Romances policiais comumente trocam o verossímil pelo espetacular, deliciando o leitor, mas o afastando do que costuma ocorrer na realidade. E processos criminais costumam ser tão centrados em fatos ordinários, corriqueiros, embora camuflados sob linguagem técnica, que só por dever profissional se costuma folheá-los. Mas, vez por outra, aparece um processo criminal de fato ocorrido que, enredado como um intrigante romance, permite ao leitor um encontro misterioso com a mais pura realidade dos comportamentos anti-sociais humanos. Esse é o caso do livro de João Carlos Mosimann, Tragédia e mistério na Villa Renaux, finalmente reimpresso em 2006, permitindo que o leitor em geral tivesse acesso a esse verdadeiro clássico da formação dos estudantes de direito penal catarinenses.
O livro é uma descrição minuciosa do chamado Caso Renaux, centrado na morte do industrial Ivo Renaux, ocorrida em 1949, a qual foi atribuída ora a um suicídio inesperado, ora a um ato covarde de sua própria esposa, Dagmar.
Como foi o caso Renaux
Em 30 de julho de 1949, em Brusque, Santa Catarina, se produzia um evento digno dos melhores romances policiais. O jovem industrial Ivo Renaux é encontrado morto em sua cama na mansão da família. Na noite anterior, durante a comemoração de seu aniversário, Ivo havia discutido com sua esposa, a bela paranaense Dagmar Renaux. Beleza, dinheiro, morte e mistério envolviam a interrogação que se abateu sobre a região brusquense:
Ivo Renaux havia se suicidado ou teria sua esposa o assassinado?
Suicídio ou homicídio?
Na noite anterior ao crime, a esposa, Dagmar, preocupada com a ausência do marido em casa, sai à sua procura, acompanhada da sogra, vindo a encontrá-lo num bar a beber com amigos. Chamado ao lar pela esposa, Ivo Renaux não só se nega a acompanhá-la, como, horas depois, segue de Brusque para Itajaí, a fim de esticar sua comemoração natalícia, na companhia de amigos.
Na manhã seguinte ele retorna ao lar. Vai para o quarto do casal, mas ali não está Dagmar que preferiu dormir num aposento contíguo.
Horas depois, ouve-se um barulho. Ao que parece, pensam a esposa e as empregadas, trata-se da queda de um quadro. Dagmar assusta-se, mas não vai verificar. São as serviçais que primeiro avistam Ivo Renaux, morto, com um tiro na cabeça.
As primeiras impressões apontam para suicídio. A família assim pensa. Mas logo a versão passa a ser de possível homicídio. Sobretudo após um padre, com base em sua opinião leiga, ter assim concluído, e, por isso, permitido que o corpo do industrial tivesse um sepultamento cristão (suicidas não faziam jus a tal benefício). Por sua aparente indiferença frente ao cadáver do marido, suas brigas constantes e possibilidades fáticas (apenas ela se encontrava no mesmo andar da casa na ocasião em que Ivo foi morto), Dagmar torna-se a única suspeita.
Para muitos, tratava-se mesmo de homicídio, já que:
a) O corpo de Ivo estava tapado com um lençol e suas mãos estavam sob este cruzadas, uma sobre o peito, outra sob o abdômen. Se o tiro foi instantaneamente mortal (como o afirmaram o delegado e os peritos que examinaram o corpo), como Ivo matou-se e depois se cobriu com o lençol?
b) Se Ivo se matou por que seus olhos estavam fechados e a expressão serena, como se tivesse morrido dormindo?
c) Se Ivo se matou como justificar a ausência de pólvora na sua mão?
d) Se Ivo se matou por que Dagmar mostrava-se tão preocupada em evitar a proximidade do corpo do marido morto?
e) Se Ivo se matou por que não deixou algum bilhete?
f) E, enfim, por que se mataria alguém bem-sucedido e alegre como ele?
Para outros, os indícios apontavam mesmo era para suicídio:
a) Pois se era assim tão óbvio que Ivo não se matou por que sua família primeiro conformou-se à hipótese de suicídio?
b) Se era tão óbvio que Dagmar o matou, por que não haverem buscado resíduos de pólvora em suas mãos? E impressões digitais na arma, um revólver calibre 32?
c) Por que não terem preservado a cena do crime?
d) Por que algumas testemunhas falam que o corpo estava coberto com um lençol até às costelas e outras até o pescoço?
e) Por que outras só notaram a coberta mais acima depois de o tio de Ivo ter inspecionado sozinho o corpo?
f) Por que não se procedeu à completa necropsia, a fim de responder se a morte de Ivo teria ou não sido instantânea?
O veredicto
Após laudos e contestações de laudos, fuga e prisão da acusada, sua pronúncia e julgamento, concluiu-se, por sete votos a zero, que Dagmar estava inocente da acusação de homicídio.
A promotoria recorreu da decisão. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina não acatou o recurso, mas opinou de forma surpreendente sobre o desfecho do caso:
“Tem-se a impressão que a hipótese é, efetivamente, de homicídio e não de suicídio. De outro lado, sente-se que o autor desse crime outro não foi que senão a própria mulher da vítima. Não existe, contudo, no autos, a meu juízo, provas decisivas e conclusivas do mariticídio.”
No livro de Mosimann o caso Renaux é detalhado pela opinião dos peritos, testemunhos e jornalistas da época. Tanto as peças acusatórias a Dagmar, quanto às de sua defesa são paradigmáticas para o entendimento de como o cérebro treinado dos bons juristas é capaz de gerar, a partir dos mesmos fatos, interpretações tão díspares e tão convincentes. Cada detalhe da posição do corpo, da trajetória da bala, da atitude da viúva, do titubeio das testemunhas e da personalidade da vítima transformam-se, na oratória dos tribunos do caso, em pontos fundamentais para provar, definitivamente, ora a culpa da ré, ora sua mais cristalina inocência. “Nada é insignificante para uma mente ampla”, dizia o imortal Sherlock Holmes, e tão ampla era a mente dos juristas de acusação e da defesa que só restou à Justiça encerrar o caso, sem jamais esclarecer o que de ocorreu de fato naquela manhã de inverno de 1949.
Ler o livro de Tragédia e mistério na Villa Renaux é, por isso tudo, partilhar das angústias da justiça feita pelos homens, com toda sua dificuldade de provar um fato que apenas uma pessoa teria presenciado. Ou, quem sabe, duas... Vá saber.
Em 30 de julho de 1949, em Brusque, Santa Catarina, se produzia um evento digno dos melhores romances policiais. O jovem industrial Ivo Renaux é encontrado morto em sua cama na mansão da família. Na noite anterior, durante a comemoração de seu aniversário, Ivo havia discutido com sua esposa, a bela paranaense Dagmar Renaux. Beleza, dinheiro, morte e mistério envolviam a interrogação que se abateu sobre a região brusquense:
Ivo Renaux havia se suicidado ou teria sua esposa o assassinado?
Suicídio ou homicídio?
Na noite anterior ao crime, a esposa, Dagmar, preocupada com a ausência do marido em casa, sai à sua procura, acompanhada da sogra, vindo a encontrá-lo num bar a beber com amigos. Chamado ao lar pela esposa, Ivo Renaux não só se nega a acompanhá-la, como, horas depois, segue de Brusque para Itajaí, a fim de esticar sua comemoração natalícia, na companhia de amigos.
Na manhã seguinte ele retorna ao lar. Vai para o quarto do casal, mas ali não está Dagmar que preferiu dormir num aposento contíguo.
Horas depois, ouve-se um barulho. Ao que parece, pensam a esposa e as empregadas, trata-se da queda de um quadro. Dagmar assusta-se, mas não vai verificar. São as serviçais que primeiro avistam Ivo Renaux, morto, com um tiro na cabeça.
As primeiras impressões apontam para suicídio. A família assim pensa. Mas logo a versão passa a ser de possível homicídio. Sobretudo após um padre, com base em sua opinião leiga, ter assim concluído, e, por isso, permitido que o corpo do industrial tivesse um sepultamento cristão (suicidas não faziam jus a tal benefício). Por sua aparente indiferença frente ao cadáver do marido, suas brigas constantes e possibilidades fáticas (apenas ela se encontrava no mesmo andar da casa na ocasião em que Ivo foi morto), Dagmar torna-se a única suspeita.
Para muitos, tratava-se mesmo de homicídio, já que:
a) O corpo de Ivo estava tapado com um lençol e suas mãos estavam sob este cruzadas, uma sobre o peito, outra sob o abdômen. Se o tiro foi instantaneamente mortal (como o afirmaram o delegado e os peritos que examinaram o corpo), como Ivo matou-se e depois se cobriu com o lençol?
b) Se Ivo se matou por que seus olhos estavam fechados e a expressão serena, como se tivesse morrido dormindo?
c) Se Ivo se matou como justificar a ausência de pólvora na sua mão?
d) Se Ivo se matou por que Dagmar mostrava-se tão preocupada em evitar a proximidade do corpo do marido morto?
e) Se Ivo se matou por que não deixou algum bilhete?
f) E, enfim, por que se mataria alguém bem-sucedido e alegre como ele?
Para outros, os indícios apontavam mesmo era para suicídio:
a) Pois se era assim tão óbvio que Ivo não se matou por que sua família primeiro conformou-se à hipótese de suicídio?
b) Se era tão óbvio que Dagmar o matou, por que não haverem buscado resíduos de pólvora em suas mãos? E impressões digitais na arma, um revólver calibre 32?
c) Por que não terem preservado a cena do crime?
d) Por que algumas testemunhas falam que o corpo estava coberto com um lençol até às costelas e outras até o pescoço?
e) Por que outras só notaram a coberta mais acima depois de o tio de Ivo ter inspecionado sozinho o corpo?
f) Por que não se procedeu à completa necropsia, a fim de responder se a morte de Ivo teria ou não sido instantânea?
O veredicto
Após laudos e contestações de laudos, fuga e prisão da acusada, sua pronúncia e julgamento, concluiu-se, por sete votos a zero, que Dagmar estava inocente da acusação de homicídio.
A promotoria recorreu da decisão. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina não acatou o recurso, mas opinou de forma surpreendente sobre o desfecho do caso:
“Tem-se a impressão que a hipótese é, efetivamente, de homicídio e não de suicídio. De outro lado, sente-se que o autor desse crime outro não foi que senão a própria mulher da vítima. Não existe, contudo, no autos, a meu juízo, provas decisivas e conclusivas do mariticídio.”
No livro de Mosimann o caso Renaux é detalhado pela opinião dos peritos, testemunhos e jornalistas da época. Tanto as peças acusatórias a Dagmar, quanto às de sua defesa são paradigmáticas para o entendimento de como o cérebro treinado dos bons juristas é capaz de gerar, a partir dos mesmos fatos, interpretações tão díspares e tão convincentes. Cada detalhe da posição do corpo, da trajetória da bala, da atitude da viúva, do titubeio das testemunhas e da personalidade da vítima transformam-se, na oratória dos tribunos do caso, em pontos fundamentais para provar, definitivamente, ora a culpa da ré, ora sua mais cristalina inocência. “Nada é insignificante para uma mente ampla”, dizia o imortal Sherlock Holmes, e tão ampla era a mente dos juristas de acusação e da defesa que só restou à Justiça encerrar o caso, sem jamais esclarecer o que de ocorreu de fato naquela manhã de inverno de 1949.
Ler o livro de Tragédia e mistério na Villa Renaux é, por isso tudo, partilhar das angústias da justiça feita pelos homens, com toda sua dificuldade de provar um fato que apenas uma pessoa teria presenciado. Ou, quem sabe, duas... Vá saber.
2 comentários:
Caro Professor Sandro.
Agradeço a objetiva crítica, de caráter também literário, sobre o livro. Ao resgatar o caso, procurei, efetivamente, preservar o rigor histórico revelando, ao mesmo tempo, alguma carga emocional. Como ao autor, envolvido pela história, torna-se difícil enxergá-la com a isenção necessária, é sempre grato saber que aquele objetivo foi, de certa forma, alcançado. A vida às vezes imita a arte e um caso real pode assumir o caráter literário de um romance. Infelizmente torna-se impossível hoje (não havia gravador) transferir para o papel a emoção da sessão do júri, com todo o brilho daqueles tribunos.
Com agradecimentos pela recomendação do livro e um grande abraço,
João Carlos Mosimann.
EXCELENTE LIVRO! SEM COMENTARIOS!
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