14.12.06

EDUKATORS e a banalização do mal

Professor Sandro Sell


O filme Edukators, os educadores (2004), de Hans Weingartner, dá uma nova versão à velha questão ética acerca dos limites ao acúmulo de bens supérfluos num mundo de escassez. Pode-se possuir bens ilimitadamente desde que o meio empregado na sua obtenção seja legítimo? O fato de haver outras pessoas que não possuem sequer o mínimo existencial não deve ser considerado um problema moral do grande acumulador, mas apenas um resultado mecânico das regras do sistema? E mais: quais os meios legítimos de enriquecimento: Trabalho? Talento? Sorte? Herança? Se o enriquecimento resultar de tais meios pode-se ser dono de tudo e ainda merecer aplausos por isso? Ou as regras do jogo de acumulação capitalista não passam de maneiras de ocultar a ganância desmedida e criminosa de alguns? Edukators não pretende responder essas questões, mas apresenta uma versão vívida e apaixonada de todas elas.

No filme, Jule, uma jovem garçonete, vive arrasada por ter que arcar com uma conta de quase 100 mil euros, em favor do ricaço Hardenberg, cuja Mercedes ela, involuntariamente, destruiu num banal acidente de trânsito. Para ele, a conta representa muito pouco; para ela, a dívida a impede de pagar o aluguel da casa em que mora, de se divertir, ou de atingir seu sonho de ser professora. Ela precisa de oito anos de trabalho duro para saldar a dívida contraída em cinco segundos de distração. Pelas regras do jogo, Jule deve transferir dinheiro sacrificando seu essencial para garantir o supérfluo de sua “vítima”. Há justiça nisso?

Hardenberg tem a lei a seu favor: Dirigia calmamente à frente de Jule, que não o viu frear e por isso entrou na traseira da Mercedes. Tudo bem, o tribunal reconheceu que ela foi a causadora. Mas a causadora de quê? De um acidente de carros? Não, se fosse isso, ela até que poderia arcar com as despesas. Ela causou foi um acidente em uma Mercedes! Não entendeu a diferença? Então, parabéns: você não teve o azar de Jule. A questão primeira que se coloca é: quem paga o custo-ostentação daquele que decide comprar um carro, digamos, 10 vezes mais caro do que a média dos que circulam nas estradas? Eu? Você? Jule?

A decisão de comprar a Mercedes foi só de Hardenberg, mas os custos de sua compra oneram direta ou indiretamente muitos outros. É sabido que quando o número de automóveis de luxo que circula numa cidade cresce, o valor que os demais precisam desembolsar para segurarem seus próprios e humildes carros, em face de prejuízos contra terceiros, também aumenta. Enquanto Hardenberg curte sua jóia sobre rodas, os demais, sem curti-la, transformam em pagamento às seguradoras o temor que têm de estarem no lugar de Jule. Por que ela não fora obrigada apenas a ressarcir um carro normal (avaliado pela média dos automóveis em circulação)? Por que ela teve que indenizar “aquele” carro? Porque o sistema em que ela vive pressupõe uma igualdade abstrata entre todos os envolvidos num acidente, qualquer um poderia ser o dono daquela Mercedes, então bateu, levou. Na prática, isso representa um acréscimo à liberdade dos mais ricos: estes podem ter menos prudência ao dirigir, porque seus seguros são bons e o custo comparativo do veículo alheio é irrisório, enquanto os mais pobres assustam-se só com a possibilidade de, em dia de chuva e neblina, terem pela frente a máquina dos sonhos de Hardenberg.

Jule está nessa situação quando descobre que seu namorado (Peter) e seu amigo (Jan) são os edukators: jovens que invadem a casa de milionários, enquanto estes estão ausentes, desarrumam os móveis e deixam bilhetes como: “Você tem dinheiro demais” ou “Seus dias de fartura estão com os dias contados”. Com isso eles pretendem abalar a noção de segurança dos muito ricos, mostrando que sua ostentação está sob vigilância. Sabendo disso, Jule insiste que Jan visite com ela a casa de Hardenberg na condição de edukators. Relutante, Jan acaba cedendo. Resultado: ela esquece o celular na casa do ricaço. Quando voltam para pegá-lo, Hardenberg os encontra e reconhece Jule. O que fazer? Com a ajuda de Peter, seqüestram o dono da casa.

Tudo o que os três edukators queriam era se livrar da polícia, mas como? Matar o ricaço, nem pensar. Eles não são assassinos. Nem tampouco querem pedir resgate, como se fossem criminosos seqüestradores. O que fazer? Levam-no para uma casa de campo onde esperam por alguma idéia que os tire da enrascada. Ter que passar dias com aquele sujeito deve ser asqueroso. Mas, ao contrário, e aí está uma situação que nossos edukators não contavam: o malvado Hardenberg se mostra gentil e compreensivo. Joga cartas, conversa e até fuma maconha com seus seqüestradores.

É que na sua Mercedes, ou na sua mansão, Hardenberg representava o próprio mal, a versão sobre pernas da raça de exploradores dos mais pobres. Mas ali, abatido e gentil ele parecia uma pessoa comum. Isso coloca os edukators em situação semelhante à vivenciada pela filósofa Hannah Arendt diante de Eichmann. Quando este, que fora um dos arquitetos do extermínio em massa dos judeus, foi à julgamento, esperava-se que o tribunal revelasse um monstro, um facínora, mas o que foi revelado? Uma pessoa terrivelmente comum, um funcionariozinho banal e obstinado, que gostava de cumprir bem o seu serviço, fosse carimbando papéis ou eliminado pessoas. Era triste descobrir que o malvado Eichmann não era sequer um demônio, mas apenas um maldito cumpridor de regras, um burocrata da morte, que não agia por um ódio visceral aos judeus, mas com indiferença. Tanto Arendt, diante de Eichmann, quanto os edukators diante de Hardenberg descobriram que o problema não era simplesmente de maldade, mas de indiferença em relação à prática do mal. Hardenberg não parecia odiar os mais pobres, ele simplesmente não se importava com eles. É assim que quando Jule pergunta se ele sabia o que a dívida do carro representava para a vida dela, ele respondeu com honesta convicção: “Eu de fato nem dei importância a isso. Entreguei o caso ao meu advogado e só”.

Em outros momentos, o personagem do seqüestrado representa uma defesa eloqüente dos axiomas do jogo capitalista, de exploração sem culpa. Estes axiomas são: 1. Todos têm as mesmas oportunidades; 2. alguns aproveitam tais oportunidades melhor do que outros, fazendo melhor uso de sua inteligência, capacidade de trabalho e senso de oportunidade; 3. Esse uso diferenciado de oportunidades iguais gera a desigualdade em favor dos mais talentosos; 4. Mas também beneficia os demais, porque é recompensando regiamente os mais talentosos que se os mantêm motivados a criarem coisas, como tecnologia, medicamentos ou automóveis Mercedes que, em tese, servirão a todos; 5. Os mais pobres são, sobretudo, vítimas de si mesmos, por não serem competitivos à altura do jogo capitalista; 6. Não há culpados nem inocentes, apenas ganhadores e perdedores, como em qualquer outro jogo.

A transcrição do diálogo abaixo, entre os edukators e Hardenberg, é esclarecedora:

Jule: Chá?
Hardenberg: Obrigado.
Jan: Quanto é que você ganha por ano?
Hardenberg: 200 mil euros, mais ou menos.
Jule: 3,4 milhões, segundo a revista...
Jan: Não se sente culpado? Destruir a vida dela por um carro que você pode trocar a cada mês? Por quê?
Hardenberg: Admito, eu deveria ter prestado mais atenção aos demais envolvidos... Eu estava estressado, lamento muito.
Jule: Quantas horas por dia você trabalha?
Hardenberg: Treze, quatorze horas, até mais.
Jule: E o que você faz com tanto dinheiro? Acumula coisas? Coisas grandes e caras? Carros, iates, mansões... um monte de coisas para poder dizer “eu sou o macho alfa”...Eu não vejo outra razão. Você não tem nem tempo para curtir o seu iate. E por que você sempre quer mais?
Hardenberg. Vivemos numa democracia. Não devo explicações sobre os meus bens, eu paguei por eles.
Jan: Errado. Vivemos numa ditadura capitalista.
Hardenberg. É mesmo?
Jan: Você roubou tudo o que possui.
Hardenberg. Eu posso bancar muito mais coisas porque trabalho mais, eu tive as idéias certas na hora certa, além disso eu não sou o único que aproveitou as chances... e na vida todos têm chances iguais, a verdade é essa.
Jule: Ele daria um ótimo político, não é? No sudeste da Ásia um monte de gente trabalha até 14 horas por dia e eles não têm mansões, ganham 30 euros por mês... também podem ter boas idéias, mas eles não podem nem pagar o ônibus para irem à cidade vizinha.
Hardenberg: Desculpe por eu não ter nascido na Ásia
Jule: Mas ainda pode tornar suportável a vida lá. O Primeiro Mundo perdoaria a dívida do Terceiro Mundo, é só 0,01% do nosso PIB!
Hardenberg: Seria o colapso do sistema financeiro mundial.
Jule: Quer que eles fiquem pobres para poder ter controle sobre eles, forçá-los a vender os seus produtos a preços ridículos...
Hardenberg: Como é que você sabe?
Jan: Resposta simples: você não cancelou a dívida da Jule.
Hardenberg: Isso é absurdo!
Jan: Não, é a regra básica do sistema: chupar todos até o bagaço. Pra que não possam mais reagir.
Hardenberg. Não é assim... Claro que precisamos melhorar as coisas...mas o sistema não vai mudar.
Jan: Por que não?
Hardenberg: Porque é da natureza humana querer ser mais que os demais... todo grupo logo elege um líder e a maioria só fica feliz quando compra uma coisa nova.
Jan: Feliz? Acha que eles são felizes, Hardenberg? Abra os olhos. Sai do carro da sua empresa e ande nas ruas. Eles parecem felizes ou mais assustados? Veja sua sala de estar, todos estão grudados naquela TV, ouvindo zumbis chiques falando de uma felicidade perdida. Dirija pela cidade. Verá a imundice, a superpopulação. As massas em lojas de departamentos subindo e descendo escadas-rolantes feito robôs... Ninguém conhece ninguém. Acham que a felicidade está a seu alcance, mas ela é inalcançável. Porque você a roubou e sabe muito bem disso.... Mas tenho uma notícia para você, executivo: o sistema superaqueceu: somos só os precursores, a sua era está para acabar. Enquanto você surfa na tecnologia os outros sentem ódio. Como as crianças das favelas vendo filmes de ação americanos. Isso é só o começo, nós vamos ver. Há mais casos de insanidade, serial killers, almas destruídas, violência gratuita. Não pode sedar todos eles com games e shoppings... e os antidepressivos não vão funcionar para sempre... o povo tá cheio desse seu sistema maldito e hipócrita.
Hardenberg: Tá bom. Admito que há alguma verdade no que disse, mas sou o bode expiatório errado. Eu jogo o jogo. Mas não fui eu que fiz as regras desse jogo.
Peter: Não importa quem inventou a arma, só quem puxa o gatilho.
Jule: Não é tão simples e você não pode se eximir.

No diálogo, Hardenberg representa não só jogador capitalista, mas o sujeito que acredita nas regras do jogo: trabalhou, aproveitou oportunidades, triunfou e agora tem o direito de curtir. E representando a alma mercantil do capitalismo, ele não é contra nada: revoluções, contracultura, oposições, desde que seus símbolos, roupas e armas possam ser vendidos em shoppings centers. Em momento sentimental, ele até relembra que também já sonhou com um mundo diferente: “Há 30 anos, devo confessar que teríamos adorado pegar um magnata como eu, e hoje estou aqui... É curioso. Não pretendo bajular vocês, não acho certo o que estão fazendo comigo, mas o seu idealismo tem o meu respeito.” Da mesma forma que as grandes gravadoras contratam artistas de rap para “afrontar” a sociedade, que grifes internacionais colocam pobres na passarela, para mostrar que a moda têm sensibilidade social, ou que o Fantástico mostra o quanto de charme há nas meninas da favela, Hardenberg respeita o idealismo que anima as críticas a seu modo de vida. Prova cabal de que, sob o capitalismo, não há ideal que não tenha lugar, desde que se dispa de todo radicalismo (de sua raiz, de sua essência) e transforme-se numa versão inofensiva, boutiquizada e estetizada, para ajudar a diversificar as vitrines e os gostos.

Mas o que fazer com Hardenberg? É lícito matar o tirano? Eis uma pergunta clássica no mundo da ética. Maquiavel apresentava uma solução utilitarista à questão: matar o tirano pode ser uma boa solução se for essa a condição de manutenção da paz do Estado e da segurança de seu povo. Portanto, matar apenas na medida em que os benefícios superem os malefícios da legitimação da prática do assassínio de tiranos. Isso talvez valesse à época de Maquiavel, em que monarcas, sentados em tronos, de fato governavam. Mas, no sistema capitalista atual, quem é o tirano? Se Hardenberg for morto há algum abalo ao sistema? Não. Assim como o sistema se mantém intacto se forem mortos Bill Gates, Antônio Ermírio de Moraes ou George Bush. Como ensinou Foucault, a característica básica do poder na modernidade é que ele saiu do palco: ele não está mais no trono, onde poderia ser facilmente alvejado, mas capilarizado, distribuído por praticamente todos os lugares e pessoas da sociedade. O filósofo francês Felix Guatarri chegava a dizer que até nosso inconsciente havia se tornado uma espécie de terminal de computador capitalista, somos programados para sentirmos e processamos informações no ritmo do mercado. No capitalismo, o poder é em rede: derrube-se um líder e a rede se refaz com uma rapidez espantosa. Isso porque, de certa forma, somos todos Hardenbergs, Gattes ou Bushs, podemos até variar um pouquinho no estilo, mas no essencial estamos todos capacitados a assumir o lugar do tirano.

Então o que fazer? Difícil saber. No filme, os garotos optaram por devolver seu prisioneiro ao lar. E este, em sinal de agradecimento, não só promete não comunicar o fato a polícia, como perdoa a dívida de Jule. Parece que a educação na marra funcionara, Hardenberg caíra em si, deixaria de ser o porco capitalista em que a vida – sempre sem culpa pessoal - o convertera. No filme chega-se até a imaginar um inexistente abraço entre ele e Jule, seguido de um aperto na mão dos rapazes. Todos apresentam aquela cara de quem aprendeu uma grande lição. Os edukators entram no carro e o ricaço na mansão. Silêncio e reflexão.

Na manhã seguinte, já com a “cabeça no lugar”, o executivo volta à velha rotina mental. A polícia bate à porta dos edukators que, sabiamente descrentes na bondade humana, já haviam deixado o país. Na parede do prédio em que moravam um recado a Hardenberg, não um xingamento, não uma afronta, apenas um bilhete profético e constatador: “Certas pessoas nunca mudam”. Bilhete sem ódio, sem revanchismo, apenas com indiferença. E é dessa forma que os edukators mostram que aprenderam sua mais dura lição, a mesma de Hannah Arendt: o mal na atualidade não é nem grandioso, nem sequer dado a perversidades, é apenas daninho, ordinário, repetitivo e quase sem culpa.


Ficha Técnica do Filme
Título Original: Die Fetten Jahre Sind Vorbei
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 126 minutos
Ano de Lançamento (Alemanha): 2004
Site Oficial: www.theedukators.com
Estúdio: Y3 Film / arte / Coop 99 / Südwestdeutscher Rundfunk
Distribuição: Celluloid Dreams / IFC Films / Lumière
Direção: Hans Weingartner
Roteiro: Katharina Held e Hans Weintgartner
Produção: Antonin Svoboda e Hans Weintgartner
Música: Andreas Wodraschke
Fotografia: Daniela Knapp e Matthias Schellenberg
Edição: Dirk Oetelshoven e Andreas Wodraschke

Elenco
Daniel Brühl (Jan)
Julia Jentsch (Jule)
Stipe Erceg (Peter)
Burghart Klaubner (Hardenberg)
Claudio Caolo (Paolo)
Laura Schmidt
Sebastian Butz
Petra Zieser
Peer Martiny

10.12.06

A razão e as paixões

Professor Sandro Sell


O cavalo e seu cocheiro

Como possível guia da existência, os seres humanos possuem o atributo da razão, essa capacidade de orientar sua conduta de forma planejada, calculada e compreensivelmente adequada aos fins a que se propõem. A posse da razão nos sugere a idéia de que, com prudência e discernimento, podemos controlar as situações em que nos encontramos, garantindo que delas surjam as melhores resultantes possíveis. Na imagem platônica, a razão é o experiente cocheiro a guiar o xucro cavalo dos impulsos imediatistas. Por isso é que se pode dizer que uma vida racionalmente guiada é uma vida protegida daquela parte do infortúnio humano cuja causa só podemos atribuir a nós próprios. Nesse sentido, a razão é uma defesa contra o acaso preguiçoso, daqueles que se dizem vítimas das circunstâncias quando o que lhes trouxe a ruína foi uma simples falta de planejamento e autocontrole.

Quem ainda não foi exortado a “ser racional”?, a agir “com racionalidade?”. É claro que o fato de precisarmos ser lembrados de que é melhor agirmos dessa forma já indica que o uso da razão não é tão natural quanto se supõe. Pela freqüência com que complicamos nossa existência podemos até supor que a razão é de utilização apenas excepcional em nossas vidas. No cotidiano, os impulsos mais imediatos tendem a prevalecer sobre os planejamentos racionais, o cavalo comanda o cocheiro. É assim que, em febres de consumismo, as pessoas levam para casa o que não conseguirão pagar; embriagam-se e dirigem, confiando na imagem do santo que penduraram no espelho do carro; têm relações sexuais sem proteção, acreditando que “o que tiver que ser será”. Ao mesmo tempo, falta-lhes força para seguir planos racionalmente traçados: concluir o curso de línguas, manter a dieta ou tornar-se mais paciente. Parece que, ao final das contas, a razão serve mesmo é para fazer os indivíduos sentirem-se culpados por não conseguirem ser aquilo que, em momentos de extrema calmaria do cavalo, o cocheiro lhes propôs.

A razão fracassa com tanta freqüência porque não é nosso único guia. O ser humano é um ser passional tanto quanto é um ser racional. Se a razão pretende nos conduzir para as melhores resultantes de vida possíveis, as paixões nos arrastam para caminhos que a própria razão desconhece. Por paixões estamos aqui nos referindo aos diversos tipos de obstinações (seja de pensamento, sentimento ou conduta) que nos atraem para algo, com uma pressa, maneira ou intensidade desautorizadas pela razão. A paixão é, sobretudo, produtora de parcialidade, exagera na atenção que concede a um único ponto deixando os outros a descoberto, motivo pelo qual ela é tão freqüentemente associada a uma espécie de vício. Se a complexidade é a lei da vida, concentrar-se em demasia no objeto da paixão é viver de forma desequilibrada e perigosa. Sim, perigosa, porque em desaparecendo esse objeto de paixão, desaparecerá também o sentido da existência do apaixonado. Ébrios sem bebida, dependentes sem droga, amantes sem amados, consumistas sem dinheiro, exemplos de vida em desespero.

Dando um destaque todo especial ao efeito equilibrador da razão sobre a vida de cada um, os moralistas sociais sempre temeram as paixões, por acreditarem que elas são os grandes destruidores do homem enquanto ser colaborativo da sociedade. Teme-se que, sob o império da paixão, o trabalhador deixe de ser obediente ao patrão; o casto, de ser obediente aos seus votos; e o soldado, de ser obediente à pátria, pois que o apaixonado só reconhece um senhor, seu objeto passional. Daí o ancestral controle social das fontes habituais de paixão: sexo, drogas e poder. Esses três elementos não têm autorização para circularem livremente, mas apenas quando acompanhados por rituais que mostrem a excepcionalidade de seu emprego, a coleira que os prende.

É assim que o sexo deve ser feito às escondidas, de preferência a noite, sendo considerado grosseiro perguntar a quantas anda a vida sexual alheia ou exibir suas peripécias sensuais. E duas pessoas correriam mais risco de serem vítimas de linchamento popular se estivessem em uma praça praticando sexo do que se estivessem perigosamente duelando entre si. Pois o duelo não é contagioso como o sexo. O controle sobre o sexo é o reflexo do medo social de que ele seja reconhecido como tão bom que ocupe tempo demasiado das pessoas, que, então deixariam de trabalhar, estudar e contribuir socialmente. A mesma interdição que hoje sofrem as drogas, sofreu a prática da masturbação: prazeres que não trazem benefícios sociais e são de fácil contágio fazem tremer as bases da sociedade. A imagem de que todo drogado é um delinqüente em potencial se equivale em simplismo à imagem feita, antigamente, do adolescente masturbador como um degenerado. Prazeres poderosos e de fácil obtenção devem ser estritamente regulados. Sua possibilidade de existência se resume à clandestinidade ou a momentos rituais, de quebra coletivamente aceita das regras sociais: só há carnaval porque há uma quarta-feira-de-cinzas já previamente estipulada. A sociedade exerce no coletivo aquilo que se acredita ser, individualmente, a função da razão: evitar que a paixão transborde a existência, resumindo-a à perseguição de caprichos pessoais.

Doentes de paixão

Entre os gregos, as paixões foram vistas como algo de que se sofria, um padecimento moral e físico. É assim que se compreende que da mesma palavra grega, “phatos”, haja derivado os vocábulos passional e patologia. Paixão não se tem; paixão se sofre. Em termos religiosos, a paixão era uma espécie de possessão divina, uma forma de os jocosos deuses do Olimpo perturbarem a vida dos pobres mortais. Quem nunca soube da vida toda certinha de alguém que ao defrontar-se com uma enorme paixão caiu como um castelo de cartas? E que esse mesmo alguém, anos mais tarde, refere-se ao período em que se “libertou” daquela paixão, como o período em que se “curou”? Enquanto ele estava doente, nenhum dos apelos de seus amigos à razão eram suficientes. A paixão seria como um daqueles vírus sem vacina ou remédio: ao contrai-lo tudo o que se pode fazer é esperar o fim natural de seu ciclo, pois que o uso da razão lhe é inócuo.

O cristianismo herdou essa má-vontade grega para com as paixões. Passou a considerá-las vícios de caráter, associando-as a pecados, num rol que ia da luxúria à gula. Para o cristão, uma vida racional seria aquela que, mediante a eliminação das paixões, levasse o homem a Deus. Jesus havia dado a fórmula do cálculo de uma vida racional por excelência: “De que adianta ao homem ganhar o mundo e perder a sua alma?” Aquele que acreditava em Deus e não extirpava suas paixões fazia o pior negócio do mundo: trocaria a eternidade bem-aventurada por uns poucos anos de sucesso entre humanos. Sic transit gloria mundi. Daí, o mestre do Evangelho poder dizer com grande convicção “Perdoai-vos, eles não sabem o que fazem”. De fato, só quem não conhecesse as regras do novo jogo (que era, sobretudo, a de um cálculo de rendimentos celestes), ou fosse um completo estúpido, cederia às paixões, comprometendo os dividendos eternos de uma vida regrada.

Com relação à paixão relacionada ao sexo e ao amor, a posição cristã foi incisiva. Os santos eram castos, ou assim se tornavam ao serem convertidos, como no caso de Santo Agostinho. Melhor seria que se imitassem os santos, mas como isso não era possível (sobretudo em termos demográficos), um matrimônio estável era a solução. Se as paixões amorosas se caracterizam pela inconstância, pela troca do objeto de afeto, devido ao esgotamento das forças ou da frustração das inflacionadas expectativas dos amantes, o casamento cristão era o inverso dessa tendência: indissolúvel, exclusivista e cercado de inúmeros deveres que arrefeceriam qualquer paixão exacerbada. Se na Idade Antiga e Média, o casar-se por amor ou desejo recíproco já não era a regra, o casamento aos moldes cristãos estava aí para garantir que, quando tal ocorresse, esse “acidente” seria logo corrigido pelo dever da moderação sexual, da procriação em larga escala e pela necessidade de vigiar não apenas ações e palavras, mas o próprio pensamento. O casamento cristão é, sobretudo, uma tecnologia moral antipaixão.

Enquanto no mercado oficial das condutas, a paixão tinha circulação proibida, no mercado paralelo valia qualquer coisa para possui-la. É assim, que, em plena Idade Média, vemos o “ressurgiumento” da paixão, na sua versão galante. Na medida em que casamento cristão exortava a renúncia, a fidelidade, a indissolubilidade, o cavaleiro medieval tornava-se o símbolo da paixão enquanto arte. Sua astúcia em cortejar damas proibidas, arriscando a vida por amores inconseqüentes, era uma virtude pagã na mesma medida em que era um vício cristão. Nas cortes, a hipocrisia foi a fórmula para lidar com essa dualidade: cerimônias de casamento cada vez mais pomposas, com a multiplicação das testemunhas ao solene ato, disfarçavam a circulação cada vez mais corrente da infidelidade elevada à categoria de arte.

Séculos mais tarde, indignados com o racionalidade rígida do Iluminismo, membros do movimento romântico convertem a paixão no próprio sentido da vida. Alguns acreditam que só se vive bem quando se vive de forma apaixonada. Há, então, a criação de uma estética do sofrimento passional. As paixões nos levam à ruína, é verdade, mas a paixão, em particular a paixão amorosa, nos leva a um sofrimento que redime. A aventura de seguir seus caminhos tortuosos, o risco de ser devorado pelos dragões que a protegem, a convicção de que viver bem é descobrir uma paixão pela qual vale a pena viver ou morrer, tudo isso daria à mísera existência humana uma experiência de grandiosidade. Sob o desespero da razão, a paixão amorosa tornava-se, assim, a forma sublime do sofrimento humano, em síntese: o único que valia a pena.

Paixão e lucro

E as outras paixões, pela glória pessoal, pela riqueza, pelo poder? No geral, continuavam a receber a qualificação de condutas viciosas, indesejáveis, vis, o oposto da razão. Mas não por muito tempo. Numa verdadeira mudança de paradigma, começou a surgir por volta do século XVII um termo tido como o motivador por excelência da conduta humana: o interesse próprio. Formado por um amálgama de razão (de perseguir algo de forma planejada) com paixão (de querer algo obstinadamente), os interesses seriam logo louvados como o guia mais sensato da existência humana. O problema não estava, então, nas paixões, mas na forma irracional de guiá-las. Aceitou-se,até, que as paixões davam o impulso necessário ao progresso da vida humana (Hegel achava que uma vida sem paixão era uma vida imobilizada), mas justamente por serem de natureza impulsiva as paixões tendiam a sugerir caminhos ruinosos para a sua obtenção, e era por isso que precisavam ser guiadas pela razão: deixe que a paixão lhe dê o objeto de afeto (dinheiro, mulheres, glória), mas transfira à razão o modo de conquistá-los e, só assim, a fortuna lhe será estável. Em suma: nós não podemos ser guiados apenas pela razão (pois somos passionais), mas também não podemos ser guiados sem ela: descubra sua combinação ideal de paixão e razão (de interesse) e seja bem-sucedido.

Max Weber, na sua obra mais famosa (A Ética protestante e o espírito do capitalismo) enxergou no capitalista moderno essa junção venturosa de paixão e razão, de interesse, que o levava a acumular riquezas de forma segura e a gasta-la de forma excessivamente prudente. O capitalista queria mais e mais, só que não como seu antecessor, o aventureiro do ouro: se este conquistava de forma espetacular e esporádica (pilhagens, pirataria, caça a tesouros) e gastava de forma mais espetacular ainda (banquetes, bebedeiras e luxúria), o capitalista racional conquistava com método (investimentos contínuos, calculados) e gastava com excessiva discrição e prudência, já que ostentar - sobretudo entre os protestantes, os novos ricos da modernidade - seria prova cabal de um afastamento de Deus e de uma queda nas paixões, no mal sentido do termo.

O homem como ele é

O conceito de interesse nasceu da constatação, sobretudo a partir de Maquiavel, de que o homem é um ser mesquinho, egoísta, passional e que sempre o será. Por mais que a Igreja exortasse a humanidade a ser boa, não haveria jeito, o homem jamais superaria sua natureza. Ele era como aquele escorpião da fábula do lago, que após implorar que o sapo o atravessasse no rio caudaloso, sob a promessa de que não o envenenaria, ainda no meio do trajeto, pica o gentil anfíbio, que, moribundo, balbucia a seu ingrato passageiro: “Grande lucro! Agora eu morrerei envenenado e você afogado”. Ao que o escorpião teria resignadamente respondido: “Sinto muito, meu amigo, mas não posso trair minha natureza”. Por mais que o homem procurasse imitar Cristo em sua pureza, ele fracassaria: o veneno das paixões lhe era superior. Se o cristianismo queria algo da humanidade teria que se render a essa constatação, como fez o protestantismo com a questão do enriquecimento financeiro: ao invés de proibir os juros (à moda católica) apenas os regrou. Não havia como deixar o escorpião humano menos venenoso, apenas como moderar a freqüência de sua picada.

As concepções de homem da modernidade, de Maquiavel, Hobbes indo até Freud tiveram em comum o reconhecimento de que as paixões nos definem no mínimo tanto quanto a razão. A paixão não é assim, como pensavam os gregos, um vírus que nos é inoculado a partir de fora. As paixões estão em nós, como parte intrínseca do que somos. Podem variar seus objetos, aquilo a que nos apegamos, mas não o fato de que suas manifestações de parcialidade obstinada, mais dia menos dia, acabarão por nos render. A razão não é nosso único senhor, e viver enquanto humano é, em total desagrado à regra bíblica, equilibrar-se na função de serviçal de senhores contrapostos.

Ao contrário do que se pode pensar, reconhecer a força das paixões não é um problema apenas pessoal, mas o problema político por excelência. Se Maquiavel é tido como o pai da moderna política, enquanto ciência, é justamente porque ele estava preocupado em fundar um Estado não para o homem de boa-vontade do cristianismo, nem tampouco para o homem lógico criado pela razão, mas para o homem como ele é: astuto, estúpido, racional e apaixonado. O homem em sua inteireza e simplicidade. E se o mercado, com suas grifes e marcas, pode nos vender tantas adoráveis quinquilharias, que nos encarecem sobremaneira a vida, sem contribuir em nada com a funcionalidade da existência, é porque não fabrica seus produtos para a razão, mas nos delicia a partir de nossa carente passionalidade. Em resumo não só a política séria, quanto a economia bem-sucedida dão especial atenção às nossas paixões. Se o cidadão e o consumidor um dia forem plenamente racionais teremos que reinventar o mundo, correndo o risco de deixar para traz quase a totalidade dos sonhos que, por enquanto, enchem de sentido nossa precária existência.

27.11.06

Descontos sexuais: o lado não polêmico da inconstitucionalidade cotidiana

Professor Sandro Sell



Em 1997, o Grupo de Teatro Olodum, movido pela idéia de que os negros têm menos acesso à cultura, resolveu dar um desconto inusual: eles pagariam apenas 50% do valor do ingresso na peça Cabaré da raça. Um preço para brancos, outro, menor, para negros. Sob a acusação de atentar contra o Princípio da Igualdade (art. 5o. caput da CF), o Olodum cedeu, estendendo o desconto a todos os freqüentadores. Devido a essa atitude preventiva dos produtores do espetáculo, o Judiciário não chegou a se posicionar sobre o caso. Seria ilustrativo vê-lo fazendo, pois o princípio isonômico não é apenas um dos nossos fundamentos constitucionais: ele é a base do nosso sistema de direitos. Tal é o que entende, por exemplo, Celso Ribeiro Bastos quando salienta que o fato de o citado princípio estar localizado não num dos incisos, mas no próprio caput do artigo 5o da Constituição, o centro nevrálgico de nossas garantias e direitos, indica sua precedência axiológica em face dos demais princípios. A igualdade deveria ser, então, o fundamento de nossa ordem jurídico-social.

Não obstante, muitos fatos nos levam a crer que o princípio isonômico é sub-aproveitado enquanto corretivo de desigualdades que, por sua cotidianidade e aparência simpática, proliferam-se incólumes a questionamentos judiciais. Dar descontos e entradas livres a mulheres em bares e boates, presumir-lhes uma consumação mais baixa do que a masculina, utilizar a estratégia do “mulheres free” para atrair homens para casas noturnas, ofende o princípio isonômico? Qual a diferença em dar desconto por critérios raciais e dar descontos por critérios de sexo ou gênero? Talvez a diferença não seja de essência, mas de costume. Com efeito, o critério racial se nos apresenta como exótico, importado de países como os EUA e suas políticas de cotas, enquanto as nuances questionáveis das desigualações por gênero mostram-se corriqueiras e simpáticas demais – de inspiração cavalheirística – para ousarmos questionar seus eventuais problemas. Resistiria esse pretenso cavalheirismo a uma análise constitucional das desigualdades aceitáveis? Analisemos.

Dar descontos a negros, mas não a brancos, em espetáculos parece clara e consensualmente afrontar a ordem das desigualdades aceitáveis num Estado de direito. Basta lembrar que fazer o inverso, cobrar mais caro dos negros, seria uma atitude certamente tida como criminosamente racista. Mas as coisas não são tão simples quanto aparentam. Uma medida desigualitária será classificada como atentatória à isonomia mais pela motivação que a inspira do que pela diferenciação que efetivamente opera. Não são, certamente, motivações reprováveis que alimentam a criação de regimes diferenciados – cotas, descontos, vagas preferenciais - quando o objetivo de tais diferenciações é que, por meio delas, aqueles que são costumeiramente discriminados aproximem-se em possibilidades dos socialmente privilegiados. Cobrar menos impostos dos pobres, dar vagas preferenciais a idosos e a deficientes em estacionamentos, subsidiar a habitação e a alimentação dos miseráveis são exemplos de regimes desigualitários, mas não contrários à isonomia, já que seu objetivo final é, justamente, corrigir desigualdades factuais, distribuindo os bônus públicos de forma preferencial aos mais necessitados. A equação das diferenciações aceitáveis por nossa Constituição passa pela lógica de que a desigualação no antecedente (no regime diferenciador) deve provocar maior igualdade no conseqüente (no objetivo da diferenciação). Portanto, tratamentos desiguais só serão tolerados se tiverem por objetivo e conseqüência diminuir a distância inicialmente verificada entre as pessoas na sociedade. Esse é o motivo porque deficientes físicos podem ser contratados a partir de regimes especiais pela Administração Pública (art. 37, VIII, da CF). Toda diferença de tratamento deve servir para diminuir as diferenças sociais e jamais para perpetuá-las.

As polêmicas medidas de ação afirmativa, como as cotas para negros em universidades, seguem a mesma idéia de realização não ortodoxa do princípio da igualdade: desiguala-se brancos e negros no ingresso à universidade para que brancos e negros igualem-se mais facilmente em termos do número de egressos do nível superior. Se as cotas realmente funcionarão para corrigir as desigualdades raciais brasileiras, é questão polêmica e por nós já debatida exaustivamente em outro lugar , aqui o que interessa é salientar que a motivação igualitária das cotas as isentam de se constituírem em afronta ao princípio isonômico. Em sua intenção, as cotas pretendem materializar o objetivo constitucional da igualdade sonhada, mas ainda inexistente, entre negros e brancos. Na prática, as cotas, talvez, só sirvam para acirrar preconceitos raciais, mas, em tese, a desigualação que promovem é teleologicamente compatível com nossa ordem constitucional .

Entendido o norte interpretativo das desigualações possíveis, voltemos a polêmica de se fere ou não nosso ordenamento jurídico diferenciar positivamente as mulheres no ingresso a casas noturnas.

A igualdade entre homens e mulheres em nossa ordem constitucional poderia perfeitamente derivar do caput do artigo 5o: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...”, mas o legislador quis ser enfático e, já no primeiro inciso do citado artigo, complementou: “Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações nos termos dessa Constituição.” A expressão “nos termos dessa Constituição” tem sido entendida como significando que a desigualação entre homens e mulheres só poderia ser feita pela própria Carta Magna, que de fato o faz. A Constituição promove discriminações em favor das mulheres em três casos: licença-gestação superior à licença-paternidade (art. 7o, incisos XVIII e XIX); proteção específica ao trabalho da mulher (art. 7o, XX) e prazo mais curto para aposentadoria por tempo de serviço feminino (arts. 40 e 202, e suas especificações). Autores como Eliane Maciel salientam que tais casos são excepcionais, com fundamentação própria, e não podem servir como motivos de criação de novas diferenciações analógicas, já que é princípio básico de hermenêutica jurídica que as exceções devem ser interpretadas de modo estrito. Se assim for, a concessão de descontos privilegiadores às mulheres em casas noturnas afronta o princípio geral de igualdade constitucional e não se enquadra em nenhuma das exceções constitucionalmente elencadas.

Mas não é tão simples assim. Poderia haver, via ampliação teleológica, outros casos de diferenciação aceitáveis entre os sexos? Sim, lembremos que a norma da igualdade no artigo 5o caput e inciso primeiro possuem a natureza não de regra jurídica estrito senso - como aquelas que dizem clara e objetivamente o que deve ser feito - mas de princípios, isto é, de vetores de inspiração a criação e interpretação de normas infraconstitucionais. Uma regra jurídica costuma ter a estrutura do artigo: a licença-gestação será de 120 dias (art. 7o, XVIII, da CF). Quando uma regra jurídica não é clara, podemos criticar a técnica do legislador. Mas há normas jurídicas que não podem ser claras, pois não se destinam a orientações pontuais, mas são princípios que devem ser efetivados da melhor maneira dentro das possibilidades sociais. Um princípio constitucional não manda que se faça X, manda que X seja levado em consideração da forma mais ampla possível, desde que compatível com outros princípios igualmente constitucionais. Portanto a expressão “nos termos da Constituição” não é limitadora de outras diferenciações entre homens e mulheres, mas apenas de diferenciações que não tenham por objetivo final tornar mais igualitária a situação entre os dois sexos. Assim, o fato de não estar previsto na Constituição Federal, não torna de per si inconstitucional o desconto dado às mulheres em casa noturnas. O que o tornaria inconstitucional é se tal desconto não pudesse ser razoavelmente justificável dentro de uma teleologia da igualdade.

Já houve tempo em que se alegava que os citados princípios constitucionais dirigiam-se apenas ao Estado e ao legislador, mas não aos particulares, já que estes possuiriam maior grau de autonomia. Assim, um espetáculo público não poderia conceder descontos a mulheres, apenas por serem mulheres, mas uma empresa privada, sim. Mas, modernamente, como salienta Canotilho essa interpretação está superada. O princípio da igualdade vincula a todos: legislador, juízes, administradores públicos, empresas e pessoas físicas. A autonomia da vontade particular é, lembremos, residual, imperando apenas nos termos em que o ordenamento constitucional, guardião dos interesses sensíveis do Estado e da sociedade, permite. Assim, não há como justificar pelo direito de liberdade individual práticas que o ordenamento jurídico repudie. Resta saber é se os chamados descontos de natureza sexual incluem-se em tais práticas constitucionalmente repudiadas.

Quem paga a conta dos descontos dados às mulheres? As casas noturnas? Certamente que não. Na composição dos custos do estabelecimento, esses descontos são transferidos para os clientes integralmente pagantes: os homens. As casas noturnas oneram um sexo em benefício do outro. Repete-se aqui a regra geral dos subsídios: se alguém os recebe, outro alguém tem sua conta majorada. Certamente, muitos homens poderiam estar dispostos a subsidiar as mulheres em termos de ingressos e descontos. Mas pode-se presumir em grau absoluto tal disposição, transferindo-se a conta de um consumidor (mulher) a outro (homem)?

Os donos de casas noturnas poderiam alegar, então, que homens dão efetivamente mais gastos aos seus estabelecimentos. E que assim, não se estaria desigualando os sexos por mera conveniência, mas por fundamentos razoáveis: quem dá mais gasto, deve pagar mais. Se tal argumento correspondesse à verdade dos fatos, não haveria por que censurar o desconto dado às mulheres: elas dão menos ônus ao estabelecimento e, por isso – e não por serem mulheres – fazem jus a um bônus. O problema é que o maior gasto dado pelos homens é presumido. O Código de Defesa do Consumidor diz que quem consome tem o direito de saber, concretamente, o que está comprando, de pagar apenas pelo que usa, proibindo-se vendas casadas e coisas do gênero. Mulheres pagam menos consumação porque, por exemplo, bebem menos. Isso pode geralmente ser assim, mas o homem abstêmio deve ser forçado a arcar com a conta da mulher alcoólatra? Pela presunção das casas noturna, sim.

De fato o grande mote dos descontos preferenciais a mulheres é que as casas noturnas as utilizam como chamarizes de clientes homens. Esse é o objetivo básico da desigualação feita nos preços cobrados de homens e mulheres. Tal objetivo é compatível com nossa ordem constitucional? Certamente que não. A pretexto de conceder gentilezas às mulheres, perpetua-se a idéia de que estas podem ser utilizadas como objetos promocionais, subsidiadas, via descontos e tratamentos preferenciais, para atraírem clientes homens. Ora, quando a Constituição admite certas distinções entre homens e mulheres é sempre no sentido de aumentar a cidadania subjugada que a condição feminina historicamente amarga, e nunca para conceder regalias simpáticas, mas de cunho perpetuador da objetificação feminina.

Se há, e muitas há, mulheres que ganham menos que homens, que se criem descontos por faixa de renda; se há, e como há, mulheres que bebem menos que homens, definam-se melhor os critérios de consumação. Agora dar descontos preferenciais às mulheres porque estas atraem homens para as casas noturnas é mais do que ferir a ordem constitucional posta, é atentar contra a dignidade feminina.

O Olodum objetivava simplesmente facilitar o acesso de negros à cultura, dando-lhes descontos preferenciais. Nossos pruridos constitucionais imediatamente se manifestaram. Parecia uma afronta clara, claríssima, à isonomia. Mas, a rigor, não era. Era uma questão constitucionalmente polêmica, já que a intenção (o telos) da desigualação operada era a promoção final de uma maior igualdade entre as raças. Já o tratamento desigualitário favorescente às mulheres dados pelas casas noturnas não pode, como vimos, apelar a nenhuma causa nobre de maior igualação final entre os sexos. Desiguala-se para auferir lucros e ponto. Desamparada por um objetivo constitucionalmente razoável, tal distinção deveria provocar em nós uma espécie de repulsa constitucional. Mas não provoca. E enquanto condenamos a excepcionalidade de medidas como a do Olodum, aceitamos, passivos, as desigualdades cotidianas.


Bibliografia

BASTOS, celso Ribeiro. Princípio da igualdade. In: BASTOS, Celso R. e MARTINS, Ives Granda. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1989.
CANOTILHO, José J. G. Direito Constitucional. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2004.
DWORKIN, Ronald. Los derechos em serio. Barcelona: Ariel Derecho, 1989.
MACIEL, Eliane C. B. de Almeida. A igualdade entre os sexos na Constituição de 1988. Disponível em http://www.senado.gov.br/conleg/artigos/especiais/AigualdadeEntreosSexos/ . Acesso em 21 de agosto de 2006.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: Malheiros, 1997.
SELL, Sandro César. Ação afirmativa e democracia racial: uma introdução ao debate no Brasil. Florianópolis: Funjab/UFSC, 1992.
SELL, Sandro César. Comportamento social e anti-social humano. Florianópolis: Ijuris, 2006.
SELL, Sandro César. Existem raças humanas? Disponível em http://sandrosell.blogspot.com/
SINGER, Peter. A Companion to ethics. Balckwell Companion to Philosophy. Oxford: Blackwell Publications, 1995.

Professor Sandro Sell

1.11.06

A vingança dos presos não serve à sociedade

Professor Sandro Sell

A vingança dos presos não serve à sociedade

É de conhecimento geral o destino que, nas prisões brasileiras, é reservado àqueles que cometeram certos crimes infamantes. Criminosos que molestaram sexualmente crianças ou assassinaram sua progenitora estão, amiúde, condenados à morte pelos colegas de prisão. A sociedade chega a dizer que os citados crimes são intoleráveis na “ética dos presos”. Mas tal conclusão deriva de um total desconhecimento do que seja ética e dos reais motivos dessas execuções. Ética não pode ser igualada a um código de vingança. Uma decisão ética é fruto de criteriosa reflexão acerca de como devemos orientar nosso comportamento diante dos outros e da sociedade. Ética é a busca de compatibilizar liberdades, reconhecer igualdades, tolerar diferenças e, por vezes, de impor limites ao agir nosso e alheio. Mas limites razoáveis, proporcionais, reciprocamente válidos. O que esses presos fazem, assassinando seus colegas de crime, é apenas uma forma de dar vazão a sua violência característica e ao remorso que, eventualmente, manifestam pelo desgosto que, eles mesmos, causaram às suas famílias. Seriam esses indivíduos os mais indicados para protegerem a integridade sexual das crianças e das mães de nossa sociedade? Mas - e aí está todo o drama - alguns dirão: “Pelo menos eles dão uma resposta à altura do mal que aqueles criminosos fizeram; se dependesse da lei, não lhes aconteceria nada.” Porém o que é a lei? Em tese, numa democracia, a lei deve refletir o consenso dos cidadãos acerca de como a vida individual e coletiva deve ser regulada. Nossas leis não nos foram dadas por Deus ou pela Natureza. Se desejarmos mudá-las, podemos. Portanto, se não estamos satisfeitos com a resposta que a lei dá a certos crimes, que nos organizemos para mudá-la. Pode levar tempo e o resultado não ser bem o esperado. Mas ainda é melhor do que transferir a atividade de responder a certos comportamentos criminosos a outros criminosos, cuja condição moral os desqualifica para a tarefa. Os chamados “códigos de ética dos presos” nada mais são que a violência vingativa do ambiente carcerário somada à complacência cúmplice de uma parte da sociedade, que prefere delegar tarefas morais aos criminosos a agir como participativos cidadãos.

Fonte:
SELL, S. C. Comportamento social e anti-social humano. Florianópolis: Ijuris, 2006.

19.9.06

A praga da hipocrisia brasileira

Professor Sandro Sell

O Brasil é o país com o menor biquíni do mundo, mas é também o lugar onde – pasmem! – ainda se discute se o topless é ou não conduta criminosa. A questão é relevante. Quem ainda não teve sua moral assaltada na praia pela exibição de um desses pares de indecência corpórea? Quem ainda não foi vítima de uma quadrilha de jovens siliconadas que provocaram um arrastão de olhares, enquanto tudo o que queríamos era nosso sagrado lugar ao sol? Quem nos defenderá dessas moças exibidas? “Senhor Deus dos desgraçados, dizei-me Vós, Senhor Deus, se eu deliro ou se é verdade tanto horror perante os céus...”

Enquanto a moça está praticamente nua na parte de baixo, alguns policiais, promotores e juízes estão assustados com a nudez da parte de cima. Se os mesmos seios estivessem à mostra publicamente na função tradicional da mulher – amamentar a criança – esses indivíduos os achariam lindos, seriam capazes até de chorar de emoção. Então, leitora exibida, quando for fazer topless, leve na bolsa de praia uma criança emprestada, para todos os efeitos, seus seios estão ali para alimento e não para exposição lasciva. Garanto que o irritado policial, neste caso, até carregará sua cadeira de praia. Uma segunda alternativa: ao ser flagrada pelo guardião da moral, simule um auto-exame de mama. Diga que é um trabalho social lá da faculdade: mostrar às outras mulheres como se previne o câncer. O policial, neste caso, não só carregará a cadeira, como enterrará seu guarda-sol.

Conta-se que um dos “anões do orçamento”, aqueles deputados que nos roubavam, levantou-se num teatro, vaiando os atores da peça porque apareciam nus. Na visão dele, isso sim era imoralidade. Onde já se viu mostrar-se pelado num espetáculo, só para adultos, às 22 horas da noite! De fato, para isso não há desculpa. Roubar o dinheiro público, tudo bem, é um esporte nacional de elite, assim como o pólo e as corridas de cavalo. É quase um costume jurídico, aquela prática reiterada – ainda que contra a lei – que é amplamente praticada e com a opinio jures necessitatis (a convicção íntima de que se deve fazê-la). Mas tirar a roupa num espetáculo, isso já é abuso de direito, é ato obsceno. Cadê o delegado?!

O Brasil é um país contra o aborto. Até mesmo no caso do feto anencefálico (feto sem cérebro), a maioria moral quer forçar as grávidas de fetos, que jamais sobreviverão ao parto, a carregá-los durante nove meses na barriga, apenas para satisfazer as convicções dos carolas de plantão. Cadê o direito à liberdade de crença? Se a sua religião diz que ali há uma alma, tudo bem, eu respeito, carregue sua gravidez anencefálica até o fim. Mas não me force a fazer o mesmo apenas para respeitar sua visão religiosa de ser humano. Isso é violência, é imposição de credo, inadmissível num Estado laico. Estado o quê? Desculpem, agora eu me passei, essa mania de ler a Constituição anda me confundindo as idéias... Estado laico... ridículo...

Se fosse só no caso de aborto anencefálico, tudo bem. Mas este país tão contra o aborto (nos discursos) é também, segundo vários estudos, aquele que mais pratica abortos no mundo. Desde que seja para “limpar a honra” da família, cuja filha engravidou fora do tempo, vale à pena falar com o médico amigo. Como pai, ele entenderá o sofrimento vivido e como aquela gravidez atrapalhará os estudos e a ida a Disney da mocinha de futuro. Aos pobres, que não tem médico de família, restam as agulhas de tricô e a morte, caso alguma complicação haja no aborto amador, já que se procurarem um hospital, o delegado é quem preencherá o prontuário. É fácil às elites serem contra o aborto no Brasil: se precisarem, elas o obterão de forma discreta e clinicamente impecável. A tragédia legal brasileira é justamente essa: só os pobres consultam a lei antes de fazer algo. Os ricos consultam seu bolso. Como disse o milionário americano ao seu advogado: “Eu não estou lhe perguntando o que a lei me deixa fazer. Estou lhe mandando ajeitar as coisas na lei para que eu possa fazer o que eu quero.” Claro, patrão. Só mais uma pergunta: a lei que o senhor quer é mal passada ou ao ponto?

O Brasil é também contrário à pena de morte. A maioria da população se diz contra. Acreditam que a pena de morte é ineficaz para baixar a criminalidade (e de fato é). Dizem também que demora muito esse tal de corredor da morte (mas para isso, se eu bem conheço o Brasil, ligeirinho se inventaria uma esdrúxula antecipação de tutela...), dizem, por fim, que ela é desumana. De fato, somos um país humaníssimo! Não sei como a ONU ainda não nos adotou como modelo de humanidade para o mundo... Mas, quando a polícia mata atrás do camburão – sem direito à defesa, que dirá ao devido processo legal -, quando a polícia invade um Carandiru e mata 111 e outras ações de “assepsia social”, a maior parte da população, consultada pelos jornais, acredita que são ações corretas do Estado contra a criminalidade. Em suma, somos contra a pena de morte norte-americana, com essa estranha mania de deixar o acusado se defender, mas somos favoráveis a essa pena de morte liminar, administrativa, auto-executável pelo policial. Camburão da morte, tudo bem, mas corredor da morte, isso de fato é desumano.

As contradições poderiam se alongar ao infinito. Essa hipocrisia atávica aqui reinante já foi atribuída à nossa herança latina. O historiador Carlos Fuentes lembra que enquanto na América colonizada pelos ingleses era tudo preto no branco, na América luso-hispânica era tudo no cinza. Os cowboys do velho oeste matavam índios, enforcavam bruxas e se achavam o máximo por isso. Os puritanos anglo-saxões podiam ser bandidos, mas não eram hipócritas. Matavam a cobra e exibiam o pau: “Matamos esses selvagens; enforcamos esses negros; cumprimos nosso dever”. Já nas terras latinas, matamos tantos índios quanto, surramos e assassinamos escravos negros aos milhares, mas, - que grande ajuda! - sempre tivemos muito complexo de ter feito essas coisas. A Igreja, o trono espanhol e o português tinham dúvidas sobre o que fazer com os “selvagens” (muitos os defendiam), o que fazer com os escravos e suas religiões (quem sabe liberá-los). Na prática, fomos um dos últimos países do mundo a libertar os escravos e – ah, como é típico de nós – o primeiro a se autoproclamar uma democracia racial e a dizer que não tínhamos qualquer tipo de preconceito!

Ah, se todos fossem iguais a você, Brasil. Não existiria a verdade, verdade que ninguém vê, mas como se falaria bonito...

Para saber mais:

SELL, S.C. Ação afirmativa e democracia racial: uma introdução ao debate no Brasil.

16.9.06

A loira é mesmo burra?

Professor Sandro Sell

Por injusto que possa nos parecer, uma das vantagens de ser belo é poder fazer uma tarefa de forma medíocre e ter razões para esperar que os outros a avaliarão acima do que realmente vale. Até com nomes isso ocorre. Por exemplo, nos EUA pesquisadores descobriram que o simples fato de a pessoa possuir um nome bonito, tende a distorcer para cima a avaliação que recebe em redações escolares. Tal distorção é chamada de efeito halo. É como se pessoas belas (ou com qualidades apreciadas, como um nome bonito) gerassem uma aura capaz de esconder seus defeitos ou supervalorizar suas qualidades. Isso significa que, na prática, quanto mais bonito ou bonita você for, menos inteligência e força precisará utilizar para obter elogios em quase tudo o que fizer. É possível visualizar neste fenômeno uma das possíveis explicações para o estereótipo da "loira burra". Se tomarmos essa expressão popular como sinônimo de mulher bonita, podemos, de fato, afirmar que “as belas”, se quiserem de fato usar a inteligência, podem relaxar, fazer suas tarefas pela metade etc. que, ainda assim, as pessoas à sua volta tenderão a atribuir um valor positivo ao que fazem. Portanto, a bela loira, ao ser, digamos, cognitivamente displicente, não é burra, é estratégica, aproveita-se do impacto obscurecente que sua beleza provoca no julgamento alheio.

Em termos criminológicos, o efeito halo é uma das espécies mais daninhas de injustiça policial e judicial. Nancy Etcoff (1999: 62) observa que:

“Adultos de boa aparência tendem a sair ilesos de furtos de lojas a fraude de exames e perpetração de crimes sérios. São menos propensos a serem registrados (não são vistos de maneira suspeita), e, quando registrados, há menos possibilidade de que sejam acusados ou sofram punições.”

Pelas vantagens sociais da adequação ao padrão estético, nesse momento, milhões de pessoas se submetem a dietas frenéticas, cirurgias plásticas, temendo momentos de exposição pública do corpo (como na praia), antevendo a forma cruel com que a sociedade lida com os que não seguem suas regras. Tal preocupação com a estética pode até nos parecer fútil, mas numa sociedade regida pelo efeito halo, a beleza é um capital estratégico. Talvez não seja fundamental, mas certamente é útil. Injusto? Sim e muito. Mas quem disse que o mundo é lá comprometido com a justiça?

Para saber mais:

ETCOFF, N. (1999). A lei do mais belo. Rio de Janeiro: Objetiva.
SELL, S. C. (2006). Comportamento social e anti-social humano. Florianópolis: Ijuris.

14.9.06

Os chefões do crime e seus dublês

Professor Sandro Sell

O chamado crime organizado no Brasil é feito pela junção de esforços entre aqueles que não têm nada a perder e aqueles que não têm nada a temer. Os primeiros são representados por indivíduos pobres, que perderam a esperança de serem “alguém” na vida valendo-se apenas de meios honestos. Não possuem educação, nem oportunidade de emprego, mas foram, pelas propagandas da sociedade de consumo, induzidos a sonharem alto. Querem se “dar bem”. E, nas condições em que se encontram, o crime parece-lhes o único atalho possível. Mas esses, por si só não se organizam, se soubessem como fazê-lo, talvez pudessem fundar cooperativas, empresas e, honestamente, ascenderem na vida. Para organiza-los entram em cena os que têm muito a perder, mas nada a temer. São os financistas do crime. Pessoas ricas, que passaram por escolas, sabem montar empresas, recitar os artigos da Constituição e sentem-se “cidadãos do mundo”. Indivíduos que, para maximizarem seus lucros, organizam o grande negócio da nossa época: o tráfico de drogas. Para chefiar a parte sangrenta e suja desse empreendimento, contratam dublês, encarnados em personagens folclóricos como Fernandinho Beira Mar e Marcola, cuja origem miserável e destino provável (prisão e assassinato) já indicam que pertencem ao terceiro escalão do crime: aquele grupo que pode ser facilmente substituído. E será. Quem manda no crime é outro tipo de gente: pessoas que sequer admitem a possibilidade de serem presas e que têm tudo para acreditarem que jamais serão mortas em tocaias. Nada têm a temer. A polícia não entende a complexidade de seus crimes e, então, desloca sua atenção unicamente para os que assaltam de arma em punho. As leis que, podiam pegar-lhes, não o fazem. Diluem sua eficácia no tripé da impunidade de elite: investigações mal feitas, processos penais conduzidos com excesso de garantias individuais e sem à devida atenção proporcional ao interesse público, e a proteção da opinião pública que não vê tais indivíduos como perigosos. Com isso as elites criminosas continuam tranqüilas, na praia, vendo, na primeira página, seus dublês passarem-se por protagonistas.

Para saber mais:

SELL, S.C. Comportamento social e anti-social humano. Florianópolis: Ijuris, 2006.

12.9.06

Zaffaroni: um mestre para o nosso tempo

Professor Sandro Sell


Prof. Sandro e o grande mestre Zaffaroni durante
o 69° Encontro Internacional de Criminologia


A Sociedade internacional de Criminologia homenageou, em Buenos Aires, no dia 9 de setembro de 2006, o Professor da Universidade de Buenos Aires e Ministro da Suprema Corte da Argentina Eugênio Raúl Zaffaroni. Ele foi agraciado com a comenda de "Mestre maior da ordem internacional de Criminologia". Estivemos lá privilegiando o evento e, o que é melhor, ouvindo as falas do Dr. Zaffaroni, sem dúvida um dos grandes mestres do pensamento contemporâneo. Leia o artigo abaixo para saber um pouco sobre o pensamento dele.


Zaffaroni, um mestre para o nosso tempo

O Professor Zaffaroni é um desses indivíduos que se tornaram grandes por se fazerem pequenos. Ministro de corte suprema, um dos maiores especialistas mundiais em direito penal, sábio em filosofia e conhecedor de sociologia, ele bem que poderia se apresentar como a solução para muitos dos problemas contemporâneos. Poderia dizer: “Eu tenho a fórmula”. Mas não. Ele prefere comparar-se a um açougueiro que só entende de seu pequeno comércio e tipos de carne. A carne que ele vende é o direito penal e suas penas. E esse produto não serve – ao contrário do que se pensa habitualmente – para resolver a questão da criminalidade. Isso mesmo, o direito penal é, em grande parte, uma fraude: ele se diz útil para o que não é. E Zaffaroni não pretende compartilhar desse blefe, típico dos juristas de mídia. Por isso gosta da metáfora do açougueiro: quem só entende de carnes não deve andar por aí dando palpites sobre vinhos. Se o problema é combater a criminalidade, o penalista sensato tem pouco a dizer.

Como comerciante honesto, se alguém chega e diz: “Açougueiro Zaffaroni, eu queria uma pena criminal para combater o terrorismo, qual o senhor sugere?” “Nenhuma” - responderia o mestre portenho - “as penas não servem para isso e não vou lhe fazer uma venda enganosa. “Então” – continua o esperançoso freguês – “de cá uma pena para resolver a criminalidade no Brasil que está descendo dos morros e atacando nossas cidades.” O estoque de Zaffaroni também não teria como atender a esse pedido. “Meu caro freguês” – diria talvez Zaffaroni – “a única coisa que eu posso lhe informar é que você entrou no estabelecimento errado. Esse é um açougue de direito penal. Você me trouxe um menu de problemas: terrorismo e delitos causados pelos desequilíbrios sociais. Eu vendo penas e, como especialista, posso lhe afirmar: meu produto não serve para os seus problemas, que são sociais e não jurídicos.”

Assim como o doente em busca de analgésico deve dirigir-se à farmácia e não ao açougue, os políticos assustados com a criminalidade devem ir atrás de soluções efetivas e não ao balcão das soluções juríco-penais. Neste não se vendem tais soluções, mas apenas discursos fantasiosos, porém, desgraçadamente, de grande apelo eleitoreiro. Não é à toa que a lei dos crimes hediondos e toda essa série de leis mais duras, ultimamente implantadas no Brasil, não nos deram uma sociedade mais segura. A solução do açougueiro-penal não se aplica a problemas sociais. Quem quer eliminar a criminalidade brasileira via pena criminal está delirando, é mal informado ou é cúmplice da visão estúpida que criminaliza uma parte da sociedade (os mais pobres) para dar uma falsa sensação de segurança aos mais ricos.

O direito penal deveria ser reduzido ao mínimo, pensa Zaffaroni. Quem sabe ter em nosso código penal apenas 20 ou 30 delitos, com os quais todos estivéssemos de acordo e nada mais. O resto é “fantasia tipificada”: desejo de solucionar problemas sociais mediante a criação de novos tipos criminais. Exemplificando: não é com o endurecimento das penas para os camelôs que resolveremos o problema da falsificação do novo programa da Microsoft ou das Bolsas Louis Vuitton. O problema não é penal. Mas sim, no primeiro caso, do monopólio de soluções em informática mundial nas mãos de umas poucas empresas das quais somos todos reféns. E é por isso que cedemos lugar ao atravessador “camelô”, que, em geral, sequer faz uso pessoal da mercadoria ilegal que vende. Está lá para servir a uma outra classe social (a mesma que pede penas mais duras para os falsificadores!). A Microsoft & cia, mediante não apenas competência, mas também a práticas comerciais duvidosas, inviabilizou a concorrência na área de softwares e nos tornou reféns de seus produtos. Colocar o camelô na cadeia não resolverá esse dilema entre os direitos de acesso público aos bens de informática e os direitos autorais e comerciais das empresas que os produzem. Tal dilema deverá ser resolvido em outra instância, e não no açougue do penalista.

Sobre a falsificação de bolsas Louis Vuitton e assemelhados, o problema é fashion, mas não menos sério. Só não é criminal. A questão de base é: como uma empresa como essa consegue convencer o consumidor de que a bolsa que produzem vale algo em torno de 10 mil reais? Somente se aproveitando da ingenuidade do consumidor, induzindo-o ao absurdo consumo, mediante produções de marketing hollywoodianas. Se a bolsa Louis Vuitton custasse o que ela vale em termos de uso, não seria falsificada, pois seu preço cairia drasticamente, ainda que pudesse ser um pouco mais elevado, em função de uma alegada maior qualidade. Mas qualidade, em geral, não se falsifica, o que se falsifica é o status, a etiqueta. Se a L. Vuitton quiser se livrar das cópias de seus produtos, basta que venda – ainda com fabuloso lucro – suas bolsas pelo preço que elas efetivamente valem, e não pelo que induziram o compulsivo consumidor a pagar. Não adianta pôr o falsificador na cadeia (resposta penal), a solução é outra. Deixem em paz o açougueiro penal.

Idéias como essas são típicas de Zaffaroni. Um dos poucos juristas de primeira linha que não se renderam ao charme e prestígio que dá falar apenas o que agrada ao público pagante. Não, Zaffaroni é irritante. Desagrada o penalista tradicional, a polícia e muitos de seus colegas juízes. Talvez por isso é que, há pouco em Buenos Aires, quando procuramos os livros dele nas maiores livrarias da capital Argentina, não encontramos. As prateleiras das livrarias portenhas, lotadas de autores brasileiros como Lair Ribeiro e Paulo Coelho e de americanos, como Dan Brown e Sidney Sheldon, não tinham espaço para Zaffaroni. "Podemos consegui-lo em três dias", diziam os livreiros. Como se vê, lá, como aqui, a ignorância é pronta-entrega, já a sabedoria só sob encomenda. Deveria ter tentado no açougue.

Para saber mais:

ZAFFARONI, E. R. Em busca das penas perdidas.
ANDRADE, V. R. P. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal (livraria do Advogado).

29.8.06

A cor do brasileiro

Professor Sandro Sell

Pelo Estatuto da Igualdade Racial teremos que declarar nossa cor em documentos como certidão de nascimento e outros. Qual a finalidade disso? Boa, nenhuma. Esse negócio de marcar obrigatoriamente as pessoas por seus pertencimentos a determinadas raças ou etnias tem mesmo um péssimo passado. O sonho de toda ideologia autoritária começa por algo assim: deixar tudo bem separado, preto no branco, para poder dizer: “Esses somos nós, aqueles são eles. Nós precisamos disso, eles daquilo. Nós devemos ter preferências, pois eles são os culpados”. Se não fosse a esquerda quem estivesse propondo esse estatuto, milhares de militantes brasileiros já estariam na ONU pondo em suspeita o ressuscitar dessa forma perigosa de classificar as pessoas. “Qual é a sua cor?” Terá que perguntar cada delegado, cada médico e cada funcionário de burocracia. “A cor da humanidade”, – numa democracia, essa deveria ser a única resposta possível e suficiente. Vai deixar de ser.
Dizem que o objetivo dessa separação é louvável: permitiria a produção de estatísticas sobre, por exemplo, “doenças de negro” (sic), como a anemia falciforme. Vamos supor, por um momento, que há doenças que seguem rigorosamente a raça do indivíduo. Só que seguir a raça de alguém no Brasil não é fácil. Brancos e negros – em flagrante conspiração ao simplismo do estatuto – teimaram em se casar sem declarar cores, dando origem a um sem número de misturas, que podemos ou nomear uma por uma (pardo, quase-branco, quase-negro, marrom, mulato, escurinho...), ou resumi-las, todas, sob o apelido genérico de “humanidade”. Esse último termo tem a vantagem de dar um recado aos racistas de plantão: as cores são um detalhe, as pessoas não.
Mas como seria definida a cor de alguém? Há duas possibilidades. A primeira seria ter uma palheta de cores para que o sumo classificador racial comparasse o indivíduo a um padrão e revelasse ao mundo sua verdadeira cor. A outra, preferida pelo estatuto, é a de que as próprias pessoas digam de que cor querem ser, ou de que cor se sentem. O problema com a primeira é óbvio; com a segunda, é que ela impede de fazer estatísticas confiáveis baseadas na autodescrição. Se há “doenças de raça” a serem mapeadas, de que adianta uma estatística racial derivada do auto-enquadramento sentimental do indivíduo a uma cor e não da quantidade de melanina em sua epiderme?
Mas o estatuto não é só isso, dirão, com razão, alguns. Ele é pior. É pela folclorizaçao do negro, acredita que sempre que alguém se diz negro as primeiras palavras que lhe devem ser associadas é samba e capoeira. Determina que o Estado ensine essas práticas que, diga-se de passagem, não precisam do Estado para estarem inseridas na cultura popular. É mais fácil ensinar Shakespeare a alunos (brancos ou negros) prometendo-lhe que, se estudarem direitinho, terão aulas de capoeira, do que o contrário. É mais fácil levar a loirinha pro samba do que convencê-la a ir à ópera.
Mas e a desigualdade racial? Ela existe e precisa ser combatida. Só que não será chamando alguns de negros e outros de brancos que isso será feito.

Para saber mais:

SELL, S. C. Ação afirmativa e democracia racial: uma introdução ao debate no Brasil. Florinópolis: UFSC/BOITEUX, 2002.

21.8.06

Zonas de incerteza punitiva

Professor Sandro Sell


Zonas de incerteza punitiva

Uma das formas de entender os raciocínios que, em Direito, ligam o crime à pena é a idéia de zonas de certeza punitiva. Quando uma conduta dita criminosa, em termos jurídicos, for também uma transgressão social (causar repulsa pública) emergirá como corolário lógico a idéia de que a ela deve corresponder uma punição. Pensemos num indivíduo que, por mera ganância, mata a esposa para receber um seguro de vida. É difícil encontrar quem discorde que, neste caso, uma punição penal é devida e merecida. Estamos na zona de certeza positiva: é claro que é crime. Zona de certeza punitiva positiva é aquela em que direito e sociedade concordam: a conduta sob análise é crime e merece uma resposta à altura.

Em outras vezes, há uma grande clareza de que uma dada conduta não é criminosa, e qualquer um sabe disso. Pensemos num casal de namorados beijando-se em público. Há ainda quem ache que merecem punição? É claro que houve um tempo em que tal beijo, se fosse lascivo, – como diria o vetusto tratadista, - suscitava a repugnância pública e o enquadramento criminal. Hoje não. Muito embora haja em Direito penal uma estranha mania de dar voz a autores do passado na interpretação de costumes do presente, a idéia de que um beijo na boca seja portador de lascívia criminosa é algo superado, tendo se tornado uma ação penalmente irrelevante. Trata-se de conduta situada na zona de certeza criminal negativa: é claro que não constitui crime.

Como resposta a ambos os casos – matar por ganância/ beijar com desejo - o consenso é esperado: deve-se punir aquela morte; deve-se isentar esse beijo. Zona de certeza positiva e zona de certeza negativa, respectivamente. A regra é clara, como diria, em uníssono, o comentarista, o juiz e a sociedade. O Direito aqui é cheio de certezas. Não sendo necessário para aplicá-lo nenhuma sutileza, apenas uma consulta às fontes jurídicas e sociais do presente. Em outras palavras, basta interpretar a lei antevendo a revolta que causaria a absolvição do que mata por cupidez e a indignação resultante da punição do casal por seu beijo. Nessas situações, a resposta jurídica devida aparece sem meio-termo, ou é ou não é. São casos para comemoração no edifício da dogmática. Finalmente, o Direito apresenta-se claro, claríssimo. É destacar a norma e colar no caso.

Mas, no mais das vezes, estamos diante de condutas fronteiriças, não sendo possível dizer, de pronto, se são ou não criminosas. Fim de festa na casa dogmática. Pensemos na interrupção intencional da gravidez do feto anencefálico (feto sem cérebro). Muitas decisões sustentam tratar-se de crime de aborto; outras, dizem que não se trata de crime, pois, sem cérebro, não há vida viável e seria crime impossível atentar contra a vida de um feto que, “tecnicamente”, não é vivo. Aqui há polêmica. Polêmica indica a existência de dúvida razoável. Há pessoas inteligentes e bem intencionadas dizendo sim, e outras, igualmente qualificadas, dizendo não. Não há como simplesmente passar a régua, a conta não fecha. Estamos, neste caso, na zona cinzenta do sistema jurídico. Falta clareza. Olhando por um lado, acha-se que é crime, olhando pelo outro, acha-se que não. Onde católicos enxergam crime, feministas laicas enxergam o exercício de um direito; onde alguns vêem uma desvalorização da vida humana em suas diferentes formas, outros anunciam o surgimento do respeito devido ao corpo e sentimentos femininos. A desejada certeza penal resta esfacelada.

Muitos tipos penais são excepcionalmente pródigos em produzir zonas cinzentas. Pensemos no artigo 233 do Código Penal. Ato obsceno. “Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa”. O que é ato obsceno? Segundo Maggiore, ato obsceno representa a conduta positiva do agente, com conteúdo sexual, atentatória ao pudor público, que suscita repugnância”. Resolvido? Não. Tudo bem. Só os incautos conseguem dar rápida operacionalidade penal a tal conceito. As pessoas ponderadas enchem-se de dúvidas. De fato, a explicação dada por Maggiore não permite nenhuma segurança jurídica, pois dizer que ato obsceno são condutas com conteúdo sexual ofensivo ao pudor público equivale a dizer que é ato obsceno o que a sociedade assim o considerar. O beijo ardente, o topless, a micção no muro da escola, serão ou não tidos por obscenos? Zona tão cinzenta e embaçada quanto as vidraças do carro em que namoram, lascivamente, o casal apaixonado na fria madrugada do fim-de-festa, pondo em polvorosa a donzelice do Direito e a hipocrisia da sociedade. Na caracterização de um ato enquanto obsceno um juízo de valor há de ser feito. A obscenidade de um ato depende do que se entenda por pudor público.

Plácido e Silva, em seu respeitável Vocabulário Jurídico, vem a nosso socorro, dizendo que pudor público: “É o decoro público ou sentimento coletivo a respeito da honestidade e decência dos atos, que se fundam na moral e nos bons costumes. Ofender o pudor público, assim, é praticar atos que ofendam os bons costumes e a moral pública.” Como já se deve ter notado, para utilizar essa explicação é preciso saber antes o que é decoro público, é preciso saber o que é decência e moral públicas e, nessa redução sucessiva, nos depararemos sempre com a necessidade de fazer juízos de valor, acerca do que é ofensivo ou não, do que é bom ou mau. Ledo engano, o velho Plácido não nos socorre e a dúvida permanece.

Mas mesmo neste polêmico artigo 233, há zonas de certeza. Certeza positiva: é crime. Imagine um homem normal que baixe as calças na via pública e comece a se masturbar, sem se importar com os transeuntes. Ponto para Maggiori: é conduta sexual que choca o público. É ato obsceno. Merece reposta pública e criminal. Até o pai do acusado há de concordar. Plácido e Silva pode ser aplicado na íntegra: isso ofende os bons costumes, a moral pública, a decência e outras coisas mais. É tão óbvia a obscenidade desse ato quanto óbvia é a não obscenidade do beijo que a noiva dá no noivo por ocasião do casamento. Nesse caso, Maggiori, o padre e as testemunhas - embora possam antever nele intenções lascivas – emocionam-se sem se chocar. Zona de certeza negativa. Podem dispensar o delegado, o fato é atípico, digno até de beatificação.

Mas e o sujeito que toma banho nu no pátio de sua casa, sem se importar com a vizinhança, por ser adepto do naturismo? Está no seu direito ou abusando dele? Está em prática de ato obsceno ou em exercício regular de seu direito de propriedade e de livre expressão? Há polêmica. Zona cinzenta. Veja que ele não manifesta intenções lascivas – sexuais - ao tomar banho no quintal, apenas não vê problema em que os outros o vejam nu, embora ele não se esforce para que isso ocorra. Porém, o que dizer da opinião pública expressa pelos vizinhos? Parece legítima. As mães baixando a cortina, as visitas chocadas e por aí vai. Mas também não nos parece totalmente ilegítimo o direito de quem – sem intenção libidinosa – no interior de seus muros, queira bronzear-se sem roupa. Mas, e as crianças vizinhas? É, infelizmente, essas hipotéticas crianças já devem ter sido socialmente condicionadas pelos adultos a presumir lascívia no corpo desnudo. Crianças índias não se chocariam, já que não tiveram seu olhar enviesado pela moral cristã do corpo-pecado. Tudo bem, tiremos as crianças da cena. Na vizinhança só há adultos. E agora? Têm os adultos vizinhos maior direito a reprimirem a conduta do nosso naturista do que este de expressar-se, em casa, da forma como lhe parece correta? Zona cinzenta.

Há mais.

Em outubro de 2003, o polêmico diretor de teatro Gerald Thomas, como protesto às vaias dirigidas a seu espetáculo, baixou as calças, mostrou as nádegas ao público e simulou masturbação. Ato obsceno? Foi processado e conseguiu um apertado habeas corpus no Supremo Tribunal Federal: 2 votos a favor, 2 contra. Beneficiou-se do empate. Mas ficou claro em quão cinzenta zona o acusado se movimentava. O fundamento dos votos que o absolveram baseou-se no fato de que o espetáculo era para um público urbano, elitizado, e ocorrido às 2 horas da manhã. De fato, é possível acreditar que diante do comportamento grosseiro do diretor muitos se houvessem ofendido, mas difícil é acreditar que se sentiram sexualmente molestados. Tanto assim o é que, se Gerald houvesse feito idêntica conduta como personagem de sua peça, o público a consideraria como exercício de liberdade de expressão. Parece que o diretor não errou na ação, mas no momento de sua inserção diante do público.

Em julho de 2003, o casal homossexual João e Rodrigo beijou-se no hall do shopping Frei Caneca, em São Paulo. Segundo testemunhas, foi um beijo efêmero, um “selinho”. Mas os seguranças do shopping não gostaram e o repreenderam. Tal beijo constituiu ato obsceno? O shopping alegou que sim. A reprimenda ao beijo foi um ato discriminatório? O juiz assim o entendeu. E lembrou que se fosse um casal heterossexual a importunação dos seguranças não teria ocorrido. Dado que, no Brasil, ser homossexual não é crime, proibir manifestações de afeto homossexual que seriam toleradas de casais héteros, de fato, parece abusivo. Mas, e o pudor público? Certamente que chama mais a atenção um beijo entre dois homens (ou duas mulheres) do que entre um homem e um a mulher. Lembre-se que para Maggiore o ato de caráter sexual há de causar repugnância no público para haver ato obsceno. E se os freqüentadores do shopping houvessem sentido a tal repugnância? Haveria ato obsceno? Que tipo penal é esse que depende do que dele os outros pensam?

Quando uma conduta encontra-se situada na zona cinzenta do sistema penal, caberá ao intérprete ressituá-la em um dos extremos do continuum: não crime - zona cinzenta - crime. Acusadores vão tentar mostrar o crime da conduta; defensores farão o contrário. Como nosso sistema é in dubio pro reu, o trabalho dos que defendem a não existência de crime, nestas hipóteses, haveria de ser sempre mais fácil. Mas dificilmente é assim. Uma conduta situada em zona cinzenta, não podendo ser enquadrada unicamente a partir de critérios jurídicos, será enquadrada pelos critérios da moralidade estabelecida. In dúbio pro mores. O topless seria, talvez, ato obsceno numa piscina pública no interior catarinense, mas não o seria na Praia Mole, em Florianópolis. É justo punir a moça que exibe seus seios em Chapecó e tomar como exercício regular de direito a mesma conduta realizada na Capital? Nos dois casos há mais presunções do que conhecimento efetivo sobre a tolerabilidade social de tal conduta. Nem todas as pessoas de Chapecó se chocariam com os seios à mostra; nem todas as pessoas de Florianópolis seriam a isso indiferentes. Na ausência de sondagens seguras sobre a quantas anda a moralidade regional, tudo dependeria da cabeça do julgador, - que freqüentemente é pessoa estranha aos costumes locais. A segurança da lei é, então, substituída pelo risco de uma opinião pessoal.

Clarear zonas cinzentas pelo recurso à moral ocorre também em outras situações, quando a falta de certezas jurídicas é substituída por uma perigosa certeza moral. Imaginemos um indivíduo que, testando seu novo automóvel, em alta velocidade, atropela e mata um pedestre na faixa de segurança. A dúvida, neste hipotético caso, não é se houve crime. Parece claro que sim. A zona cinzenta paira aqui sobre a intenção do agente. Ele jura que se tratou de ato culposo. Foi imprudente, reconhece. Mas o promotor e a família da vítima discordam. Acham que ele, ao dirigir daquela forma numa via pública, assumiu o risco de produzir mortes e querem o seu enquadramento por homicídio doloso. Enquanto cada uma das partes tenta convencer o juiz de tratar-se de crime com ou sem intenção, imaginemos que surge uma notícia até então não sabida. Ele não estava sozinho no carro. Havia mais alguém, que se evadiu antes da chegada da polícia. A dúvida é sobre quem era o/a acompanhante. Advogado e promotor ficam imaginando quem eles gostariam que fosse, a bem de suas respectivas teses. E surgem dois cenários.

Cenário 1. Na imaginação do advogado de defesa, ideal é que o acompanhante fosse o filho do acusado, de dez anos, para quem o pai queria mostrar o desempenho do novo carro. Cenário simpático. É possível até imaginar o resto da história. O carro novo, o filho empolgado dizendo: “Acelera, pai!”. O pai, sem se dar conta da imprudência, atende o esperançoso desafio da criança, e o azar! Infelictas facto! Foi agradar o filho e desagradou a sociedade! Por imprudência acelerou, por desgraça atropelou. Não houve dolo (intenção criminosa), apenas culpa (ausência de cautela).

Cenário 2. Na imaginação do promotor, bom seria se o acompanhante não fosse o filho, mas a amante do condutor, mulher casada, que se evadiu para evitar vexame. “Mulher à-toa, casal ordinário!”. Aqui também se pode imaginar o resto da história: lascivamente, a fêmea infiel pede: “Acelera aí, amor”, e ele, pensando que o mundo se restringia ao bordel em que se convertera sua vida, pouco se importa com os outros. “Que se danem!” Primeiro ele, primeiro ela. Os dois e suas aventuras exigem prioridade. Não há faixa que os detenha. Os outros? Os outros é que se acautelem!

Agora responda: em qual dos dois cenários há maior probabilidade que o homicídio seja tido como doloso? Bingo! Mas, veja bem, o fato de estar acompanhado de um filho, da avó, de um travesti, da amante ou de um fugitivo nada tem a ver com a questão sob julgamento, que é a de se a ação foi ou não dolosa. Pode ter sido dolosa com o filho e culposa com a amante. Mas, na zona cinzenta, a moral é chamada a ajudar no convencimento e é muito mais fácil encontrar o que reprovar criminalmente quando moralmente a conduta é deplorável.

É que o Direito é isso mesmo: convencimento. Convencer com base na lei. Convencer com base nos princípios jurídicos. Reunir evidências, provas e vestígios. Mas na zona cinzenta a prova é dúbia, o direito é nebuloso, os princípios são amplos demais. Não há o que fazer. Então, chama-se a moral para deslindar a questão. E chega ela com sua tacanha divisão de tudo em definitivamente certo e definitivamente errado. Momento de festa nas mentes simplistas. O réu será julgado pelo acompanhante que levava e não pela intenção que teve – nebulosa demais para se saber qual era. O direito passa aqui de custus legis (fiscal da lei) para custus mores (fiscal dos costumes). Feliz do safado bem acompanhado; lamentável a situação do honesto mal acompanhado. Dize-me com quem andas e eu te direi teu destino penal.

Bibliografia

DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
FRANCO, Alberto Silva, SILVA JUNIOR, José, BETANHO, Luiz Carlos et al. Código penal e sua interpretação jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. São Paulo: Editora Saraiva, 1992.
GRISPIGNI, F. Diritto Penale Italiano. Roma: Ed. UTET, 1949.
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1958.
____. & FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1980.
MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale.Bologna: Nicola Zanichelli Ed., 1955.
MUÑOS, Francisco Conde. Teoria Geral do delito.Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1988.
SELL, Sandro César. Comportamento social e anti-social humano. Florianópolis: Ijuris, 2006.
____. A etiqueta do crime: considerações sobre o labelling approach. Disponível em: http://sandrosell.blogspot.com/
____. Zaffaroni: um mestre para o nosso tempo. Disponível em: http://sandrosell.blogspot.com/
SILVA, De Plácido e.Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1980.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Crmiminologia-Aproximación desde un margen. Bogotá: Ed. Temis, 1988.



Exercícios
1). Em 1994, um advogado entrou com uma ação popular contra a transformação da praia de Abricó (zona oeste do Rio de Janeiro) em reduto de naturismo. O advogado alega que andar nu na praia – ainda que esta seja sinalizada como destinada a esta prática – constitui crime de ato obsceno, e que, além disso, tal possibilidade privatiza um espaço público, já que destina uma praia ao uso de naturistas, afastando dela pessoas mais recatadas. Tanto no TJ-RJ quanto no STJ os naturistas venceram a disputa. O Relator no STJ, Ministro Teori Albino Zavascki disse: “(...) não a reprovo (a prática naturista) desde que constrita a determinados locais. Exatamente nisto está em se conferir àquela minoria o direito de igualdade naquilo que entendem razoável e lídimo, permitindo-se a coexistência pacífica entre a maioria e a minoria.” Suponhamos agora que aquele nosso naturista do texto (que toma banho nu em seu quintal, sem intenção lasciva) sinalize adequadamente que seu quintal está sujeito a práticas naturistas, devendo dele serem desviados olhares que se chocam com tal ocorrência. Argumente se há ou não crime em ambos os casos, o do naturista em casa e dos naturistas na praia.

Algumas informações:

Do Código Penal.
Art. 233. Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público. Pena – detenção, de três meses a um ano e multa.
Do Código Penal Comentado por Celso Delmanto (texto adaptado).
Objeto jurídico (bem que o direito pretende proteger): o pudor público.
Tipo subjetivo: crime doloso, exigindo a vontade livre de praticar o ato obsceno, consciente da publicidade do local e de estar ofendendo o pudor.
Do Vocabulário jurídico de Plácido e Silva:
Pudor público: É o decoro público ou sentimento coletivo a respeito da honestidade e decência dos atos, que se fundam na moral e nos bons costumes. Ofender o pudor público, assim, é praticar atos que ofendam os bons costumes e a moral pública.
Do Dicionário Houaiss:
Obscenidade.s.f. (1702 cf. NumVoc) 1 qualidade do que é obsceno 2 caráter do que, no domínio da sexualidade, fere o pudor 3 caráter do que, por sua inconveniência, não está de acordo com as regras do decoro; caráter do que é chocante 4 ato ou dito obsceno.
Pudor. s.m. (1540 cf. JBarV) 1 sentimento de vergonha, timidez, mal-estar, causado por qualquer coisa capaz de ferir a decência, a modéstia, a inocência 2 sentimento e atitude desenvolvidos por uma educação rígida calcada em conceitos culturais, ger. de base religiosa, que impedem que certas partes do corpo sejam expostas com naturalidade, sem constrangimento [A amplitude e a distribuição dessas partes variam de acordo com as culturas.] 3 vergonha, constrangimento, de base ger. cultural, para falar a respeito ou praticar determinados atos ligados à área da sexualidade, das funções fisiológicas, dos sentimentos íntimos, da afetividade etc.; recato, decência, pudicícia, pundonor 4 sentimento de vergonha com respeito a atos que ferem as qualidades de caráter de um indivíduo, como a decência, a honestidade, a honra etc.; pejo  ETIM lat. pùdor,óris 'vergonha, pejo'; ver pud-  SIN/VAR ver antonímia de indecência  ANT cinismo; ver tb. sinonímia de indecência .


2) Pesquise e responda:

a) o que é segurança jurídica.
b) o que é dogmática jurídica.

sandrosell@ig.com.br

7.8.06

O Direito como modo de vida

Professor Sandro Sell


O Direito enquanto modo de vida

Quando um novo aluno chega ao mundo do Direito, costuma ficar impressionado com a multiplicidade dos temas abrangidos pelo saber jurídico: do cheque pré-datado, que ele emitiu ontem, aos dilemas da clonagem de seres humanos, narrados, quem sabe, no filme a que assistiu no último domingo. De repente, o “calouro” do Direito percebe que a partir de questões de seu interesse (como a segurança de seu carro no estacionamento da faculdade) ou de sua curiosidade (como uma possível obrigatoriedade da presença de alunos negros em sua turma), o mundo jurídico, que recém lhe abriu às portas, vai formando um cotidiano de polêmica conseqüente.

Se estiver atento, o novel acadêmico cedo notará que, para ser membro legítimo da comunidade jurídica, terá de se disciplinar na capacidade de oferecer justificativas para as suas tomadas de posição. Inicia-se, então, o longo caminho do rompimento com o discurso leviano (“eu acho”) ou autoritário (“é assim!”), que autorizam o indivíduo a dizer simplesmente qual a sua posição, sem a necessidade de demonstrar sua compatibilidade com a lei, com os princípios de justiça ou com as regras do bem pensar. Não, ele logo tomará ciência de que se embrenhar pelas carreiras jurídicas é, antes de tudo, tornar-se um profissional do convencimento justificado, o oposto da imagem deturpada do advogado como um pedante sofista a esconder sob um palavreado erudito seu desejo de fazer prevalecer o absurdo sobre a lógica, o interesse mesquinho sobre a ética e a técnica fria sobre os princípios sensíveis de justiça. .

Quem quiser fazer do Direito não uma simples profissão, mas uma maneira de sentir e portar-se diante da vida e dos conflitos humanos, deverá entender que o saber jurídico possui singularidades para seu aprendizado e exercício. Desde o primeiro dia de aula, deve ficar claro que o Direito requer habilidade prática, reflexão esclarecida e atitude eticamente combativa. Na ausência de tais requisitos, o Direito sai desmoralizado (e como tem saído!) após cada demonstração de incompetência técnica, de dogmatismo preconceituoso ou do patrocínio ganancioso da opressão por parte daqueles que mais o deveriam honrar.

Quem desenvolveu a habilidade de operar as normas e princípios do Direito tornou-se um potencial operador jurídico; o que desenvolveu a capacidade de pensar o Direito de forma esclarecida e conseqüente, - refletindo-o, criticando-o e sugerindo aperfeiçoamentos, - tornou-se um intelectual do mundo jurídico. Mas só quem conseguiu conciliar a habilidade prática do operador jurídico com a amplitude de pensamento do intelectual do Direito pode ser dito um verdadeiro jurista. E se, deixando de lado seus próprios interesses mais imediatos, ele colocou sua condição de jurista a serviço da luta em prol da liberdade, do combate ao oportunismo e às desigualdades aviltantes, tornou-se um procurador da dignidade humana, um missionário do mundo jurídico.

Se os egressos das faculdades de Direito não possuírem competência técnico-operacional para resolverem questões jurídicas práticas, reduzindo-se a serem críticos do “sistema”, poderiam, sem perdas, ser substituídos por filósofos ou sociólogos, - com mais tradição e método no ofício da crítica conseqüente. Mas se tais egressos, lado inverso, se conformassem ao mero domínio do saber técnico-forense, poderia o Direito ser substituído por sistemas decisórios padronizados, informatizados, em uma verdadeira engenharia jurídica, - por certo menos ambígua, mas, com certeza, fria diante das particularidades de cada conflito humano convertido em demanda judicial. Simultaneamente críticos e operacionais é o que devem ser os novos operadores jurídicos.

Mas conhecer as leis em profundidade, bem encaminhar processos e ser capaz de apontar as limitações do mundo jurídico não é tudo. Um bacharel competente, inteligente e desonesto pode fazer o mesmo. É preciso mais. Caso os operadores jurídicos não vivenciarem uma atitude ética, que os faça dignos de serem guardiões da lei e proponentes de seu aperfeiçoamento, correm o risco de se tornarem pessoas socialmente perigosas, reduzidas a catadoras e produtoras de falhas legais, com as quais pretendem patrocinar a conduta nociva dos que insistem em fugir das regras de boa convivência social.

Deve-se, pois, juntar saber técnico, postura investigativa e atitude ética para estar à altura do Direito. Menos que isso é subaproveitá-lo, gerando o clima propício às piadas que, infalivelmente, caracterizam os operadores jurídicos como espertalhões, desonestos e desnecessários.

Um profissional do Direito só está pronto de fato quando sua simples presença intimida as fraudes e os abusos, cria ânimo colaborativo para a resolução de conflitos e, acima de tudo, enche de esperanças os que clamam por justiça. Por isso, diante do conhecimento e da vida, espera-se que o novo membro desta honrosa comunidade desenvolva a chamada atitude jurídica, cujos principais pontos estão listados abaixo:

1. Tenha boa vontade para escutar a defesa das idéias de que discorda e sabedoria para aprender algo com elas. É improvável que a outra parte esteja absolutamente errada e você absolutamente certo. O mundo humano é menos feito de certezas do que de diferentes versões para os mesmos fatos.

2. Não se precipite ao opinar. Permita-se a reflexão. A opinião refletida diferencia a pessoa superior do autômato, que responde com a rapidez de quem apenas copia os preconceitos do seu meio social. É preferível calar-se a opinar com leviandade.

3. Evite comentar publicamente temas de processos cujos autos você desconhece. Dos processos famosos, em que a causa se encontra muito longe de nós, ordinariamente, só temos acesso às versões da imprensa, que costumam ser parciais e interessadas em desfechos espetaculares, em função dos quais fatos bizarros e de pouca importância processual ganham uma importância indevida, ofuscando a essência da questão. Um processo judicial, por mais que entre suas partes haja “celebridades”, não pode seguir a lógica do espetáculo. A justiça requer sobriedade na mesma proporção em que a vingança pública reivindica destempero.

4. De vez em quando, dedique-se ao saudável exercício de teatralizar a defesa de posições contrárias às suas. Em geral você se surpreenderá com o grande número de bons argumentos que encontrará para defendê-las. Tal expediente, além de expandir seu repertório argumentativo, o livrará da contraproducente e criticável postura de “causa ganha”.

5. Além da formação prático-intelectual, procure uma identificação emocional e estética com o Direito. Assista a filmes e leia romances cuja trama envolva situações da vida jurídica. Aprenda com romancistas, diretores e atores não apenas a emocionar o público com os dramas humanos convertidos em peças processuais, mas, acima de tudo, procure sentir o Direito pulsando em você como uma vontade de fazer prevalecer a justiça contra os abusos de qualquer natureza.

6. Leia os clássicos do Direito. Clássicas são aquelas obras que por representarem modelos exemplares de entendimento e argumentação marcam não só uma época, mas adquirem validade indeterminada. Quem lê os clássicos se alimenta nas mais puras fontes do saber humano, amplia seu pensamento e nunca mais será o mesmo: os clássicos nos reconstroem para melhor, enquanto seres pensantes. Clássicos jurídicos “internacionais, como Kelsen (Teoria pura do Direito), Ihering (A luta pelo Direito), Bobbio (Teoria do ordenamento jurídico), Zaffaroni (Em busca das penas perdidas), Fuller (O caso dos exploradores de caverna), ou “nacionais”, como Carlos Maximiliano (Hermenêutica e aplicação do Direito), Sampaio Ferraz (Introdução ao estudo do Direito), Bandeira de Mello (O conteúdo jurídico do princípio da igualdade) e muitos outros pagam em benefícios duradouros a dificuldade que sua leitura traz. São difíceis? Em geral são, e é por isso que representam um desafio para poucos, somente para os que querem uma formação jurídica consistente e imorredoura. Aqueles que se formam apenas com base em “resumos” conseguirão exatamente o que procuram: uma mente resumida.

7. Leia os clássicos da literatura universal. Um operador do Direito que só conheça o próprio Direito mostra um precário entendimento da área em que atua. O Direito não é técnica, mas um modo humano de equacionar conflitos igualmente humanos. Como entender a essência de tais conflitos? Aprendendo com aqueles que os expuseram como ninguém. Quanto de direito se há de aprender lendo o Mercador de Veneza? Como mergulhar melhor no inferno passional a que pode levar o ciúme senão lendo Otelo? Mas não só Shakespeare nos apresenta com maestria a natureza humana. Crime e castigo (de Dostoievski), Angústia (de Graciliano Ramos) ou O Estrangeiro (de Albert Camus), entre centenas de outros, também nos levam a ter que encarar os seres-humanos em sua conflitiva inteireza. Lê-los é ampliar-se em entendimento e sensibilidade. O profissional do Direito que só lê livros “técnicos” corre o risco de passar longe dos reais interesses dos seus clientes - quando não de seus próprios.

8. Em qualquer circunstância, faça valer a presunção de inocência de quem está sendo acusado. O direito de explicar-se em um processo legal e razoavelmente conduzido foi uma das maiores lições de confiança em si mesma que a humanidade se concedeu. Aparências, indícios, provas e mesmo evidências são traiçoeiras e não podem, de per si, anular a mais humana de todas as características: a capacidade de escutar a verdade alheia e a partir dela, eventualmente, mudar de opinião.

9. Servindo como testemunha, advogado, juiz, promotor, policial ou como formador de opinião, lute para que não haja condenações errôneas. Equívocos em condenações – morais ou jurídicas - têm sido comuns e provocam abalos, freqüentemente irreparáveis, na vida psíquica e social da vítima, além de arranharem profundamente as instituições encarregadas de administrar a justiça.

10. Defenda o direito de todos ao exercer os seus. Como ensinou Rudolf Von Ihering, quando alguém exerce um direito não o faz apenas para si. Enquanto realiza sua luta privada pelo direito que julga lhe pertencer, reafirma, para todos, não só a existência do direito específico que pleiteia, como também vivifica a idéia de direito em geral, pondo limites à sua usurpação.

11. Tenha consciência de que o que torna uma causa relevante, a ponto de justificar uma demanda, não é seu valor econômico. Pode-se brigar por um milhão e fazê-lo por mera impertinência ou por dez centavos para conservar a auto-integridade cidadã. Não confunda o valor monetário da causa com o seu valor moral.

12. Contribua para o aumento do senso de justiça das pessoas à sua volta, já que nossa única garantia contra os tiranos é uma população a eles avessa.

13. Tenha uma atitude de não servilismo intelectual, ético e profissional ao exercer suas funções. Atitudes servis desvalorizam a classe profissional e seus integrantes. Mas não caia no extremo da arrogância: apenas os mitológicos seres imortais e os ridículos podem, legitimamente, considerarem-se acima dos demais.

Se pelo menos parte dos novos acadêmicos abraçarem o Direito nessa digna inteireza, tornando-o seu modo de vida, a sociedade há de colher inúmeras vantagens no que agora teme: o crescimento acelerado da oferta de vagas nos cursos jurídicos.

Bibliografia

COUTURE, E. Os mandamentos do advogado. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 2002.
INNERARITY, D. A Filosofia como uma das belas artes. Lisboa: Teorema, 2005.
IHERING, R. V. A luta pelo Direito. São Paulo: Martin Claret, 2000.
SELL, S. C. Comportamento social e anti-social humano. Florianópolis: Ijuris, 2006.