19.4.07

O massacre na Virgínia Tech: o perfil do criminoso – parte I.

O assassinato em massa ocorrido na Universidade Virgínia Tech, nos EUA, em 16 de abril de 2007, resultando em 33 mortes, nos reconduz àquelas célebres questões acerca do perfil do indivíduo capaz de um ato de tamanha gravidade. O que Cho Seung-hui, de 23 anos, um sul-coreano que se criou no estado da Virgínia, tinha de diferente das pessoas ditas normais e que possamos utilizar como ponto de partida para compreender, ainda que parcialmente, o fato de ele ter matado tantas pessoas e, em seguida, matar-se a si mesmo. Algo tem que ser encontrado.

E então surgem as disputas entre especialistas do crime (policiais, juristas criminólogos), da violência social (sociólogos, antropólogos), da personalidade (psicólogos, psicanalistas, psiquiatras), da alma (teólogos, esotéricos) e das generalidades (jornalistas, políticos, “pessoas comuns”) pela apresentação da explicação mais coerente do triste evento. Atribuem-se razões (“Esses são, em suma, os motivos que teriam levado Seung-hui ao assassínio coletivo.”), emoções (“Provavelmente seu namorado gorado com uma tal de Emily deve ter desencadeado o surto assassino.”), patologias (“Trata-se de um portador de distúrbio de personalidade anti-social.”), facilidades (“Se o estado da Virgínia não fosse tão permissivo em relação à compra de armas isso jamais teria ocorrido.”), racialidades (“Enquanto presidente da Coréia do Sul, estou chocado e peço desculpas ao povo norte-americano”), escatologias (“A Bíblia já previa que atos como esse abundariam no final-dos-tempos.”).

Em comum, as diversas hipóteses explicativas acima apresentam apenas dois pontos: primeiro, foram feitas às pressas para satisfazer às demandas da mídia; segundo, foram feitas às pressas para salvar os seres humanos de si mesmos, da dura constatação de que aquele que comete um ato de tal magnitude criminosa pode não ter razões, emoções, defeitos ou doenças especiais; pode ser apenas alguém – igual a mim e a você – mostrando do que um ser humano normal é capaz. Recorrer à anormalidade ex post facto de Cho Seung-hui, isto é, descrevê-lo de trás para frente como um indivíduo perigoso desde de tenra idade, é um artifício fraudulento para poder dizer que o que falhou não foi o ser humano em geral, com sua inegável potencialidade criminosa, mas nossos métodos psiquiátricos, pedagógicos, sociais ou religiosos. Mas a realidade é que mesmo que houvesse mais escolas, mais afeto, mais psicólogos, mais freqüência à missa dominical, mais políticas públicas de inclusão, menos armas de fogo disponíveis, ou menos foras de namoradas ainda assim não é possível dizer se não haveria a tragédia no campus universitário. Nem a ação correta das instituições, nem o caráter expresso da pessoa, ou mesmo sua biografia, pode dar à humanidade garantia plena de que sob o uniforme escolar, a batina, a toga, o terno ou o tailleur não se encontra a crueldade pronta para explodir. Se os cho seung-hui, os maníacos dos parques, os lau-laus, os padres-pedófilos ou os religiosos com manias desonestas fossem tão diferentes assim do resto da humanidade, fossem anormais de alguma forma, não se teria facilitado a eles a posse das armas, das vítimas, do dinheiro ou das gravatas.

Há séculos a humanidade vem tentando “anormalizar” o criminoso, dizer que ele não é um de nós, que é um selvagem, um bárbaro, um monstro, um doente. Para podermos continuar confiando uns nos outros é necessário crer que um criminoso é uma espécie de alienígena que circula entre nós disfarçado para melhor preparar o bote. É difícil aceitar a ausência de uma diferença ontológica, de essência, entre o criminoso e o cidadão normal. No entanto, a única diferença realmente existente entre o indivíduo normal e o indivíduo criminoso não está em que tipo de pessoas são, mas naquilo que em determinado momento fizeram. Se Cho Seung-hui tivesse morrido uma hora antes dos disparos num acidente de automóvel, a Universidade da Virgínia decretaria o luto por “um valoroso imigrante e uma vida honrada”. Moral da história, em termos bem simplórios: ninguém é do mal até fazer algo mal, e os maiores “monstros” da história da humanidade gastaram menos de 1% de sua vida fazendo coisas diferentes de nós – perversas mesmo – no mais, acreditemos ou não, eram a nossa cara.

Cesare Lombroso, pelos idos de 1876, discordaria do que disse acima. Para ele, um criminoso – pelo menos o criminoso nato – não teria a nossa cara coisa nenhuma. Seria mais feio, parecido com aqueles miseráveis que encontrou nas prisões do sul da Itália. Ele foi capaz, inclusive, de descrever as características anatômicas típicas de quem é suscetível ao crime: assimetria facial, dentes irregulares, maxilares proeminentes e nariz torto. E acrescentava ainda: “Marro observou que 7,8% dos criminosos têm as orelhas em abano. Já eu observei tal característica em 38,7%, enquanto que, entre os normais, não encontrei mais que 20%.” Como seria bom se o criminoso pudesse ser reconhecido por um sinal na face! Os antigos gregos que, por razões óbvias, não conheciam as “descobertas” de Lombroso, preferiam marcar eles mesmos a face dos criminosos, a ferro e fogo, dotando-os de tatuagens na testa, que indicavam tratar-se de indivíduos que, apesar da aparência normal, já haviam levado outros à desgraça. Era uma forma de suprir esse “defeito” da natureza consistente em não sinalizar claramente aquele humano que nos infernizará a existência.

A “cara de bandido”, como se vê, é invenção recente e incapaz de nos proteger dos cho seung-hui. Mas não se pense, por isso, que é invenção desprovida de qualquer utilidade prática. Se ela não serve para detectar possíveis criminosos, ela serve para criminalizar determinadas pessoas que, por razões genéticas e/ou sociais apresentam-se ao imaginário social como sendo as mais capazes de barbarizar a vida alheia. É assim que, no Brasil, negros serão mais investigados pelo sistema de justiça; pobres terão mais vezes contra si a presunção de culpa, enquanto que pessoas brancas e de alta classe gozarão, até que se prove, em última e quase infinita instância, que não são inocentes. No contexto norte-americano, após o 11 de setembro, se Cho Seung-hui fosse um árabe, é possível que as autoridades tivessem evitado a tragédia. O FBI e a CIA, auxiliados pela competente equipe do CSI, já haveriam de ter detectado sua periculosidade atávica. Mas, diante de um membro da amiga Coréia do Sul, um sujeito com cara de nerd, não era um caso para maiores preocupações. E enquanto Rambo dormia, seu imitador coreano barbarizava na universidade.

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