11.8.07

Multa moral

Está fazendo sucesso na mídia a iniciativa de uma escola de Jaraguá do Sul, Santa Catarina, que instituiu uma “multa” de 10 centavos por palavrão falado em sua biblioteca. Aparentemente a idéia é boa e, segundo alguns funcionários entrevistados, os próprios alunos tratam de fiscalizar seus colegas desbocados, delatando-os para que sofram o simbólico prejuízo financeiro. Dizem que o nível do palavreado local elevou-se. Por que não pensamos nisso antes? Porque não funciona.

A idéia de aplicar multa a deslizes morais não é nova. Sendo sistematicamente abandonada porque, apesar dos bons resultados inicialmente verificados, ela costuma trazer um efeito colateral fulminante: ao converter uma obrigação moral (aquela que se deve fazer por si mesma, por considerá-la o jeito virtuoso de proceder) em uma obrigação externamente motivada, realizada sob pena de multa, o sujeito mercantiliza sua própria noção de dever, surgindo-lhe a idéia de que tudo tem um preço, inclusive sua conduta moral, conduzindo-lhe, assim, ao cálculo utilitarista acerca do quanto tem disponível, em dinheiro, para transgredir.

Tudo vira um jogo

Como os professores vão passar um sermão no garoto malcriado se ele já está com os 10 centavos à mão? “Ora, cobre a dívida, e não me encha o saco, professor!”. A autoridade moral do mestre ficaria desautorizada em si mesma; ele se converteria num mero cobrador de deslizes éticos; a caixa registradora substituiria a advertência responsabilizante.

E quando a penalidade for retirada o que restará? Restará a consciência de que transgredir é apenas uma brincadeira de gato e rato, de pagar pela burrice de não ter visto que algum delator estava à espreita. A retirada da punição terá o efeito de uma revogação da norma por ela protegida: estarão liberados os palavrões. Não era isso que aconteceria conosco se amanhã surgisse uma lei dizendo que estacionar em local proibido, ou falar ao celular no volante, embora ainda fosse desaconselhável, não acarretaria mais qualquer tipo de punição? Não teríamos sempre nossos motivos "excepcionais" para estacionar ali, pendurar-se ao fone aqui? Acho que sim.

É conhecimento elementar de sociologia jurídica que a retirada da pena leva à conclusão pessoal de revogação da norma a ela associada. Morto o cão, morta a raiva.

Isso ocorre mesmo com as chamadas sanções premiais. Passe a dar ao seu filho pequeno um real todas as vezes que ele se dispuser a tomar banho. Depois revogue a premiação. Diga que tomar banho “nada mais é do que uma obrigação moral.” Ele vai se sentir lesado, vai acreditar que você o injustiçou, tentará compensar o desequilíbrio contratual gerado: vai se esfregar menos, gastar mais xampu, molhar todo o banheiro, dizer que já tomou... Aí então, haja punição ou a volta do prêmio...

Prêmios materiais ou multas dadas para regularem comportamentos tendem a exigir perpetuidade. Mas o sujeito não se condiciona? Com o tempo não dá para tirar o reforço premial e pronto? Felizmente (para quem admira a liberdade humana, pelo menos) não é tão simples assim; se fosse, meu patrão poderia cancelar meu salário que eu continuaria indo para o trabalho; o governo poderia dispensar os fiscais da Receita que, por inércia, continuaríamos a dar a César o que não é de Deus.

Israel e suas creches

Em Israel, narram os autores de Freakonomics, uma experiência em alguns aspectos semelhante a de Jaraguá do Sul foi tentada. Ali os pais costumavam se atrasar demais para pegar os filhos na creche ao final do dia. Isso trazia aborrecimentos à instituição que tinha que manter algum professor de plantão, aguardando a chegada tardia dos pais e suas desculpas triviais. Então se decidiu implementar uma multa para atrasos superiores a 10 minutos, no valor de três dólares. O resultado? Aumentaram os atrasos, pois os pais agora não mais se sentiam culpados por fazerem alguém esperar por eles na creche: estavam pagando pelo atraso. Quem paga não precisa de desculpas nem de satisfações, quem paga tem uma liberdade que nasce do bolso. Desculpa é coisa para quem depende de favores alheios. Não é à toa que Adolpho Bloch dizia, sabiamente, que se devia fazer de tudo para fugir de favores: “De graça nem por um milhão!”.

As multas de trânsito

De certo que as multas de trânsito têm certa funcionalidade. Evitam transgressões. A razão disso é que as regras do trânsito não são, em geral, normas morais: ninguém ficará com remorso por ter ultrapassado o limite de velocidade quando as condições do carro e da pista eram convidativas. Mas se há um guarda ou um radar nos monitorando, obedecemos ao limite de velocidade imposto. Um pouco à frente, sem a menor culpa, aceleramos de novo. Estamos no celular, dirigindo. Ops, um policial! Escondemos o aparelho. “Não caiu não, é que tinha um guarda, e eu não podia falar...”.

Quando uma regra não possui apoio da moral, quando obedecer-lhe não nos parece, por si mesma, uma virtude, a pena é tudo o que lhe resta. Mas a pena só dissuade na medida de sua relativa certeza de aplicação e enquanto permanecer vigente. Todos se comportam conforme as ordens do semáforo eletrônico, mas uma infinidade de pessoas volta de festas dirigindo embriagado. O que varia em ambos os casos, como se vê, não é o perigo da ação contrária à lei: mas a quase certeza de punição no primeiro caso e a quase certeza de que no caminho de casa não haverá nenhuma blitz e seus bafômetros. Quando uma obrigação não é percebida como moral, a presença do fiscal é sua única garantia de obediência.

Moral da história

Só a moral, por ser uma obrigação autônoma, nos mantém controlados mesmo quando a pena não existe ou sua aplicação é falha. Numa lição que remonta a Kant, só quando eu cumpro uma regra por acreditar tratar-se de algo que me é devido fazer, sem esperar ou temer nada por isso, é que estou sendo um sujeito ético. E é somente nesse caso que eu sou um sujeito moralmente livre, pois meus limites são impostos pela minha própria consciência. Mas se cumpro algo porque temo uma punição, estou sendo escravizado pela norma: faço porque os outros – a sociedade - assim deseja. Nessa situação, preciso ser estritamente vigiado.

Num sistema de regras sociais legítimas - éticas mesmo - deve-se esperar que o número daqueles que seguem os comportamentos exigidos porque acreditam que isso é o que de fato lhes cabe fazer deva ser sensivelmente superior ao número daqueles que adequadamente se comportam apenas por que temem punições. Santa Catarina tem cerca de 17 mil policiais e seis milhões de habitantes. Por sorte, a imensa maioria dos catarinenses faz o que é certo porque quer continuar em paz consigo mesmo e não porque teme uma excepcional atuação da polícia. Isso se chama civilização.


Moral com moral se paga

Michael Walzer dizia que para que haja justiça nos sistemas humanos é preciso que se impeça que a lógica de uma determinada instituição social passe a ser a lógica de outra. Por exemplo, a lógica do amor é a do desejo, da admiração do outro em si; a do dinheiro é a da mercantilização das coisas. Num mundo justo, dinheiro não poderia ser utilizado para comprar amor; nem amor utilizado para auferir dinheiro. Seria injusto que isso ocorresse. Na mesma linha, a moeda da moral é a da auto-satisfação do dever cumprido, do querer bem-conviver com os demais em sociedade. Se o dinheiro passar a regular a moral, ela se destruirá, por ter se sido colonizada pela lógica mercantil.

Infelizmente não há muito que inovar: comportamento moral só pode ser reforçado por sua própria lógica. No caso escolar, isso se daria fazendo os alunos compreenderem, e sentirem, que sem tais normas a vida em coletividade se tornaria empobrecida, agressiva, ríspida e deplorável. No entanto, é preciso reconhecer que muitas regras de ontem não são mais legitimadas hoje. Perderam a função. Poderíamos inclusive investigar se a interdição dos palavrões não é uma delas. Cada vez mais a televisão, as rádios, as músicas, os livros, os adultos bem instruídos, as mães, os pais e os avós os utilizam. Seriam ainda imorais os palavrões?

A extinção das cegonhas

A maior parte dos palavrões possui conotação sexual. No passado, eles ofendiam, sobretudo na boca das crianças, porque indicavam um conhecimento vulgar das ações escondidas da mamãe e do papai, do titio e das moças da casa de tolerância. Hoje, quando as cegonhas já não fazem mais entrega e que a metáfora agropecuária da sementinha plantada na mamãe causa risos na tuminha do pré-primário, é de repensar a subversão causada pelos palavrões.

Talvez as palavras obscenas tenham de fato perdido qualquer importância moral, tornando-se seu emprego mero aspecto de estética lingüística: “Em nossa escola comemos com elegância, falamos com garbo, vestimo-nos a caráter.” Se dizer palavrões deixou de ser um ato moralmente reprovável, se aquele que o fala não mais sente culpa e aquele que o escuta não mais se ofende (embora possa fazer que sim, “para educar as crianças”), só resta mesmo as sanções externas. Aí sim, ponto para Jaraguá do Sul. Mas se palavrões ainda ofendem a moral, então é melhor voltar ao tradicional, a ladainha: “Menina, isso não se diz!”, “Era o que faltava, uma moça com uma palavra dessas na boca!” “Ai, ai, ai!!!” “Vai de castigo!”.

Em Jaraguá, e sua multa, essa menina poderia faceiramente responder: “Que é isso, babaca, para que ir de castigo se eu posso ir ao banco?”.

3 comentários:

Anônimo disse...

Pois isso até já havia gerado piada:

O Joãozinho era um menino muito malcriado. Falava palavrões o dia inteiro e sua mãe não sabia mais o que fazer. Foram até a paróquia e o padre aconselhou: cada palavrão que o Joãozinho falar significa perder 10 centavos da sua mesada, que serão doados à paróquia para caridade. A senhora anota o número de vezes e manda o Joãozinho vir aqui entregar o dinheiro. Ao fim do primeiro mês, o Joãozinho chega até o padre com a cara amarrada e diz: "Falei noventa e nove palavrões esse mês. Tá aqui o dinheiro." E estendeu uma nota de dez reais ao padre, que respondeu: "Meu filho, eu não tenho dez centavos agora pra lhe dar de troco..." Ao que o Joãozinho responde: "Não tem problema, padre, o senhor pode ir pra pqp, que estamos acertados!"

Sandro Sell disse...

Muito boa! Isso me lembrou outra, afeita à área jurídica:

Um sujeito toma um soco de outro. Vai até o Juizado Especial e o juiz quer, porque quer, que ele aceite 50 reais do acusado para com isso encerrar o caso. Depois de muita relutância, a vítima aceita. Mas o acusado diz que nâo pode pagar à vista, o juiz então parcela em cinquenta vezes a dívida, e intima a vítima a vir todo dia 5, às 14 horas, sob pena de desobediência, ao Juizado pegar seu um real. Puto da vida, a vítima dá um soco no magistrado. "Mas o que é isso?!" diz, atordoado, o juiz. E o acusado responde:
"São as formalidades para que o senhor possa receber os 50 reais em meu lugar."

Anônimo disse...

Há certos casos em que o certo e errado tomam proporções ridículas, a sociedade exige certas coisas que na realidade não faz, é explícito a maneira depravada com a qual a sociedade se porta nos mais variados setores, ora, se os palavrões ferem tanto uma instituição de ensino, a mesma deveria seguir um caminho mais didático e não capitalista, muitos problemas que enfrentamos com nossos jovens são ocasionados pela mensagem que passamos a eles, na escola, na mídia, e principalmente os pais no dia-a-dia, e pior, depois queremos que essas crianças se tornem adultos equilibrados e que venham respeitar o próximo, os animais, o planeta, o sistema solar, e assim por diante, exigimos deles o que não somos....seres humanos perfeitos e a coisa não pára aí, estamos cegos, não percebemos que entramos num esquema furado e falido estamos nesse jogo e parece que fazemos questão de fazer parte dele, qualquer pessoa que se dedique a apenas observar os fatos perceberá que nosso mundo é caótico e se a mesma pessoa se dedicar a pensar um pouco no assunto verá que as coisas sistematicamente impostas podem ser mudadas. Recentemente a ciência descobriu que alguns recém-nascidos se encontram com uma nova estrutura na cadeia do DNA, mais evoluída, espero sinceramente que o mesmo aconteça com nossas crianças no setor emocional/intelectual, que já nasçam sabendo separar o joio do trigo!