28.7.07

A morte a jato

Biologicamente falando, morte é morte em qualquer canto. Socialmente, entretanto, existe morte merecida, morte desejada, morte sem-sentido, morte heróica e, ultimamente, com muita ênfase, temos a morte trágica. Morte trágica seria toda aquela que nos pega de supetão, que possui uma dimensão suplementar de absurdo, do tipo que não se pode simplesmente suspirar resignadamente diante do morto e balbuciar: “Descansou!”. Mortes trágicas geram sentimentos de revolta, de indignação, de vontade de pôr a culpa em alguém, pois um eventual culpado serve ao menos de recipiente para depositar a raiva que nos consome diante do que ocorreu sem precisar ter ocorrido. A descoberta de um culpado mantém a discussão na dimensão humana, e nos poupa de questões metafísicas, sobre por que todos têm que morrer um dia, por que não somos eternos, por que Deus permite que “pessoas tão boas” partam tão cedo...

É uma lástima.


Nesse sentido é possível compreender o desespero dos parentes das vítimas do acidente da Tam. Ao seu grito de dor só se pode responder com solidariedade e empatia. Mesmo o miserável que jamais viajou de avião – e jamais vai fazê-lo – é capaz de chorar junto, pois em termos de avaliar os possíveis impactos da morte, cada ser humano é um especialista na mesma medida em que é um sinistro expectador do seu próprio encontro com sua finitude. Faz parte do ônus de ser humano ter consciência, como dizia W. James, da caveira que sempre espreita nossos banquetes.

Somos iguais em destino.

Mas o que dizer do comportamento da imprensa e dos políticos sobre o trágico acidente? Muito estranho, desproporcional, necrófago, embora sociologicamente compreensível.

O caos aéreo

Quantos por cento da população estão diretamente afetados pelo “apagão aéreo”? Menos de 3% da população. Mas, ao ligarmos a televisão, a qualquer hora, parece que todos os brasileiros estão com as vidas desgraçadas porque os menos de 5% estão com dificuldade de embarcar nas aeronaves. O quadro filmado oscila entre o prosaico e o ridículo. Mostram-se crianças bem nutridas dormindo no chão dos aeroportos, turistas em desespero, executivos estressados porque, apesar de viverem planejando as empresas alheias, foram incapazes de contarem com atrasos que todos já sabiam que ia ocorrer. Alguns chegam ao “cúmulo”, relata a mídia, de irem do Rio a São Paulo de carro, meu Deus! que alternativa humilhante!

Não me entendam mal. Afinal não escrevo a partir de um barraco na favela. Eu também gosto de viajar de avião. Preferia que não houvesse atraso. Preferia que os aeroportos funcionassem como um relógio (algum dia funcionaram?). Mas tenho vergonha na cara o suficiente para, se é que vou me sensibilizar com algum apagão, prefiro entristecer-me pelas crianças deitadas nas emergências dos hospitais, sem leito, sem médico, sem nada. Sua frustração não é o atraso na chegada à Disney, mas o diabo da dor que não lhes abandona. Por que a imprensa não faz pressão diária para que não existam mais crianças – pelo menos elas – deitadas como cachorros em bancos de madeira aguardando que a reza funcione porque o doutor não veio, ou se veio não tem meios para cessar-lhe a dor?

E o caos das estradas? Comparem o número de mortos! E o caos na educação! Será que para a imprensa só existe o Pam e a Tam? Se o Brasil estiver ganhando medalhas e voando tranquilamente o resto, os debaixo, que tenham paciência? Morrer numa emergência de hospital por falta de médicos pode não ser tão elegante quanto morrer de desastre aéreo, mas para 5/6 dos brasileiros aquela morte é muito mais provável que esta. O buraco é mais embaixo.


O valor da vida

Há muito ensinou o filósofo I. Kant que a vida não possui valor – valor é um adereço de troca – mas sim dignidade, característica do que não se negocia, não se compara, se respeita em si e por si. Isso significa que uma vida vale tanto quanto qualquer outra. A vida dos passageiros da Tam vale muito, tanto quanto a dos milhares de romeiros que morrem nas lotações que perdem o freio, que não conseguem desviar da cratera na rodovia, que não puderam guiar-se por uma sinalização de trânsito inexistente... Onde está o jornalismo investigativo aqui para apurar as possíveis causas dos acidentes, pedir a cabeça do ministro dos transportes, protestar, nos informar quem era cada um daqueles romeiros, quais seus sonhos interrompidos, quem são as pessoas que deixaram? Onde está a presteza dos IMLs da vida? Onde estão os transportes gentilmente cedidos pelo poder público? Onde está o avião da FAB que tem prontidão para levar o corpo de ACM para onde a família desejar? Ora, romeiros!, quem é pobre em vida lá merece esses confortos na morte?

Com as vítimas de crime não é diferente. Mate-se 20 favelados, em condições suspeitas e fica por isso mesmo. “Deviam ser traficantes!” Se não eram, fazer o quê? Acontece. Estavam na rota das balas, foram estúpidos e a morte foi seu merecido castigo. Agora se morre alguém com conta bancária relevante, as autoridades – polícia civil, federal, ministério público e imprensa – concorrem afoitamente para dar uma solução ao caso, “que não pode passar impune” (Isso significa que os outros podem?).

Escárnio!

Na lógica da imprensa e do Estado, o valor da morte de cada qual é proporcional ao valor – em ouro – que possuíam em vida.

Reforço: nada contra o tratamento dado às vítimas da Tam, mas tudo contra o não-tratamento dado aos “comuns”.


Investigação

Não se sabe ainda o que causou exatamente o acidente da Tam. Mas se sabe que, por trás do choro solidário com as vítimas está o jogo político. O governo quer que seja o avião ou o piloto o responsável; a imprensa e a oposição rezam para que seja a pista. Num cenário como esse, em total desrespeito às vítimas, espera-se que o acidente se converta em instrumento de palanque eleitoral, deixando de lado a análise imparcial das causas que permitiriam evitar repetições trágicas no futuro.


Não precisaria ser assim.

O fato de o avião da Tam ter eventualmente se acidentado por defeito na aeronave ou por falha dos pilotos não impede o debate sobre a melhora no sistema aéreo nacional, ou sobre a inércia do governo; e o fato de ter sido a pista a causa principal não autoriza, de per si, a colocação da culpa no governo, pelo menos não isoladamente. Afinal, são as próprias companhias aéreas que pressionam pela liberação das pistas; são os próprios passageiros que, impacientes, querem embarcar sob qualquer condição, xingando a moça da companhia pelo teto baixo, pela aeronave que atrasou, ou pela pista lotada. “Isso não é problema meu. Eu tenho um compromisso e vou embarcar!”.


Parar e repensar

Primeiro: por que é o governo – toda a população - quem tem que botar dinheiro nos aeroportos e não quem lucra com eles? Os 95% da população que não pisam em aeroportos devem pagar o conforto dos outros 5%? Tenho dúvidas. Segundo, por que não fazer uma lista dos “apagões” mais importantes em termos do número de sofredores e da urgência de providências, para concentramos o debate nacional? Por que não começar pela citada saúde? Porque no atendimento de saúde só quem sofre é o pobre, os outros se guardam em planos privados e atendimentos preferenciais. Essa é a razão porque não há apagãos na saúde, só no ar. E enquanto alguns passam a temer a morte que vem do céu, milhares continuam no inferno das salas de espera, onde ministros não fazem conexão e a imprensa não costuma aterrissar.

Um comentário:

Anônimo disse...

Querido companheiro,

Concordo com você em número, gênero e grau! Educação já! Saúde AGORA! Segurança IMEDIATAMENTE!

Porém, seu discurso de sociólogo IGNORA que "dependemos" num certo nível da malha aérea, pois esse 5% fazem dinheiro... muita grana está deixando de circular... se com o atual crecimento econômico a verba já não chega na saúde, educação... imagina limitando tal crescimento...

Só para lembrar a EMBRAER é a terceira fabricante do mundo, atrás da Boeing (norte-americana)e Airbus (européia)!

E reveja sua porcentagem dos utilizam o serviço aéreo.. pois aumentou significamente o número de pessoas que optam pelo serviço aéreo, afinal, esse foi o marketing da Gol, preços mais baixos (low-cost / low-fair), - principalmente enquanto a empresa não estava pagando o leasing dos aviões - e barras de cereias como serviço de bordo (lembra da propaganda em que um passarinho ia num ônibus?). Além, da possibilidade da classe média chegar a Europa com tarifas mais em conta nessas empresas...

De qualquer forma, o caos aéreo revela a maneira como nossos gestores administram publicamente os orgãos responsáveis pela aviação no país, pessoas desqualificadas para a função que não podem ser demitidas, inércia, um presidente que recomenda confiar em Deus quando se fizer um vôo, salários bem aquém dos controladores que não podem ser melhor remunerados, pois há tal hierarquia, embora seja alto o nível de estresse desta ocupação... software atualizados? enfim, os vários fatores que escancaram nossa crise. É assim que nossos representantes gerenciam crises?

Ana Beatriz Rocha Lima