24.4.07

O direito do juiz e a moral do rabino

Por vezes se acredita demais na força das normas jurídicas como modo de regulação social e se esquece que, felizmente, a sociedade não conta apenas com o direito para proteger-se dos que fogem às suas regras explícitas. A religião, a moral e o desejo de manter uma boa reputação na sociedade fazem, ainda hoje, a maior parte do trabalho do controle das condutas anti-sociais. Basta pensar que apesar da ineficácia investigativa de nossas polícias e da dificuldade de punir criminalmente alguém (quando observados todos os critérios de um processo jurídico regular, é claro!) a maioria absoluta das pessoas não está disposta a enveredar pelo caminho da criminalidade.

Muitos contestariam o final do parágrafo acima sustentando que as pessoas normais costumam sonegar impostos, comprar DVDs piratas, apostar no jogo do bicho, dirigir após doses excessivas de álcool, ter engaiolados pássaros nacionais sem o devido aval do IBAMA, contar piadas racistas, enfim, praticar inúmeras condutas definidas como crimes pelo nosso ordenamento penal. No entanto, esse praticar condutas criminosas pela lei sem se sentir culpado só reforça o que foi dito acima: a satisfação que a maioria de nós se sente obrigada a dar à sociedade não passa prioritariamente pelo que o direito define como crime, mas pelo que a sociedade considera imoral, vergonhoso, monstruoso. É assim que o incesto entre adultos, apesar de não ser crime para o direito, é uma proibição moral levada com muita seriedade, já que é capaz de pôr qualquer reputação no lixo. Mas nunca vi quem houvesse perdido uma eleição – nem aqui nem lá fora – por ter confessado que já experimentara maconha. Isso significa que mais vale um crime de pouca monta na biografia do que uma imoralidade séria não criminosa. Em outras palavras, para a média moral brasileira, é preferível ser um contraventor a ser um travesti.

Em termos teóricos, se sustenta mesmo que a punição penal dever ser residual, subsidiária, só devendo ser aplicada quando outras formas de regulação social não derem conta de manter no limite do socialmente razoável o comportamento das pessoas. Além disso, do ponto de vista prático, bem sabemos, a proteção penal é para ser utilizada quase que exclusivamente pelos mais poderosos contra os mais pobres; não sendo, portanto, eficaz contra membros das classes mais altas, cuja conduta ou é regulada pelas outras formas de controle social – moral, religião, reputação – ou não é controlada por coisa alguma.

É que o direito não trata as pessoas com igualdade na hora de fazer suas leis. Prova disso é que ele criminaliza com grande técnica e severidade os delitos cometidos preferencialmente por “pessoas comuns” (furto, roubo, homicídio etc.) e deixa amplas brechas de impunidade quando se tratam de crimes cometidos em sua maioria por “pessoas especiais” (crimes de colarinho branco etc.). Essa tendência de se criar leis mais duras para os mais pobres e rarefeitas para os mais ricos, chama-se criminalização primária.

Nem tampouco trata as pessoas com igualdade no momento de aplicar as leis. A maior parte das polícias brasileiras, por exemplo, só tem atribuição, formação e equipamentos (quando possui) para combater delitos de rua, por isso vivem à cata de ladrões de galinha e traficantes de morro, deixando incólumes assaltantes dos cofres públicos e “financistas do tráfico”, pois que estes envolvem suas atividades ilícitas em complicadas operações financeiras, lavagem de dinheiro, contrabando internacional etc., difíceis de investigar e punir pelos métodos e leis vigentes. Assim só chegam às barras dos tribunais os criminosos mais pobres, que não dispõe sequer de recurso para contratarem um advogado de sua confiança. Some-se a isso que a maior parte dos juízes, como as pessoas em geral, sentem-se assustadas pela “cara de mal” dos criminosos de periferia (tão diferente daqueles de colarinho branco!). O resultado é o que chama de criminalização secundária: a lei penal punitiva é aplicável preferencialmente aos mais pobres.

De que devem padecer os ricos?

Um autor do passado resumiria tudo o que foi falado acima mais ou menos assim:

Os barões, os poderosos, os fidalgos, os pares do reino, enfim, as pessoas com Pê maiúsculo não devem padecer pelo direito criminal. Este filho bastardo da inteligência humana, o direito penal, dirige-se exclusivamente àqueles miseráveis, que só tendo sua liberdade para oferecer em pagamento por sua velhacaria social devem com ela saciar a sede de justiça da sociedade. Mas os barões, os nobres, os fidalgos, os pares do reino, esses seres, uma vez que são feitos da matéria etérea da honra, podem perfeitamente serem punidos apenas com abalos à sua reputação ou com confisco aos seus bolsos.

Trocadas as palavras, essa é a crença dominante mesmo entre a maioria dos juristas do presente – opinião que não expressam, naturalmente, em livros ou palestras, mas sim nas petições que redigem, enquanto advogados, nas sentenças que lavram, enquanto juízes, nas denúncias que promovem, enquanto promotores. Nos congressos universitários, todos eles acham que os ricos se safam demais no Brasil; já em suas escrivaninhas, todos – ou quase todos – fazem de tudo para que eles de fato se safem.


Henry Sobel e Carreira Alvin

Muitos se perguntam: "Vai acontecer alguma coisa com esses dois indivíduos?" Se

essa alguma coisa for uma sanção criminal do tipo prisão – digo aquela real, e não a de mentirinha das carceragens VIPs – certamente que não. No entanto, outras coisas aconteceram. E não são poucas, se levarmos em conta a lógica do como devem padecer os ricos. Nesse sentido, aconteceu coisa até demais. Não conheço caso de quem tenha pagado mais por gravatas furtadas do que o rabino Henry Sobel. Ele furtou gravatas nos EUA, todo mundo ficou sabendo. Se fosse no Brasil, responderia pelo artigo 155 do Código Penal, furto:

"Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel.
Pena: reclusão de um a quatro anos e multa. "


Não daria em nada, claro. Mas, na verdade algo já ocorreu, o crime-moral pelo qual ele vai responder seria mais ou menos o seguinte:

"Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia para enrolar no pescoço.
Pena: abalo vitalício da reputação e perda do direito de lutar pelas causas em que acredita."


No caso de Carreira Alvin – que ainda está na fase do inquérito, mas suponhamos que venha a responder pelo delito do artigo 317 (corrupção passiva):

"Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem.
Pena: reclusão, de um a oito anos, e multa."


Não dará em nada, é claro. Mas, na verdade algo já ocorreu, e o crime-moral pelo qual Carreira Alvin responderá é mais ou menos o seguinte:

"Contribuir, o escritor e o juiz, de qualquer forma, para que as pessoas duvidem de sua honestidade e objetivos.
Pena: ser considerado retroativamente um mau autor, além de ser considerado um mau juiz desde a origem."

É que o julgamento moral da sociedade sempre tem efeito ex tunc: retroage até a origem. Aquele que há 10 anos recebeu uma sentença desfavorável do juiz Carreira Alvin e que já havia se convencido que a decisão, mesmo lhe sendo contrária, poderia ter sido justa, agora deve estar bradando: “Já não é de hoje que ele não é confiável!”. No caso do rabino, as belas exortações que fez, há anos, sobre o dever de honestidade, foram deslocadas nos arquivos da memória de seus fiéis para aquele lugar onde se depositam as falas dos hipócritas.

Mas não deveriam ir para a prisão? Em um mundo razoável, a prisão seria medida excepcional, apenas para aqueles casos em que o fato de o sujeito estar solto implicasse risco físico às demais pessoas. Se o risco não é físico, mas funcional, como no caso de um hipotético juiz que dá sentenças a la carte, afastá-lo do cargo já é suficiente; no caso do pastor em que as ovelhas têm medo de serem por ele tosqueadas, afastá-lo do rebanho já é suficiente. Mas no mundo como ele está, se fosse um pobre e suas gravatas não haveria remédios e psiquiatras que justificassem a conduta criminosa; se fosse um fiscalzinho de prefeitura e suas omissões interesseiras, as grades o receberiam de braços abertos e portas fechadas. Portanto tem razão a população quando diz que se não fossem quem são, os dois veriam o sol nascer quadrado por mais tempo. Mas sendo quem são estão livres da prisão, mas, algo mesmo assim ocorreu: nunca mais serão quem foram.

Bem-vindos, ex-nobres senhores da lei dos homens e de Deus, ao mundo dos que – com ou sem justiça – perderam para sempre o mérito tão longa e destacadamente cultivado. A prisão que, em situação análoga, seria o destino certo, não fossem os senhores quem são, jamais os alcanaçará. Aproveitem o mundo da tolerância 100 com os mais ricos. Logo logo estarão livres de todo esse embaraço e , então, já poderão caminhar livremente pela sargeta moral.

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