7.5.07

Crença obrigatória?

Representantes de vários países da União Européia mostraram-se favoráveis, no último mês de abril, a que virasse crime a negação do Holocausto. O alvo da criminalização eram os chamados “negacionistas”, que representam uma das correntes revisionistas da história da Segunda Guerra. De maneira sintética, essas correntes discordam da versão histórica oficial, na qual o extermínio dos judeus teria sido destacadamente o acontecimento mais relevante do período. Felizmente, no entanto, o texto aprovado pelos 27 países do bloco europeu foi mais brando, considerando crime apenas quando a negativa do Holocausto for um meio para gerar efetivamente a violência ou o ódio interétnicos, isto é, se estiver ligada a manifestações como a dos neonazistas e coisas do gênero.

As várias correntes revisionistas

Etimologicamente a palavra holocausto deriva do grego, sendo uma fusão de holos (todo) + kaustos (queimado). Entre os antigos hebreus referia-se ao sacrifício em que a vítima era totalmente queimada: “Então, Jetro, sogro de Moisés, trouxe holocausto e sacrifícios para Deus” – Exôdo 18:1. Após o julgamento dos crimes da Segunda Guerra, pelo Tribunal de Nuremberg, o termo passou a ser associado praticamente apenas ao extermínio de judeus em campos de concentração nazistas, tornando-se comum, então, grafá-lo com inicial maiúscula.

Muitos questionam a vinculação quase absoluta entre o extermínio provocado pelo nazismo e as vítimas judaicas, alegando que, embora seja fato que os judeus foram a maior parte das vítimas, não é menos verdade que não foram as únicas: ciganos, homossexuais, portadores de deficiência, testemunhas de Jeová e várias modalidades de dissidentes políticos também padeceram em campos de concentração.

Outros revisionistas acreditam haver exagero no número de judeus mortos freqüentemente referido (seis milhões). Alegam que esse número é inflacionado, que morreram muito menos, o que não tornaria os crimes nazistas menos graves, mas demonstraria que a propaganda dos vencedores no pós-guerra tomou uma dimensão radicalmente descolada dos fatos. E reaproximar fatos e versões é a função mais que legítima do historiador.

Enquanto isso, há os que sustentam que uma revisão da narrativa da Segunda Guerra precisa ser feita porque a versão oficial – a que foi para o cinema e para os livros de história - foi escrita com a caneta dos vencedores, em particular dos EUA. Assim sendo, esses revisionistas não têm por objetivo negar o sofrimento judeu, mas colocá-lo ao lado do de outras vítimas da história, com destaque aos bombardeios nucleares às cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, feitos pelos “mocinhos” norte-americanos. Nessa operação, que durou apenas horas, foram mortas cerca de 200 mil pessoas, quase todas civis inocentes. Quem já teve oportunidade de assistir às entrevistas com o então coronel americano Paul Tibbets que de num avião B-29 (batizado com nome de sua mãe, Enola Gay) lançou sobre Hiroshima a jocosa bomba litlle boy (a de Nagasaki chamava-se fat boy) fica chocado pela maneira como ele se justifica: “Eu era apenas um soldado, obediente, que executou uma missão”. A mesma justificativa que foi apresentada pelo nazista Adolf Eichmann, um dos comandantes do extermínio judeu, que, quando sob julgamento em Israel, em 1961, a tudo respondia que apenas cumpria ordens. Logo, ele também foi um bom soldado. A diferença é que Eichmann acabou enforcado, enquanto Paul Tibbets virou herói de guerra.

Polícia do pensamento

Correntes revisonistas como as acima referidas devem ter seu mérito - ou demérito - analisados por sua consistência acadêmica, capacidade de oferecerem provas empíricas do que alegam, explicações verossímeis e possibilidade de – com a observância de critérios de ética e lógica investigativa - mostrarem-se superiores às versões históricas concorrentes. Mas não devem ser tratadas como subversivas ou criminosas. Como disse o filósofo de Oxford Simon Blackburn, a liberdade acadêmica consiste no fato de que idéias só devem ser combatidas por outras idéias. Combater idéias com prisões e cassetetes é operação estranha à essência da democracia.

Mesmo aquelas correntes que vão mais além, negando que houve qualquer massacre de judeus, que tudo não passou de uma farsa, que o nazismo ainda pode salvar o mundo e coisas do gênero, devem ser respondidas no nível do bom discurso acadêmico, que, certamente, é capaz de fuminá-las, mostrando que não passam de uma coleção de simplismos ideológicos utilizados para dar fundamentação a um ódio interétnico primitivo, tosco. Pode ser até que rir delas já seja suficiente. No entanto, quando essas correntes se materializarem em ações de preconceito, discriminação e racismo, deixando, assim de serem fenômenos cognitivos ou afetivos para se tornarem comportamentos exteriorizados, aí sim, temos um caso de polícia.

É insensato obrigar alguém a acreditar em algo - como o fizeram Hitler, Stálin e o Taliban - sob pena de padecer na cadeia. Acreditar nas bem-aventuranças, no comunismo, no nazismo ou que Alá vingará os que por ele se sacrificarem é fenômeno interno ao ser humano, não passível de criminalização, a menos que se ressuscite o famigerado tribunal do Santo Ofício que, com seus inquisidores, a ferro e fogo, determine quem é fiel às crenças corretas e quem merece morrer como herege. Criminalizar crenças é, por longa tradição histórica, uma bobagem que todas as vezes a que a humanidade sucumbiu só agravou a discórdia e a violência entre os povos. Não se pode, por respeito à própria integridade da pessoa humana, forçar os indivíduos a compartilharem conosco as crenças que julgamos “corretas”. Tudo o que se pode fazer é impedir a manifestação – a exteriorização - de crenças quando elas ponham os outros em situação de perigo concreto.

Em perigo concreto, sustentamos, para evitar um cerceamento indevido da liberdade de pensamento e expressão. Assim, por exemplo, um grupo de advogados gregos tentou processar Oliver Stone, diretor do filme Alexandre (Warner: 2004) por aprensentar uma versão “homossexual do herói macedôdnio.” No Brasil, o filme A paixão de Cristo, de Mel Gibson, rendeu debate semelhante, levando membros da comunidade judaica a desejarem sua proibição, por ele dar uma versão excessivamente cristã da morte de Jesus. Nas palavras do rabino Henry Sobel (que, particularmente, não foi favorável à proibição do filme): "Incomoda-me que os judeus da época de Jesus sejam retratados como sanguinários e vingativos, enquanto que as virtudes do amor e da compaixão sejam atribuídas exclusivamente aos romanos", (http://www1.uol.com.br/) .

Uma das principais características humanas é divergir sobre os mesmos fatos. Isso acontece quer entre leigos quer entre cientistas. Uns acham que Stálin e Hitler são praticamente a mesma coisa; outros que Bush e Hitler se parecem; muitos juram que Hugo Chavez e Fidel Castro estão dando uma resposta adequada aos EUA, outros, que eles não passam de ridículos populistas; há os que sustentam que Israel é um Estado que patrocina o massacre dos palestinos e os que dizem que os palestinos não passam de um foco de terrorismo. Quais dessas versões devem ser tidas como criminosas? Quais são lícitas?

Em países como Alemanha, França e Bélgica negar que houve o nazismo já é considerado um delito. No Brasil, ainda que não haja esse crime, o STF manteve a condenação por crime de racismo – imprescritível – do editor Sigfried Ellwanger, especializado em publicar livros revisionistas do tipo: Holocausto Judeu ou Alemão?";"Hitler, Culpado ou Inocente?", de Sérgio Oliveira; e "A História Secreta do Brasil", de Gustavo Barroso. A condenação a quase dois anos de prisão, só surgiu após muita ponderação e dissenso no STF. Expressou-se da seguinte maneira, em seu voto absolutório, o Ministro Carlos Ayres Britto:

“Sucede que não é crime tecer uma ideologia. Pode ser uma pena, uma lástima, uma desgraça que alguém se deixe enganar pelo ouropel de certas ideologias, por corresponderem a um tipo de emoção política ou de filosofia de Estado que enevoa os horizontes do livre pensar. Mas o fato é que essa modalidade de convicção e conseqüente militância tem a respaldá-la a própria Constituição Federal. Seja porque ela, Constituição, faz do pluralismo político um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (inciso V do art. 1°), seja porque impede a privação de direitos por motivo, justamente, de convicção política ou filosófica (inciso VIII do art. 5°).”


A força dos fatos versus a força das armas

Negar que houve o nazismo, que ele se assentava sobre bases preconceituosas e limitativas da natureza humana é em si uma estupidez. Mas se é um crime, é outra coisa.

A verdade tem seus próprios critérios de aferição: sua demonstração empírica (afinal, são alguns milhões de cadáveres!), sua intersubjetividade (se fosse falso o Holocausto praticamente todos os intelectuais do pós-guerra estariam enganados!), a memória dos inúmeros sobreviventes, os processos judiciais conduzidos em várias partes do mundo, o auto-reconhecimento de culpa pelo governo Alemão etc.

Mas quando se empresta à verdade a força das armas se está sugerindo que ela, por si só, não se sustenta. Uma verdade que temos que compartilhar por obrigação legal vira dogma. E todo dogma sugere conspirações: “ a serviço de quem está essa verdade?”, “por que não posso discordar disso?”

Dê a uma verdade o apoio das armas e, automaticamente, todos os homens de espírito democrático e boa-vontade se sentirão tentados a questioná-la. Porque quando se quer espoliar um povo (sejam judeus, negros, índios, latinos ou árabes) o primeiro passo é dizer que quem não acreditar na mesma coisa que as autoridades é criminoso. E daí para um banho de sangue é só um pulo.

Em resumo, consideremos tolos, desinformados ou estúpidos os negadores do Holocausto, mas, por respeito aos fundamentos de nossos valores democráticos, devemos continuar a combatê-los no plano intelectual. As prisões só para aqueles que passam da crença ao ato. Enquanto eles tiverem no plano da crença, é como crentes – e não como exércitos – que devem ser combatidos.

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