21.4.07

O massacre na Virgínia Tech: o perfil do criminoso – parte II.

Os saberes de campo, construídos no calor dos acontecimentos pelas polícias e seus especialistas, e os saberes de academia, construídos a partir dos procedimentos metódicos e criteriosos nas universidades, freqüentemente competem na criação das tipologias criminosas. Policiais em geral criam terminologias operacionais, pensando em suas questões internas – “distinguir para melhor perseguir” - na autopromoção de seu trabalho – “trata-se de um maníaco, de um ser hediondo” - bem como na satisfação que devem dar à sociedade, à imprensa e à lei. Já as terminologias originadas no universo acadêmico, em tese, estão menos propensas a criar mitologias criminosas de grande apelo popular, concentrando-se mais no alargamento do saber dos especialistas acerca dos comportamentos anti-sociais humanos. Em outras palavras, a terminologia policial para tipificação de criminosos costuma ser quente, assustadora, abrangente e, por isso, facilmente aplicável, enquanto a acadêmica é morna, criteriosa e fluida demais para ser atribuída a um acusado durante o calor dos acontecimentos. Assim, por exemplo, para classificar alguém como serial killer – terminologia policial – bastam três ou mais homicídios sem motivação racional; para classificar o mesmo matador como um portador de personalidade anti-social é preciso estudar-lhe o passado (quem foi?), o presente (por que fez?) e o futuro (o que sentirá em relação aos seus feitos?).

É assim que se explica que o termo policial serial killer tenha um reconhecimento popular muito maior do que, digamos, sua tradução acadêmica: Distúrbio de Personalidade Anti-social (DPA). Diante das idéias que nos invadem a mente a partir de uma dezena de corpos humanos num freezer pertencente a um cidadão aparentemente normal – o protótipo cinematográfico do serial killer -, um eventual estudo de jovens com tendência repetitiva de desrespeito ao próximo (um dos indicativos clássicos do DPA) é incapaz de obter atenção. Por isso Hollyhood sempre preferiu a classificação policial. A propósito, desde a década de 1960 o cinema ajudou a formatar a próprio perfil psicológico do que, mais tarde, seria definido como serial killer. Quem não lembra de Psicose, de Alfred Hitchcock, em que Norman Bates, o gerente do hotelzinho de beira de estrada, mantinha o cadáver da mãe empalhado, assumindo sua personalidade para assassinar mulheres atraentes? E depois desse filme, quanta mitologia criminal se criou a partir dos personagens de O massacre da serra elétrica, O silêncio dos inocentes ou Jogos mortais?


Origem do termo
Na década de 1970, o agente do FBI, Robert Ressler criou o termo serial killer para substituir a expressão stranger killer, assassino de desconhecidos, até então utilizada para definir indivíduos que matavam pessoas aparentemente a esmo. Mais detalhadamente, um serial killer seria um indivíduo que mata três ou mais pessoas, em momentos diversos, sem que tais crimes possam ser relacionados às motivações homicidas de costume (dívidas, ciúme, vingança, ganância, desavenças pessoais, queima de arquivo, efeito de drogas). O matador serial não selecionaria suas vítimas por critérios pessoais, mas sim a partir de certas constantes sociológicas (idade, sexo, ocupação, religião etc.). Em termos psicológicos, ele manteria um controle racional de seus atos de crueldade, agindo conscientemente; seu déficit, em relação às pessoas comuns, seria apenas emocional: ausência de piedade, de culpa, de remorso.

No Brasil, um exemplo famoso desse tipo de criminoso é o do motoboy Francisco de Assis Pereira, conhecido como o “maníaco do parque”, que teria, entre 1997 e 1998, violentado e matado cerca de 10 mulheres (há divergência entre o número alegado e o número efetivamente provado de vítimas), num parque localizado na divisa entre a cidade de São Paulo e Diadema. Apesar de desprovido do estereótipo de galã, e portando apenas sua lábia, conseguia convencer as moças – inclusive universitárias – a entrarem na mata com ele, a fim de se submeterem a sessões de fotografia “em ambiente ecológico”, cujo resultado seria supostamente enviado a alguma revista de modelos. Não tardava a que essas mulheres descobrissem que a única sessão que teriam era a do mais puro terror. Condenado a 121 anos de prisão, Francisco tentou alegar que era inimputável, isto é, que não tinha consciência ou controle sobre seus atos. Extremamente atuante no caso, o promotor de justiça Edílson Mougenot Bonfim rebateu essa tese da defesa:

No caso do “Maníaco do Parque”, uma das provas de que ele podia controlar-se era o fato de que os crimes eram sempre cometidos premeditadamente em lugares previamente preparados, o que mostrava a urdidura do crime. O autocontrole se evidencia quando uma das vítimas disse que estava com Aids e ele recuou e não a estuprou. Agrediu-a, mas não estuprou. O autocontrole se evidencia, na prática, com o testemunho de uma vítima sobrevivente, atestando que, diante do perigo, ele recuara. Como promotor de Justiça entendi que o caminho era de julgar-se esse réu como plenamente imputável, por conveniência social e até para conveniência dele, porque solto colocaria em risco outras pessoas e fatalmente acabaria perecendo em razão da senda criminosa por ele eleita. (http://www.tribunadodireito.com.br).

Além dos serial killers, a polícia norte-americana costuma ainda empregar o termo mass-murderer, para descrever o indivíduo que mata pelo menos quatro pessoas, sem grande seletividade de vítimas e, em geral, no mesmo local. O caso da Virgínia Tech, nos EUA, seria um exemplo clássico. Nessa universidade, o aluno sul-coreano Cho Seung-hui matou 32 pessoas, enviando, pouco antes de se matar, vários vídeos pessoais à rede de TV NBC, em que acusava um genérico “vocês” de ser a causa de seus atos:

Vocês tiveram 100 bilhões de chances de evitar este dia, mas decidiram derramar o meu sangue. Vocês me encurralaram e só me deixaram uma opção. A decisão foi de vocês. Agora vocês têm sangue em suas mãos e nunca vão conseguir limpá-las.

Outra expressão utilizada para descrever assassinos de repetição com motivação aparentemente desconhecida é spree killer (matador impulsivo), relativo àqueles homicidas que saem por aí fazendo vítimas ao acaso, sem qualquer planejamento, atingindo aqueles infelizes que estavam na hora e local errados. O tipo foi criado para aplicar-se aquela realidade, norte-americana por excelência, do sujeito que, da janela de seu carro em movimento, dispara contra as pessoas que encontra pelo caminho. No caso do spree killer a vítima pode ser qualquer um, em qualquer lugar, sua seleção ocorre por mera casualidade.

O conto do escritor brasileiro Rubem Fonseca Passeios noturnos fornece um exemplo arrepiante desse tipo de criminoso. Na história, um bem-sucedido empresário retorna ao lar depois de mais um dia de trabalho estafante, bebe seus drinques e avisa a esposa que vai dar um passeio de carro pelas redondezas, para espairecer. Em sua caminhonete, ele circula por ruas desertas até encontrar um pedestre fácil de abater. Atropelava-o e, com muita tranqüilidade, volta para o lar. No dia seguinte, diverte-se com o noticiário que informa “mais um acidente e fuga, desta vez na rua X”. Considera então que seu dia anterior foi completo, enquanto este novo dia só se completará após seu passeio noturno.

O que se sabe sobre os serial killers?
Robert Ressler, no final dos anos 80, a partir de entrevistas com 36 matadores-seriais presos nos EUA, chegou a algumas generalizações sobre como tinha sido a infância desses criminosos:
82% tinham sido masturbadores compulsivos;
71% viveram em grande isolamento;
67% eram tidos como rebeldes;
67% tinham pesadelos constantes;
54% foram especialmente cruéis com crianças;
36% dirigiam forte crueldade contra animais.


Apesar de ser a maior sondagem direta de supostos serial killers, a pesquisa de Ressler apresenta os problemas comuns aos levantamentos feitos a partir de encarcerados. Primeiro, toma como amostra representativa do tipo (no caso serial killer) apenas aqueles que foram condenados pelo sistema judicial, cujos critérios de seleção de quem será encarcerado como matador serial constituem antes um processo político de convencimento social – com seus mecanismos implícitos e explícitos de criminalização - do que um processo de rigor epistemológico. Segundo, por isso mesmo é difícil saber se aqueles assassinos representam, de fato, uma categoria com alguma homogeneidade, a ponto de permitir comparações. Terceiro, trata-se de uma amostra significativa? Ou seja, suponhamos que esses 36 sejam de fato matadores seriais, quantos existem aproximadamente, não encarcerados, no universo dos matadores seriais para sabermos se o fato de, por exemplo, 71% terem vivido em isolamento ser um dado estatisticamente correlacionado ao tipo, ou um acidente de pesquisa? Quarto, apesar de a maioria deles ser réu confesso de muitos crimes, grande parte dessas confissões se deu depois de já ter sido decidido que pegariam a pena máxima, o que facilita, por vários motivos, a assunção de novos crimes, que dão notoriedade ao criminoso, sem lhe acarretar acirramento de punições.


Outro estudo policial comumente citado sobre o tema serial killers é o da polícia da Califórnia, cujo resumo tipológico aponta o seguinte:
Sexo: masculino;
Idade: entre 25 e 30 anos;
Cor: em geral branca;
Classe social: de todas as classes;
Inteligência: variável;
Vítimas: de forma geral são da mesma "raça" que o assassino e são dele desconhecidas (ou seja: nunca o prejudicaram pessoalmente). É comum, em alguns casos, que as vítimas representem tipos considerados pelo assassino como "imorais" (prostitutas, homossexuais), tendo ele a "missão" de "limpar" o mundo dessa presença.


Esses dados são meras sínteses estatísticas dos casos catalogados pela polícia da Califórnia. Se possuem alguma utilidade, será a de descartar alguns preconceitos freqüentemente associados a esse tipo de criminoso (em mito, feitos por pessoas com inteligência acima da média/ que fogem ao padrão típico dos criminosos violentos porque são predominantemente cometidos por pessoas acima dos 30 anos etc.).

A psiquiatria contra-ataca
Em termos psiquiátricos, o termo mais utilizado para se referir a pessoas que desrespeitam sistematicamente os direitos alheios é sociopatia, por muitos substituído pela expressão Distúrbio de Personalidade Anti-social (DPA). Os critérios para definir uma pessoa portadora de DPA não são, como nos critérios policiais para serial killers, o número de crimes cometidos, mas um padrão de comportamento relativamente estável, marcado por características como:
Comportamento invasivo e desrespeito pelos direitos dos outros;
Egocentrismo patológico;
Desconsideração pelo sofrimento alheio, incapacidade de empatia;
Dissimulação recorrente;
Grande tendência de racionalizarem seus atos anti-sociais: “Se tivessem me tratado bem, não teria matado...”;
Incapacidade de aprenderem pelo sofrimento, o que inviabilizaria sua punição em termos tradicionais;
Ausência significativa de remorso.

Acredita-se que em torno de 4% da população mundial sofra de DPA, em graus variáveis. As mulheres seriam, em tese, mais refratárias a tal diagnóstico, mas há que se destacar que o DPA foi construído justamente para classificar um padrão de agressividade masculina (agressão ativa/ violência), enquanto que o padrão de agressividade feminina costuma ser menos físico (assassinatos, lesões) e mais simbólico (ignorância sistemática de alguém, afronta verbal, afrontas à honra). Isso talvez explique por que apenas 1% das mulheres seriam portadoras de algum grau de DPA. Menores de 18 anos não recebem diagnóstico de DPA pois, por definição, essa classificação só se dirige a adultos – o que não significa que certos menores não possam apresentar todas as características de um portador de DPA em grau máximo. Apenas, por cautela humanista, evita-se classificar o menor de forma tão forte e precoce. Igualmente têm sido sugeridos cuidados com as variáveis classe social e cultura ao se diagnosticar casos de DPA, pois em muitos lugares, situações e formas de vida, uma boa dose de agressividade e capacidade de dissimulação são requeridas como estratégia de sobrevivência; portanto, o contexto de onde provém o paciente deve ser parte integrante de seu diagnóstico. Num ambiente onde os outros assaltam com demasiada constância os direitos e espaços alheios, é compreensível que esses alheios se tornem reativamente agressivos e dissimuladores, que pensem em si primeiro, que se sintam vítimas quando agridem. Mas, os graus de agressão notórios, como os perpetrados pelos ditos serial killers seriam de difícil compreensão ainda mesmo neste contexto.

O monstro do espelho
Como se vê, as classificações espetaculares das policias servem a roteiros cinematográficos, enchem nossa mente de medo, reacendem fantasias de pavor, e nos fazem valorizar, ainda mais, o trabalho da polícia aos moldes tradicionais: caçadores de monstros.
No entanto, é difícil negar que, não raras vezes, no plano prático, a “psicologia de polícia” é de extrema utilidade. Anos e anos trocando tiros com todo tipo de pessoas, numa profissão em que o processo de seleção natural ainda está muito próximo dos tempos ancestrais – falhou, morreu -deve ter depurado a inteligência das organizações policiais, a ponto de que seus modelos de compreensão e intervenção, em horas de crise, mesmo com todos os seus lugares-comuns, tenham se tornado extremamente funcionais. Certa vez perguntei a um conhecido psiquiatra das condutas agressivas sobre o que fazer diante de um tomador de refém, sobre como ele encaminharia o processo de negociação e coisas do gênero. Ele respondeu sem peias: “Eu chamaria o negociador da polícia.”
Já as classificações psiquiátricas na medida em que tentam fugir de generalizações estereotipadas, que se enchem de cautela, têm servido como poderoso instrumento de compreensão humana, de superação de preconceitos, na medida em que mostram que a diferença entre o monstro e o médico é apenas de grau, e não de essência. Por isso, todo médico ligado à violência, todo criminólogo, e também todo policial, deveria ter gravado nas paredes de seu cérebro a advertência de Nietzsche: “Não enfrentes monstros sob pena de te tornares um deles, e se contemplas o abismo, a ti o abismo também contempla”. Serial killer, sociopatas, mass-murderer, spree killers, tanto quanto os ditos santos e sujeitos éticos são, de alguma forma, espelhos de nossa própria alma humana.

2 comentários:

Anônimo disse...

você tá se tornando meu escritos favorito. Bjs. F.

Anônimo disse...

Genial.

Ananda