Há muito se vem debatendo qual é, afinal, o fundamento das punições estatais, sobretudo do encarceramento. Para uma primeira abordagem, esse fundamento residiria na retribuição ao mal causado pelo criminoso. Com a punição, o Estado estaria se vingando daquele que ousou desobedecer as suas ordens. Nesse sentido, não interessa se a pena é eficaz para ressocializar o preso, o que interessa é que ele pague o que deve à sociedade. Nessa lógica, quanto menos conforto houver nas prisões, maior será o peso vingativo do Estado. A pergunta-chave para equacionar o estilo e a duração da pena para a abordagem retributivista é a seguinte: diante do mal causado pelo transgressor, quanto de sofrimento o Estado está legitimado a infligir-lhe? As respostas têm ido da simples advertência verbal à pena de morte.
Uma segunda abordagem é a utilitarista. Baseia-se na idéia de que a pena aplicada deve ser útil à sociedade, sobretudo pelo seu potencial de dissuasão de condutas criminosas futuras. O objetivo principal não é fazer sofrer o condenado, mas, a partir de seu sofrimento, mostrar às demais pessoas em sociedade a forma como o Estado reage diante daqueles que o desobedecem. Há muitas críticas a essa visão. A primeira delas é de que o Estado não tem o direito de utilizar um ser humano concreto, ainda que condenado, como mero instrumento de exemplificação social. Isso contraria as noções de dignidade e justiça. De fato, suponhamos que numa determinada cidade esteja se tornando cada vez mais comum a prática de pequenos furtos. O juiz da cidade, que até o dia anterior costumava aplicar penas leves a esses delinqüentes, resolveu, a título de exemplo, sentenciar pesadamente os acusados que hoje lhe forem apresentados. Isso faria com que os que praticaram o mesmo delito ontem e hoje recebam penas muito diferentes. Seria isso justo?
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Ademais, é voz corrente nos meios jurídicos ser preferível absolver dez culpados a condenar um inocente. Pois condenações indevidas são o sumo suplício do injustiçado e o sumo erro do Estado. Mas para o utilitarismo, que se importa menos com o condenado e mais com os efeitos sociais da condenação, é preferível condenar um suspeito a deixá-lo vagar livre por aí, já que isso daria a impressão social de que é possível cometer crimes sem ter aborrecimentos. Condenações indevidas devem ser indenizadas, mas, ainda assim, seriam preferíveis ao risco de que se proliferasse a idéia de que o crime, por ficar freqüentemente impune, compensa.
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Uma terceira corrente é a ressocializadora. Seu fundamento é o de que a pena deve permitir que o agressor se corrija e volte à sociedade como um bom cidadão. Num sistema como o brasileiro, que limita a pena de prisão a trinta anos e não autoriza a pena capital, esse seria o modelo mais coerente. Afinal, se o condenado um dia há de voltar à vida em sociedade, se faz mister que se ressocialize. No entanto, vários problemas interferem nesse desiderato. As condições desumanas de nossos presídios, a pressão popular para que os presos não tenham qualquer conforto (a população, em geral, é adepta do retributivismo) e a falta, máxima no Brasil, de elites morais que sirvam de espelho de bons comportamentos para os egressos de nossas prisões, dificultam sua conversão a modelos pacíficos de convivência.
Muitos salientam que a falta de oportunidades que a sociedade concede aos egressos das prisões é um dos motivos do fracasso do sistema ressocializador. Isso ocorre, não há dúvida. Mas poderia não ocorrer? O síndico que contrata para zelador de seu prédio um ex-apenado corre um grave risco social. Se por acaso o egresso da prisão voltar a delinqüir e molestar alguém da vizinhança, acusar-se-á esse síndico de ter sido imprudente, e se o responsabilizará moralmente pela infeliz escolha (até ontem, uma escolha solidária). Nem mesmo o Estado contrata, para a maioria de seus cargos, pessoas que já foram condenadas. Quando alguém já delinqüiu seriamente, carrega consigo o pesado ônus de uma identidade desacreditada. Esse ônus que recai como um peso sobre o ex-delinqüente é o reflexo de uma cautela social. A sociedade é credor melindroso, uma vez tendo sido vítima de velhacaria, nega-se a novos empréstimos de confiança.
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Um outro problema, trazido pela teoria ressocializadora: se a função da pena seria recuperar, como fundamentar a prisão de sujeitos que se mostram arrependidos e cujo histórico e excepcionalidade de seu delito leva a crer que não voltarão a delinqüir? Há muito, criminologistas vêm levantando o problema representado pelo passional puro: aquele indivíduo que, movido por episódica paixão, comete um crime isolado, incompatível com sua biografia. A punição de certos assassinos passionais de esposas adúlteras exemplifica o problema. Suponhamos o caso de um bom cidadão, caridoso, sem nenhuma história de crime, mas que, em momento de grande decepção e raiva, matou a esposa, cuja infidelidade acabara de descobrir. Ele se entrega à polícia, chora, mostra-se arrependido. Psiquiatras subscrevem laudos de que ele não representa perigo à sociedade etc. Por que o colocar na cadeia? Certamente não para ressocializá-lo. Ele não precisa disso. Só restaria para tal intento a aplicação das outras teorias. Para os retributivistas, pois, dever-se-ia encarcerá-lo como um castigo; para os utilitaristas, para que sirva de exemplo.
Um óbice ainda maior à abordagem ressocializadora é que ela subscreve, sem provar, uma noção positiva de natureza humana, sempre recuperável para o bem. Da filosofia platônica, passando pelo cristianismo, vindo até as concepções penais contemporâneas, acredita-se que o mal é um equívoco, que ele nada mais é do que a ausência do bem. Bem para o qual todos tendem, basta que se lhes desperte as virtudes latentes. Essa não é uma tese cientificamente demonstrável, é um axioma da antropologia ocidental. Os exemplos de pessoas que, a despeito do afeto e oportunidades que lhes foram dados, jamais saíram das sendas do crime apenas se avolumam. A tese parece mesmo estar errada, dada a freqüência estatística da reincidência prisional ao longo do mundo. Além disso, alguns estudos em psiquiatria forense vêm apontando para a irrecuperabilidade de certas patologias anti-sociais.
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Mas é humanamente compreensível, e até louvável, que a tese da sempre possível recuperação humana saia ilesa dessas contrariedades. Se não sabemos se uma dada tese sobre o ser humano é ou não verdadeira, mais prudente é escolher a versão que lhe aumenta as oportunidades. Fazemos isso com o princípio do na dúvida, a favor do réu, sendo compreensível que o façamos também diante da dúvida acerca da recuperabilidade, ou não, de um ser humano.
Abaixo, de forma esquemática, são apresentadas essas e outras razões utilizadas para fundamentar a pena de prisão.
Visão esquemática dos objetivos declarados da pena de prisão
Objetivo I:
Vingança pública (= Fazer sofrer o criminoso)
Direcionada:
Ao criminoso, e, indiretamente, às suas vítimas.
Razões alegadas:
- O criminoso deve sofrer, proporcionalmente, o mal que causou às suas vítimas.
- O sofrimento do criminoso é um direito das vítimas e as ajuda a superar a dor do ultraje sofrido.
- Tradução popular: “Nós queremos que o criminoso pague pelo que fez.”
Críticas:
- O Estado não pode se igualar ao criminoso, agindo contra ele de forma semelhante a que ele agiu contra suas vítimas.
- Medir a pena pelo sofrimento em espécie causado à vítima é ilusório e injusto. Ilusório porque o sofrimento da vítima – ou de seus familiares – é subjetivo, único e não neutralizável pela dor imposta ao culpado. Injusto porque, medida pelo sofrimento da vítima, um homicídio culposo (não intencional) mereceria a mesma pena que um homicídio doloso (feito com clara intenção matar) já que, por exemplo, a dor da mãe enlutada não costuma ser sensível às nuanças de intenção do autor do delito. Intenções que são justamente a base de nosso sistema de responsabilização penal.
- No caso de crimes sem vítimas concretas (como porte ilegal de armas ou de drogas), ou de difícil especificação das vitimas (tráfico de drogas, corrupção etc.) fixar a pena com base no sofrimento causado torna-se um procedimento aleatório, nebuloso e, por isso mesmo, arbitrário, contrariando as mais elementares noções de segurança jurídico-penal.
- Em casos de crimes patrimoniais puros, a dor (que é um dano monetário objetivo) seria mais eficientemente neutralizada por indenizações pecuniárias às vítimas (pagas pelo condenado ou, caso ele não possa fazê-lo, pelo Estado, como decorrência de sua falha em garantir a segurança dos cidadãos).
- Além disso, alguns estudos sugerem que as vítimas sentem-se melhor quando conseguem perdoar seus ofensores do que quando têm a oportunidade de vingarem-se deles.
Objetivo II
Prevenção especial negativa (= Tirar o criminoso de circulação)
Direcionada:
Ao criminoso
Razões alegadas:
- A pena serve para neutralizar o criminoso, mantê-lo à distância de novas vítimas.
- Tradução popular: “Preso, ele não incomoda mais!”
Críticas:
- Enjaular o criminoso, simplesmente, é uma medida paliativa quanto à segurança da sociedade. Quando seu tempo de pena expirar, a tendência do condenado – pelos efeitos deletérios do cárcere – é voltar mais propenso ao delito.
- Ademais revela uma visão negativa do ser humano, aproximando-o de feras que não podendo ser “domesticadas” devem permanecer trancafiadas pelo máximo tempo possível.
- O tempo de pena do sujeito tem que ser regulado pelo crime que ele cometeu e não pelo mal que a sociedade acredita que ele possa vir a fazer. Em outras palavras, não se podem aplicar penas presentes justificando-as por eventuais crimes futuros. O crime é o pressuposto lógico-jurídico da pena e não o contrário.
- Somente penas como a de morte ou a perpétua (vedadas pela Constituição Brasileira) seriam coerentes com a proposta neutralizadora.
- Some-se a isso que, para neutralizar o condenado, o sistema prisional deveria ser não apenas à prova de fugas, quanto capaz de evitar que de dentro de suas grades o crime fosse despachado para a sociedade (como é sabido, o chamado crime organizado brasileiro formou-se nas prisões e delas são comandados).
Objetivo III
Prevenção especial positiva (= Humanizar o criminoso)
Direcionada:
Ao criminoso.
Razões alegadas:
- O criminoso é um ser com deficiências em seu desenvolvimento pessoal-social. Seja ao nível cognitivo, moral ou social ele precisa de ajuda para transformar-se em uma pessoa normal.
- A pena deve ser ressocializadora, educativa, re-adaptante.
- Tradução popular: “O preso precisa ser recuperado para a vida em sociedade.”
Críticas:
- O criminoso não é necessariamente alguém mal-adaptado ou incapaz.
- Mesmo que fosse um ser socializado de forma nociva à sociedade, o Estado não pode forçar uma pessoa a se transformar moralmente, isto seria uma forma de violação da liberdade de crença, inerente ao ser humano. O Estado pode exigir a abstenção da prática de crimes, mas jamais pode exigir pureza de pensamentos.
- Se os criminosos nos parecem sempre carentes de educação, de família modelar, ou mesmo, de boa aparência, é porque somos levados a confundir criminoso (um conceito legal aplicável do ladrãozinho, passando pelo assassino, ao sonegador de impostos e ao político corrupto) com os criminalizados (estereótipo que só vai do ladrãozinho ao assassino pobres).
Saliente-se:
- O crime, como seria de se esperar, é cometido por pessoas dos mais variados níveis de educação e renda, portanto, criminosos há de todos os tipos sociais. Mas para ser encarcerado é preciso ser mais do que um mero praticante de ilícitos penais: é preciso ser desqualificado o bastante para ser selecionado pelas agências de persecução e condenação penal (polícias e sistema de justiça). Essa é a razão porque confundimos encarcerados - que são invariavelmente pobres - com criminosos e, assim, não é difícil generalizar que sendo os presos pobres e incultos - e sendo os presos nosso modelo mental de criminosos - lhes falta educação, integração e ressocialização.
- Para ressocializar o condenado, o encarceramento haveria de reforçar o lado humano da sua identidade. Em nosso sistema, no entanto, o que é reforçado é seu lado criminoso: o sujeito é resumido ao seu crime. Um indivíduo que com 30 anos de vida cometeu um único crime, numa única tarde, pode ter feito algo realmente monstruoso, mas restam 99,9% de seu tempo vivido para atestar que ele é mais do que o “monstro” daquela tarde. Mas confundido com o seu crime, que passa a ser ele próprio, o indivíduo sente que nada mais tem a perder e acaba por aceitar a identidade desacreditada que lhe foi atribuída, com seu conseqüente desvio para a criminalidade tornada, então, modo de vida.
- Por fim, para “melhorar” alguém o ambiente carcerário haveria de ser moralmente superior ao ambiente de origem do condenado, o que não condiz com a realidade.
Objetivo IV
Prevenção geral negativa (= Amedrontar futuros candidatos aos crime)
Direcionada:
À sociedade
Razões alegadas:
- A condenação do criminoso serve para intimidar a sociedade, mostrando o que acontece aqueles que delinqüem.
- Tradução popular: “A punição deve ser exemplar, para que os que estão pensando em cometer delitos semelhantes sintam o terrível peso da lei.”
Críticas:
- Um Estado que precisa impor suas leis unicamente pelo terror revela que vive em confronto com sua própria sociedade.
- O preso é tratado como instrumento de suplício, a fim de infundir medo à sociedade, negando sua condição de pessoa.
- As penas terão que ser extremamente duras e certeiras para causar o pavor nos demais.
- O preso tem o direito de não servir de contra-exemplo à sociedade, pois a pena dever ser medida pela culpabilidade do agente e não por seu efeito intimidatório sobre a coletividade.
Objetivo V
Prevenção geral positiva (= Convencer a sociedade que vale a pena obedecer as leis)
Direcionada:
À sociedade
Razões alegadas:
- Ao delinqüir o sujeito se torna útil à sociedade na exata medida em que o impacto público de seu crime leva os demais a reforçarem seus votos de repugnância a tal conduta, fortalecendo o consenso de que o crime é errado.
- A condenação do criminoso serve, então, para reforçar os laços sociais, explicitar o que é crime, aumentar a crença na justiça e a idéia de que vale a pena ser honesto.
- Tradução popular: “Se não acontecer nada com esses criminosos, eu também vou entrar para o mundo do crime!”
Críticas
- O preso é utilizado como instrumento educativo para a sociedade.
- O preso tem direito de não servir de contra-exemplo aos demais.
- Crimes que não ocasionem repulsa pública (que não sejam transgressões sociais) deveriam permanecer impunes porque utilizam a justiça sem reforçar a idéia de que o crime não deve ser cometido. Assim, ao punir o contrabando, a pirataria, a sonegação fiscal das empresas (tidos popularmente como formas de defesa contra as injustiças da economia ou do governo), o sentimento gerado na população é o de que as autoridades estão perseguindo questões irrisórias, ao invés de "subirem os morros", onde estariam os verdadeiros criminosos.
Bibliografia:
SELL, S. C. Comportamento social e anti-social humano. Florianópolis: Ijuris, 2006.
ZAFFARONI, E. R. & outros. Direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan: 2006.
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