Constituição, o centro nevrálgico de nossas garantias e direitos, indica sua precedência axiológica em face dos demais princípios. A igualdade deveria ser, então, o fundamento de nossa ordem jurídico-social.

Não obstante, muitos fatos nos levam a crer que o princípio isonômico é sub-aproveitado enquanto corretivo de desigualdades que, por sua cotidianidade e aparência simpática, proliferam-se incólumes a questionamentos judiciais. Dar descontos e entradas livres a mulheres em bares e boates, presumir-lhes uma consumação mais baixa do que a masculina, utilizar a estratégia do “mulheres free” para atrair homens para casas noturnas, ofende o princípio isonômico? Qual a diferença em dar desconto por critérios raciais e dar descontos por critérios de sexo ou gênero? Talvez a diferença não seja de essência, mas de costume. Com efeito, o critério racial se nos apresenta como exótico, importado de países como os EUA e suas políticas de cotas, enquanto as nuances questionáveis das desigualações por gênero mostram-se corriqueiras e simpáticas demais – de inspiração cavalheirística – para ousarmos questionar seus eventuais problemas. Resistiria esse pretenso cavalheirismo a uma análise constitucional das desigualdades aceitáveis? Analisemos.

Dar descontos a negros, mas não a brancos, em espetáculos parece clara e consensualmente afrontar a ordem das desigualdades aceitáveis num Estado de direito. Basta lembrar que fazer o inverso, cobrar mais caro dos negros, seria uma atitude certamente tida como criminosamente racista. Mas as coisas não são tão simples quanto aparentam. Uma medida desigualitária será classificada como atentatória à isonomia mais pela motivação que a inspira do que pela diferenciação que efetivamente opera. Não são, certamente, motivações reprováveis que alimentam a criação de regimes diferenciados – cotas, descontos, vagas preferenciais - quando o objetivo de tais diferenciações é que, por meio delas, aqueles que são costumeiramente discriminados aproximem-se em possibilidades dos socialmente privilegiados. Cobrar menos impostos dos pobres, dar vagas preferenciais a idosos e a deficientes em estacionamentos, subsidiar a habitação e a alimentação dos miseráveis são exemplos de regimes desigualitários, mas não contrários à isonomia, já que seu objetivo final é, justamente, corrigir desigualdades factuais, distribuindo os bônus públicos de forma preferencial aos mais necessitados. A equação das diferenciações aceitáveis por nossa Constituição passa pela lógica de que a desigualação no antecedente (no regime diferenciador) deve provocar maior igualdade no conseqüente (no objetivo da diferenciação). Portanto, tratamentos desiguais só serão tolerados se tiverem por objetivo e conseqüência diminuir a distância inicialmente verificada entre as pessoas na sociedade. Esse é o motivo porque deficientes físicos podem ser contratados a partir de regimes especiais pela Administração Pública (art. 37, VIII, da CF). Toda diferença de tratamento deve servir para diminuir as diferenças sociais e jamais para perpetuá-las.

As polêmicas medidas de ação afirmativa, como as cotas para negros em universidades, seguem a mesma idéia de realização não ortodoxa do princípio da igualdade: desiguala-se brancos e negros no ingresso à universidade para que brancos e negros igualem-se mais facilmente em termos do número de egressos do nível superior. Se as cotas realmente funcionarão para corrigir as desigualdades raciais brasileiras, é questão polêmica e por nós já debatida exaustivamente em outro lugar , aqui o que interessa é salientar que a motivação igualitária das cotas as isentam de se constituírem em afronta ao princípio isonômico. Em sua intenção, as cotas pretendem materializar o objetivo constitucional da igualdade sonhada, mas ainda inexistente, entre negros e brancos. Na prática, as cotas, talvez, só sirvam para acirrar preconceitos raciais, mas, em tese, a desigualação que promovem é teleologicamente compatível com nossa ordem constitucional .

Entendido o norte interpretativo das desigualações possíveis, voltemos a polêmica de se fere ou não nosso ordenamento jurídico diferenciar positivamente as mulheres no ingresso a casas noturnas.

A igualdade entre homens e mulheres em nossa ordem constitucional poderia perfeitamente derivar do caput do artigo 5o: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...”, mas o legislador quis ser enfático e, já no primeiro inciso do citado artigo, complementou: “Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações nos termos dessa Constituição.” A expressão “nos termos dessa Constituição” tem sido entendida como significando que a desigualação entre homens e mulheres só poderia ser feita pela própria Carta Magna, que de fato o faz. A Constituição promove discriminações em favor das mulheres em três casos: licença-gestação superior à licença-paternidade (art. 7o, incisos XVIII e XIX); proteção específica ao trabalho da mulher (art. 7o, XX) e prazo mais curto para aposentadoria por tempo de serviço feminino (arts. 40 e 202, e suas especificações). Autores como Eliane Maciel salientam que tais casos são excepcionais, com fundamentação própria, e não podem servir como motivos de criação de novas diferenciações analógicas, já que é princípio básico de hermenêutica jurídica que as exceções devem ser interpretadas de modo estrito. Se assim for, a concessão de descontos privilegiadores às mulheres em casas noturnas afronta o princípio geral de igualdade constitucional e não se enquadra em nenhuma das exceções constitucionalmente elencadas.

Mas não é tão simples assim. Poderia haver, via ampliação teleológica, outros casos de diferenciação aceitáveis entre os sexos? Sim, lembremos que a norma da igualdade no artigo 5o caput e inciso primeiro possuem a natureza não de regra jurídica estrito senso - como aquelas que dizem clara e objetivamente o que deve ser feito - mas de princípios, isto é, de vetores de inspiração a criação e interpretação de normas infraconstitucionais. Uma regra jurídica costuma ter a estrutura do artigo: a licença-gestação será de 120 dias (art. 7o, XVIII, da CF). Quando uma regra jurídica não é clara, podemos criticar a técnica do legislador. Mas há normas jurídicas que não podem ser claras, pois não se destinam a orientações pontuais, mas são princípios que devem ser efetivados da melhor maneira dentro das possibilidades sociais. Um princípio constitucional não manda que se faça X, manda que X seja levado em consideração da forma mais ampla possível, desde que compatível com outros princípios igualmente constitucionais. Portanto a expressão “nos termos da Constituição” não é limitadora de outras diferenciações entre homens e mulheres, mas apenas de diferenciações que não tenham por objetivo final tornar mais igualitária a situação entre os dois sexos. Assim, o fato de não estar previsto na Constituição Federal, não torna de per si inconstitucional o desconto dado às mulheres em casa noturnas. O que o tornaria inconstitucional é se tal desconto não pudesse ser razoavelmente justificável dentro de uma teleologia da igualdade.

Já houve tempo em que se alegava que os citados princípios constitucionais dirigiam-se apenas ao Estado e ao legislador, mas não aos particulares, já que estes possuiriam maior grau de autonomia. Assim, um espetáculo público não poderia conceder descontos a mulheres, apenas por serem mulheres, mas uma empresa privada, sim. Mas, modernamente, como salienta Canotilho essa interpretação está superada. O princípio da igualdade vincula a todos: legislador, juízes, administradores públicos, empresas e pessoas físicas. A autonomia da vontade particular é, lembremos, residual, imperando apenas nos termos em que o ordenamento constitucional, guardião dos interesses sensíveis do Estado e da sociedade, permite. Assim, não há como justificar pelo direito de liberdade individual práticas que o ordenamento jurídico repudie. Resta saber é se os chamados descontos de natureza sexual incluem-se em tais práticas constitucionalmente repudiadas.

Quem paga a conta dos descontos dados às mulheres? As casas noturnas? Certamente que não. Na composição dos custos do estabelecimento, esses descontos são transferidos para os clientes integralmente pagantes: os homens. As casas noturnas oneram um sexo em benefício do outro. Repete-se aqui a regra geral dos subsídios: se alguém os recebe, outro alguém tem sua conta majorada. Certamente, muitos homens poderiam estar dispostos a subsidiar as mulheres em termos de ingressos e descontos. Mas pode-se presumir em grau absoluto tal disposição, transferindo-se a conta de um consumidor (mulher) a outro (homem)?

Os donos de casas noturnas poderiam alegar, então, que homens dão efetivamente mais gastos aos seus estabelecimentos. E que assim, não se estaria desigualando os sexos por mera conveniência, mas por fundamentos razoáveis: quem dá mais gasto, deve pagar mais. Se tal argumento correspondesse à verdade dos fatos, não haveria por que censurar o desconto dado às mulheres: elas dão menos ônus ao estabelecimento e, por isso – e não por serem mulheres – fazem jus a um bônus. O problema é que o maior gasto dado pelos homens é presumido. O Código de Defesa do Consumidor diz que quem consome tem o direito de saber, concretamente, o que está comprando, de pagar apenas pelo que usa, proibindo-se vendas casadas e coisas do gênero. Mulheres pagam menos consumação porque, por exemplo, bebem menos. Isso pode geralmente ser assim, mas o homem abstêmio deve ser forçado a arcar com a conta da mulher alcoólatra? Pela presunção das casas noturna, sim.

De fato o grande mote dos descontos preferenciais a mulheres é que as casas noturnas as utilizam como chamarizes de clientes homens. Esse é o objetivo básico da desigualação feita nos preços cobrados de homens e mulheres. Tal objetivo é compatível com nossa ordem constitucional? Certamente que não. A pretexto de conceder gentilezas às mulheres, perpetua-se a idéia de que estas podem ser utilizadas como objetos promocionais, subsidiadas, via descontos e tratamentos preferenciais, para atraírem clientes homens. Ora, quando a Constituição admite certas distinções entre homens e mulheres é sempre no sentido de aumentar a cidadania subjugada que a condição feminina historicamente amarga, e nunca para conceder regalias simpáticas, mas de cunho perpetuador da objetificação feminina.

Se há, e muitas há, mulheres que ganham menos que homens, que se criem descontos por faixa de renda; se há, e como há, mulheres que bebem menos que homens, definam-se melhor os critérios de consumação. Agora dar descontos preferenciais às mulheres porque estas atraem homens para as casas noturnas é mais do que ferir a ordem constitucional posta, é atentar contra a dignidade feminina.

O Olodum objetivava simplesmente facilitar o acesso de negros à cultura, dando-lhes descontos preferenciais. Nossos pruridos constitucionais imediatamente se manifestaram. Parecia uma afronta clara, claríssima, à isonomia. Mas, a rigor, não era. Era uma questão constitucionalmente polêmica, já que a intenção (o telos) da desigualação operada era a promoção final de uma maior igualdade entre as raças. Já o tratamento desigualitário favorescente às mulheres dados pelas casas noturnas não pode, como vimos, apelar a nenhuma causa nobre de maior igualação final entre os sexos. Desiguala-se para auferir lucros e ponto. Desamparada por um objetivo constitucionalmente razoável, tal distinção deveria provocar em nós uma espécie de repulsa constitucional. Mas não provoca. E enquanto condenamos a excepcionalidade de medidas como a do Olodum, aceitamos, passivos, as desigualdades cotidianas.


Bibliografia

BASTOS, celso Ribeiro. Princípio da igualdade. In: BASTOS, Celso R. e MARTINS, Ives Granda. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1989.
CANOTILHO, José J. G. Direito Constitucional. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2004.
DWORKIN, Ronald. Los derechos em serio. Barcelona: Ariel Derecho, 1989.
MACIEL, Eliane C. B. de Almeida. A igualdade entre os sexos na Constituição de 1988. Disponível em http://www.senado.gov.br/conleg/artigos/especiais/AigualdadeEntreosSexos/ . Acesso em 21 de agosto de 2006.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: Malheiros, 1997.
SELL, Sandro César. Ação afirmativa e democracia racial: uma introdução ao debate no Brasil. Florianópolis: Funjab/UFSC, 1992.
SELL, Sandro César. Comportamento social e anti-social humano. Florianópolis: Ijuris, 2006.
SELL, Sandro César. Existem raças humanas? Disponível em http://sandrosell.blogspot.com/
SINGER, Peter. A Companion to ethics. Balckwell Companion to Philosophy. Oxford: Blackwell Publications, 1995.

Professor Sandro Sell

Um comentário:

Anônimo disse...

Concordo com o arguento em relação à inconstitucionalidade do "Ladies Free". Só penso que a motivação igualitária (a teleologia da desigualação) não é suficiente para satisfazer o princípio da igualdade. Entendo que a desigualação precisa ser capaz de produzir os efeitos concretos esperados. Do contrário, a medida é irracional, se ela não conduz na prática ao objetivo que pretende. A regra da proporcionalidade exigiria que a medida afirmativa passe pelo subprincípio da adequação (consistência do meio com o fim), além da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito. Se a regra da proporcionalidade se aplica ao caso da ação afirmativa, é necessário demonstrar que ela é efetivamente capaz de reverter a desigualdade, que ela é um meio necessário e o menos oneroso para isso, e que os seus inconvenientes políticos (aumento do racismo, etc.) são compensados pelo acréscimo de igualdade. Levando-se esses critérios em conta, será que a ação afirmativa poderá se tornar um meio usual de combater desigualdades? Ou deve se restringir a um instrumento excepcional, admissível apenas em situações bem claras e pouco controversas (estacionamento para deficientes físicos,p.ex.)?
Um abraço, Sandro! Parabéns pelo Blog!