Seria o brasileiro mais corrupto do que as pessoas de outras nações? Muitos juram que sim. Alguns acreditam mesmo que aqui a corrupção tornou-se caráter, virou nossa segunda natureza. No ranking dos países menos corruptos ocupamos a longínqua 70a posição. Nada bom... É muita sem-vergonhice para um povo só.
Mas, se isso tranqüiliza, não estamos sós. Muitos de nossos vizinhos também chafurdam na mesma lama. O escritor Mário Benedetti, por exemplo, no livro A Trégua, faz uma arguta observação sobre como o clima moral de seu país, o Uruguai, foi transformando cidadãos vigilantes em zumbis da corrupção. Diz o mestre:
“Porque, na verdade, a corrupção sempre existiu, o acordo também, as negociatas, idem. O que está pior, então? Depois de muito espremer o cérebro, cheguei à conclusão de que o que está pior é a resignação. Os rebeldes passaram a semi-rebeldes, os semi-rebeldes a resignados. Creio que, nesta luminosa Montevidéu, as duas agremiações que mais progrediram nestes últimos tempos foram os maricas e os resignados. `Não se pode fazer nada`, as pessoas dizem. Antes só quem queria conseguir algo ilícito é que subornava. Agora quem quer conseguir algo lícito também suborna. E isso significa relaxo total.
Mas a resignação não é toda a verdade. No princípio foi a resignação; depois, o abandono do escrúpulo; mais tarde a co-participação. Foi um ex-resignado quem pronunciou a famosa frase: `Se os de cima levam o deles, eu também levo o meu`. Naturalmente, o ex-resignado tem uma desculpa para sua desonestidade: é a única forma de os outros não tirarem vantagem dele. Ele diz que se viu obrigado a entrar no jogo, porque caso contrário seu dinheiro valeria cada vez menos e seriam cada vez mais numerosos os caminhos corretos que se fechariam para ele. Continua mantendo um ódio vingativo e latente contra aqueles pioneiros que o obrigaram a seguir esse caminho. Talvez seja, no final das contas, o mais hipócrita, já que não faz nada para se safar. Talvez seja também o mais ladrão, porque sabe perfeitamente que ninguém morre de honestidade...”
Mas a corrupção não é propriamente caráter e sim estrutura, isto é, não está nas pessoas, mas nas formas institucionais de controlar o ímpeto praticamente universal pelo dinheiro fácil, que quase sempre é sinônimo de dinheiro ilícito. Uma sociedade bem vigiada é uma sociedade com baixo grau de corrupção, porque esta só existe solta onde vale a pena, como onde a vigilância é frouxa ou meramente episódica, como no Brasil. Porque quando a fiscalização pode ou não ocorrer, conforme a vontade preguiçosa dos fiscais; quando a fiscalização jaz voltada preferencialmente para "laranjas" e pequenos corruptos – muitas vezes sob a direção e aplauso dos grandes; e quando o combate ao ilícito das altas classes é tão extraordinário que quando é feito, em geral, destina-se a atormentar políticos que negaram aumento de salário à classe fiscalizadora ou a mostrar à imprensa, mediante flagrantes cinematográficos, que há utilidade pública em manter certas prerrogativas institucionais da mesma classe, que algum grupo parlamentar ameaça rever. Combater a corrupção é, pois, sinônimo de revolta dos fiscais e não meio de vida habitual.
Igualmente quando as leis não são claras, quando se proíbem ou se liberam atividades sobre cuja ilicitude social ainda restam dúvida, como os bingos, abrem-se espaços à corrupção e ao descrédito na lei. Se alguns podem por que eu não posso? Que juizes estão concedendo liminares? Que estado permite o funcionamento? Como podemos fazer para que uma nova lei autorizadora seja posta em votação pelo Congresso? Na dúvida sobre se uma atividade é ou não ilícita abrem-se largos espaços para que atravessadores posicionem-se ao gosto do freguês. Em termos de lei, o Estado tem que ser assertivo: ou pode ou não pode. O "talvez" é uma mercadoria de primeira no mercado da roubalheira pública.
Também quando se proíbe, na lei, coisas que se vai tolerar, na prática, como casas de prostituição, jogos de bicho e venda de mercadorias piratas abre-se o leque da corrupção, na sua forma mais vil, que é a extorsão praticada pela autoridade pública. Como as atividades acima citadas são permitidas na prática social e proibidas na lei, é preciso ser “amigo” do fiscal para que este volte sua atenção para outras ilicitudes. Até o dia em que a propina não mais compense e a autoridade decida-se pelo flagrante, justificando-se que “apenas cumpre seu dever”. Poucas coisas são tão caras neste país quanto desviar o foco da atenção fiscalizatória. Ninguém vai atormentar a autoridade para agir nesses casos, portanto, agir ou não agir, pode ser uma decisão negociada.
É claro que a corrupção é também um fenômeno cultural, de comportamento coletivo. Nesse sentido, destaca-se nossa conformidade à prática de dependermos de relações pessoais para obtermos o que é público e de direito. É difícil não ouvir, em família ou entre amigos, frases como: “Chegou meu prazo de aposentadoria. Você conhece alguém no INSS?” “Meu IPTU veio errado, vou falar com meu amigo na prefeitura”. Não confiamos, nem gostamos de ser apenas um cidadão, igual a muitos outros, que vai requerer um direito igual ao de todo mundo; gostamos, isto sim, de tratamento personalizado, mesmo quando estamos lidando com o Estado que, em tese, deveria tratar a todos da mesma forma, sem privilégio, sem discriminação.
Mas então de que adianta ter amigos? Numa sociedade republicana ter amigos pode ter muitas funções privadas – conforto recíproco, camaradagem, mútua ajuda – mas jamais facilidades públicas. E isso é difícil para os amigos brasileiros compreenderem, tanto aquele que é agente público quanto seu amigo privado, acham que "amigo é também para essas coisas". Quando esperamos um tempão para sermos atendidos pelo nosso amigo na repartição, esperamos que certas “impertinências da lei” sejam desconsideradas, ou que nosso prazo seja mais benéfico do que os da fila comum, que sejamos, em suma, prioridade. Se nada disso acontece, nosso amigo é um desprestigiado ou não merece nossa amizade. "Se fosse para ser atendido igual a qualquer um, tinha pego uma senha e esperado na fila!"
“Mas”, dirão muitos de meus amigos, “o Estado age como um canalha quando vamos requerer direitos! Foge de suas responsabilidades, humilha o cidadão, marca prazos intoleráveis.” Tudo isso é verdade. E é por isso que os que podem fogem do Estado impessoal, através dos amigos. E os que não podem, os mal relacionados, sofrem uma humilhação ainda maior, sem disporem da solidariedade dos cidadão com mais poder de voz, estudo e acesso à mídia, para brigarem por serviços mais dignos. Em rigor, só os pobres recorrem ao Estado enquanto cidadãos – contando apenas com sua identidade "de comum" - os mais abonados a ele recorrem como especialmente recomendados “pelo tio do fulano”, “pelo pai de beltrano”, pelo “ex não sei o que de não sei onde”. E quando o pobre, vendo que ser cidadão apenas é muito pouco, e dói demais, apela para o cabo eleitoral, que supre a falta de amigos poderosos, a elite critica sua falta de senso cívico. A mesma elite que jamais pegará uma fila, não porque repudie os trabalhos do cabo eleitoral, mas porque conhece o patrão dele.
Mas, se isso tranqüiliza, não estamos sós. Muitos de nossos vizinhos também chafurdam na mesma lama. O escritor Mário Benedetti, por exemplo, no livro A Trégua, faz uma arguta observação sobre como o clima moral de seu país, o Uruguai, foi transformando cidadãos vigilantes em zumbis da corrupção. Diz o mestre:
“Porque, na verdade, a corrupção sempre existiu, o acordo também, as negociatas, idem. O que está pior, então? Depois de muito espremer o cérebro, cheguei à conclusão de que o que está pior é a resignação. Os rebeldes passaram a semi-rebeldes, os semi-rebeldes a resignados. Creio que, nesta luminosa Montevidéu, as duas agremiações que mais progrediram nestes últimos tempos foram os maricas e os resignados. `Não se pode fazer nada`, as pessoas dizem. Antes só quem queria conseguir algo ilícito é que subornava. Agora quem quer conseguir algo lícito também suborna. E isso significa relaxo total.
Mas a resignação não é toda a verdade. No princípio foi a resignação; depois, o abandono do escrúpulo; mais tarde a co-participação. Foi um ex-resignado quem pronunciou a famosa frase: `Se os de cima levam o deles, eu também levo o meu`. Naturalmente, o ex-resignado tem uma desculpa para sua desonestidade: é a única forma de os outros não tirarem vantagem dele. Ele diz que se viu obrigado a entrar no jogo, porque caso contrário seu dinheiro valeria cada vez menos e seriam cada vez mais numerosos os caminhos corretos que se fechariam para ele. Continua mantendo um ódio vingativo e latente contra aqueles pioneiros que o obrigaram a seguir esse caminho. Talvez seja, no final das contas, o mais hipócrita, já que não faz nada para se safar. Talvez seja também o mais ladrão, porque sabe perfeitamente que ninguém morre de honestidade...”
Mas a corrupção não é propriamente caráter e sim estrutura, isto é, não está nas pessoas, mas nas formas institucionais de controlar o ímpeto praticamente universal pelo dinheiro fácil, que quase sempre é sinônimo de dinheiro ilícito. Uma sociedade bem vigiada é uma sociedade com baixo grau de corrupção, porque esta só existe solta onde vale a pena, como onde a vigilância é frouxa ou meramente episódica, como no Brasil. Porque quando a fiscalização pode ou não ocorrer, conforme a vontade preguiçosa dos fiscais; quando a fiscalização jaz voltada preferencialmente para "laranjas" e pequenos corruptos – muitas vezes sob a direção e aplauso dos grandes; e quando o combate ao ilícito das altas classes é tão extraordinário que quando é feito, em geral, destina-se a atormentar políticos que negaram aumento de salário à classe fiscalizadora ou a mostrar à imprensa, mediante flagrantes cinematográficos, que há utilidade pública em manter certas prerrogativas institucionais da mesma classe, que algum grupo parlamentar ameaça rever. Combater a corrupção é, pois, sinônimo de revolta dos fiscais e não meio de vida habitual.
Igualmente quando as leis não são claras, quando se proíbem ou se liberam atividades sobre cuja ilicitude social ainda restam dúvida, como os bingos, abrem-se espaços à corrupção e ao descrédito na lei. Se alguns podem por que eu não posso? Que juizes estão concedendo liminares? Que estado permite o funcionamento? Como podemos fazer para que uma nova lei autorizadora seja posta em votação pelo Congresso? Na dúvida sobre se uma atividade é ou não ilícita abrem-se largos espaços para que atravessadores posicionem-se ao gosto do freguês. Em termos de lei, o Estado tem que ser assertivo: ou pode ou não pode. O "talvez" é uma mercadoria de primeira no mercado da roubalheira pública.
Também quando se proíbe, na lei, coisas que se vai tolerar, na prática, como casas de prostituição, jogos de bicho e venda de mercadorias piratas abre-se o leque da corrupção, na sua forma mais vil, que é a extorsão praticada pela autoridade pública. Como as atividades acima citadas são permitidas na prática social e proibidas na lei, é preciso ser “amigo” do fiscal para que este volte sua atenção para outras ilicitudes. Até o dia em que a propina não mais compense e a autoridade decida-se pelo flagrante, justificando-se que “apenas cumpre seu dever”. Poucas coisas são tão caras neste país quanto desviar o foco da atenção fiscalizatória. Ninguém vai atormentar a autoridade para agir nesses casos, portanto, agir ou não agir, pode ser uma decisão negociada.
É claro que a corrupção é também um fenômeno cultural, de comportamento coletivo. Nesse sentido, destaca-se nossa conformidade à prática de dependermos de relações pessoais para obtermos o que é público e de direito. É difícil não ouvir, em família ou entre amigos, frases como: “Chegou meu prazo de aposentadoria. Você conhece alguém no INSS?” “Meu IPTU veio errado, vou falar com meu amigo na prefeitura”. Não confiamos, nem gostamos de ser apenas um cidadão, igual a muitos outros, que vai requerer um direito igual ao de todo mundo; gostamos, isto sim, de tratamento personalizado, mesmo quando estamos lidando com o Estado que, em tese, deveria tratar a todos da mesma forma, sem privilégio, sem discriminação.
Mas então de que adianta ter amigos? Numa sociedade republicana ter amigos pode ter muitas funções privadas – conforto recíproco, camaradagem, mútua ajuda – mas jamais facilidades públicas. E isso é difícil para os amigos brasileiros compreenderem, tanto aquele que é agente público quanto seu amigo privado, acham que "amigo é também para essas coisas". Quando esperamos um tempão para sermos atendidos pelo nosso amigo na repartição, esperamos que certas “impertinências da lei” sejam desconsideradas, ou que nosso prazo seja mais benéfico do que os da fila comum, que sejamos, em suma, prioridade. Se nada disso acontece, nosso amigo é um desprestigiado ou não merece nossa amizade. "Se fosse para ser atendido igual a qualquer um, tinha pego uma senha e esperado na fila!"
“Mas”, dirão muitos de meus amigos, “o Estado age como um canalha quando vamos requerer direitos! Foge de suas responsabilidades, humilha o cidadão, marca prazos intoleráveis.” Tudo isso é verdade. E é por isso que os que podem fogem do Estado impessoal, através dos amigos. E os que não podem, os mal relacionados, sofrem uma humilhação ainda maior, sem disporem da solidariedade dos cidadão com mais poder de voz, estudo e acesso à mídia, para brigarem por serviços mais dignos. Em rigor, só os pobres recorrem ao Estado enquanto cidadãos – contando apenas com sua identidade "de comum" - os mais abonados a ele recorrem como especialmente recomendados “pelo tio do fulano”, “pelo pai de beltrano”, pelo “ex não sei o que de não sei onde”. E quando o pobre, vendo que ser cidadão apenas é muito pouco, e dói demais, apela para o cabo eleitoral, que supre a falta de amigos poderosos, a elite critica sua falta de senso cívico. A mesma elite que jamais pegará uma fila, não porque repudie os trabalhos do cabo eleitoral, mas porque conhece o patrão dele.
3 comentários:
Excelente!
Como sempre, Sandro, vc foi direto ao ponto!
abçs
Caro Sandro,
a tua reflexão sobre O Amigo nas relações políticas vem bem a calhar para este fim-de-semana de festa de São João.
O condomínio onde moro tem como um dos seus vizinhos o clube corinthians (não é nenhuma filial do clube paulistano). Ontem, nas suas dependências, a comunidade do Pantanal comemorou sua festa junina. Para meu infortúnio acompanhei todas as músicas das 9h às 23h, pois a Lei de Poluição Sonora não foi respeitada e os ruídos puderam ser ouvidos dentro do meu apartamento, com as janelas devidamente fechadas, a uma distância duns 250m. Naturalmente não tocaram meus estilos preferidos, mas vá lá, é São João e não um festival de jazz ou rock.
O que me chamou a atenção e provocou este comentário foi o momento dos discursos. Nunca ouvi tanto a palavra amigo. "O nosso amigo fulano-de-tal que está movimentando o nosso bairro". "O amigo sicrano que ajudou com isso". "O grande amigo beltrano".
A sessão de elogios durou uma meia hora e foi suficiente para deixar claro à comunidade quais são os seus amigos.
Não me surpreenderá em nada a cadidatura de um desses amigos a vereador, sustentada por uma boa rede de cabos eleitorais formada pelos outros amigos presentes na festa.
Desta vez foi o circo, na próxima será o pão.
Veremos repetida, portanto, a fábrica brasileira da representação política que existe há séculos.
A corrupção sempre foi algo aceito naturalmente, pois os cargos públicos (antes ofícios) eram extensões da vida privada de seus ocupantes. Que podiam cobrar propinas pelos seus serviços, sem que houvesse nenhuma irregularidade nisso.
O desafio, a meu ver, é republicano e democrático.
A concentração de riquezas é uma das grandes conseqüências da corrupção.
Ou seria possível explicar o Brasil onde apenas 5% da população tem renda superior a R$ 800,00 mensais conviverem lado-a-lado com ferraris em congestionamento no balneário da Habitasul?
abçs
Sem dúvida, quem é cercado de amigos poderosos não precisa de cidadania e república. Isso é para quem tem que preencher ficha pra ser atendido! Como existem monarquistas entre nós, querendo não a observação de seus direitos mas a concessão de mercês do El-Rei!
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