26.8.07

Poema

Quem é que não se lembra
Daquele grito que parecia trovão?!
– É que ontem
Soltei meu grito de revolta.
Meu grito de revolta ecoou pelos vales mais longínquos da Terra,
Atravessou os mares e os oceanos,
Transpôs os Himalaias de todo o Mundo,
Não respeitou fronteiras
E fez vibrar meu peito...

Meu grito de revolta fez vibrar os peitos de todos os Homens,
Confraternizou todos os Homens
E transformou a Vida...

... Ah! O meu grito de revolta que percorreu o Mundo,
Que não transpôs o Mundo,
O Mundo que sou eu!

Ah! O meu grito de revolta que feneceu lá longe,
Muito longe,
Na minha garganta!

Na garganta de todos os Homens



Amílcar Cabral (1924-1973). Poeta e político nascido no Guiné-Bissau, então colônia portuguesa. Amílcar se destacou na luta contra o colonialismo português sobre a África. Diante da recusa dos portugueses aos apelos pela libertação de Cabo Verde e Guiné, Amílcar tomou parte na luta armada. Foi assassinado em 1973, sem ter visto seu país se tornar reconhecidamente independente - o que só ocorreria em 1974. Poeta magistral em nossa língua, é lamentável que muitos brasileiros dele jamais tenham ouvido falar. Ah, o poema acima se chama mesmo Poema.

24.8.07

CESUSC Exercícios


Esses americanos são mesmo um povo atrasado, como é que ousam mandar para a prisão uma moça a quem, na linguagem clássica da criminologia, faltam dois pês?



Direito Penal II

1) Marcos, funcionário público, durante as férias, estupra Flora, vindo a ser condenado, definitivamente, a quatro anos de prisão. Ele perderá seu emprego? E se fosse empregado privado, poderia pelo crime, ser despedido por justa causa?
ROTEIRO DE RESPOSTA:
a) Verificar se o crime foi ou não cometido com abuso de poder/violação de dever (alínea “a” do art. 92), caso contrário aplicar a alínea “b”.
b) Verificar se a eventual perda do cargo é efeito automático da condenação (está no código, procure).
c) Empregado privado? Pesquise na doutrina.


2) Joel, policial, foi condenado a oito anos de prisão pelo crime de tortura. Perderá seu emprego? Depois de sua reabilitação poderá prestar concurso público para delegado de polícia?
ROTEIRO DE RESPOSTA:
a) Verificar o que diz sobre isso a lei de tortura (pesquisar nas leis anexadas ao seu código penal).

3) Em crime de ação privada, o querelante aceita perdoar apenas um dos querelados. Este aceita formalmente o perdão oferecido. Como ficará a ação contra os dois querelados restantes?
ROTEIRO DE RESPOSTA:
a) A resposta está facilmente localizada no código, no capítulo da Ação Penal.
b) Não esqueça de ter claro, para a prova e carreira, a diferença entre querelante e querelado.

4) Marina espancou seu filho Toninho, de cinco anos. Condenada a um ano de prisão, ela perderá o poder familiar sobre Toninho? E sobre seus dois outros filhos, Tomas, de 15 e Juliana, de 16?
ROTEIRO DE RESPOSTA:
a) Verifique se esse crime – lesão/maus tratos – é dos que autorizam a medida de restrição ao poder familiar;
b) Veja se a lei exige tempo mínimo de condenação para esse efeito;
c) Verifique se tal efeito é automático;
d) Pesquise na doutrina se tal efeito se estende aos demais filhos.

5) Maurício, condenado a dez anos por tráfico de drogas, cumpriu três, e pergunta-lhe se tem direito ao livramento condicional. Essa é a primeira condenação de Maurício. Pode ser beneficiário de eventual indulto?
ROTEIRO DE RESPOSTA:
a) verifique se tráfico de drogas cai na regra dos crimes hediondos;
b) verifique o tempo mínimo de cumprimento de pena para o livramento condicional de condenados por tal crime, quando não reincidentes;
c) verifique se tráfico de drogas enquadra-se na vedação constitucional ao indulto (art. 5º.,XLIII, da CF).

6) Dinarte, durante o período de prova do livramento condicional, é acusado da prática de roubo. Qual a conseqüência de tal acusação sobre sua condição de beneficiário do livramento condicional?
ROTEIRO DE RESPOSTA:
a) Pesquise o que é “período de prova”;
b) Veja na lei os possíveis efeitos de uma acusação (diferente de condenação) e seus efeitos.

7) Diante de uma pena privativa de liberdade em que caiba tanto sursis quanto sua substituição nos termos do art. 44 do Código Penal, o que deve o juiz fazer Explique.
ROTEIRO DE RESPOSTA:
a) O código penal é expresso nesse sentido. É só conferir.

8) Marcos, com 18 anos, cometeu o crime de roubo (art. 157, caput), em 22 de abril de 2006. A denúncia foi recebida pelo juiz em 05 de setembro de 2007. Citado, compareceu ao interrogatório. Mas, temendo ser preso, mudou-se para o estado do Pará. Ele agora está no seu escritório para saber quando prescreverá – se já não prescreveu – seu crime.
ROTEIRO DE RESPOSTA:a) Se ele compareceu ao interrogatório, não se suspende a prescrição;
b) Enquanto a pena não transitar em julgado para a acusação (o que parece o caso), a prescrição irá se regular pela regra do 109 do CP, a partir da pena máxima para o tipo cometido.
c) Verifique se, neste caso, deve o prazo ser contado a partir da data do fato criminoso ou do recebimento da denúncia.

9) Luís comete lesões corporais em 22 de fevereiro de 2005. Foi denunciado em 05 de março de 2006 (na mesma data a denúncia foi recebida) e julgado em primeira instância em 20 de março de 2007 (publicada no mesmo dia), a seis meses e 20 dias de prisão. A acusação não tem mais recursos. Houve prescrição? Explique.
ROTEIRO DE RESPOSTA:
a) Se já há pena máxima definitiva, é possível verificar a prescrição retroativa;
b) Verifique pela pena aplicada, mais a tabela do 109 do CP, se do fato até o recebimento da denúncia; ou desta até a publicação sentença não se passou o lapso prescricional in concreto.

10) Adroaldo, que cometera um estupro, foi considerado inimputável, por sentença transitada em julgado. Recolhido a hospital de custódia e tratamento, por um período mínimo de dois anos, ele já está lá há 11 anos - sendo os exames criminológicos desfavoráveis à sua soltura. Seu advogado alega que ele já está trancafiado por prazo superior ao máximo previsto para crime cometido (dez anos), logo deveria ser imediatamente posto em liberdade. Dê um parecer acerca da razoabilidade – legal e jurídica - do pedido do advogado.
ROTEIRO DE RESPOSTA:
a) Pesquise na doutrina;
b) Reflita.

22.8.07

A etiqueta do crime: considerações sobre o labelling approach

Receita indigesta
Os criminosos são, em grande medida, uma invenção do sistema de repressão penal; ao contrário do que pensa o senso comum, eles não são simples seres malvados, que andavam livres sobre a terra até que o Direito os descobriu e que, desde então, tenta, por meio das penas, neutralizá-los. Não, os criminosos não são produtos de descobertas, mas sim entes inventados pela lógica distorcida do sistema penal vigente. Para quem foi embalado pelo modelo etiológico – aquele do criminoso enquanto ser anormal - as afirmações acima podem parecer tão estranhas quanto acusar o sistema de saúde pública de ter criado os doentes, e é por isso que a primeira impressão que se costuma ter diante da abordagem criminológica que as subscreve, o labelling approach, é a de estarmos diante de uma das muitas teorias da conspiração, aquelas paranóicas construções teóricas destinadas a apontar conluios maquiavélicos que dirigiriam, sub-repticiamente, as instituições centrais de nossa sociedade, como o Direito e o Estado. O sistema penal inventar criminosos, onde já se viu...
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Mas antes de desenvolver uma antipatia irreversível pelo labelling approach, municie-se de algumas informações que dão o que pensar. A primeira é a cifra oculta, ou seja, a constatação de que há muito mais condutas praticadas contra o direito criminal do que o sistema penal tem condições de investigar e processar. Isso significa que muitos cometem crimes, mas apenas alguns serão ditos criminosos (ninguém é criminoso até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, lembra?). A segunda: há, mesmo proporcionalmente, muito mais pobres nas cadeias do que membros de outras classes. Da primeira afirmação podemos concluir que muito mais gente mereceria ser chamada de criminosa em relação àquelas que efetivamente são. Da segunda, inferimos que, não podendo perseguir a todos, o sistema penal persegue prioritariamente os mais pobres. Some-se a isso contradições como a seguinte: se há tantas críticas ao sistema penal brasileiro, de que há excesso de recursos e procedimentos que inviabilizam, por exemplo, a prisão do político desonesto, por que os estratos mais marginalizados da população caem tão facilmente atrás das grades? Por que essas dificuldades que o jurista conformado diz ser “inerente ao processo” somem no andar debaixo? Mistério...

Cifra oculta, dificuldade em criminalizar os ricos, excesso de pobres nas cadeias, esses são os ingredientes básicos da receita de como produzir criminosos. Reserve essas informações. E vamos em frente.
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São seus olhos
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Surgida nos EUA da década de 1960, a teoria do labelling approach, ou teoria do etiquetamento, sofreu uma forte influência do interacionismo simbólico, corrente sociológica que sustenta que a realidade humana não é tanto feita de fatos, mas da interpretação que as pessoas coletivamente atribuem a esses fatos. Isso significa, entre outras coisas, que uma conduta só será tida como criminosa se os mecanismos de controle social estiverem dispostos a assim classificá-la. O que é um crime, então? Crime, pelos menos em seus efeitos sociais, não serão, como ensinava o dogmático penalista, todas as transgressões injustificadas à lei penal. Não, crimes são apenas as condutas que a sociedade e seus órgãos punitivos decidem perseguir como tal. Sem certo consenso de que determinada conduta suspeita deve ser averiguada, que determinados fatos e indícios devem ser convertidos em um processo penal, não haverá, em seus efeitos práticos, crime.
Era isso que H. Becker, um dos principais expoentes da abordagem do etiquetamento, queria dizer quando sustentava que o desvio não está no ato cometido, nem tampouco naquele que o comete, mas que o desvio é a conseqüência visível da reação social a um dado comportamento. Ser desviante, ou criminoso, é, assim, o resultado de um etiquetamento social, e não o corolário lógico de uma conduta praticada. É possível, como bem sabemos, infringir as normas penais sem que se seja criminalizado. Pense-se, sobretudo, nas milhares de condutas presumivelmente delituosas das elites brasileiras, não investigadas por falta de “vontade” das autoridades competentes. Também não é incomum haver processos de criminalização sem que haja certeza acerca da autoria da conduta típica – pense nas investigações apressadas, nas exposições abusivas da imprensa, e nos processos judiciais mal conduzidos contra suspeitos miseráveis. Não, o crime não é algo que se faz, mas uma determinada resposta social a um algo supostamente feito.
O crime, portanto, não emerge naturalmente a partir de uma conduta proibida praticada por um agente imputável (modelo dogmático), nem resulta diretamente de uma conduta proibida praticada por um ser anti-social (modelo etiológico), mas é o resultado de uma interpretação sobre que aquela conduta, vinda daquela pessoa, merece ser classificada como crime. Exemplifica-se. Imaginemos uma mulher que tenta sair de uma joalheria com um caro e não pago bracelete quando é barrada pelos seguranças. Se essa aparente tentativa de subtração à coisa alheia móvel (art. 155 do Código Penal) será tomada como crime, sintoma compreensível de cleptomania ou mera distração, vai depender menos dos detalhes da conduta tentada do que do perfil da apontada infratora. A tese da distração cai bem, por exemplo, se a suposta tentativa fosse realizada por uma cliente habitual da joalheria; assim como a tese da cleptomania se adequaria perfeitamente se a acusada fosse uma famosa atriz de novela. Já para uma empregada da loja, a única tese “compatível com a realidade das coisas” é a de tentativa de furto puro e simples. A conduta é a mesma, a ausência de provas também, só o que variará, neste caso, são as suposições socialmente consideradas adequadas ao caso.
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Crenças presumidamente lógicas, mas claramente ideológicas na proteção dos mais poderosos é que resolverão a questão. “Acreditamos ser um sintoma de cleptomania” – diz em nota o dono da loja – “pois é ilógico crer que uma pessoa de elevada posição social iria se rebaixar a ponto de furtar uma jóia”. Eis aí uma declaração coerente com o imaginário popular de que o furto é delito exclusivo de pessoas pobres. Ora, se a cleptomania é um transtorno psíquico, sua manifestação não se ligará ao fato de se poder pagar ou não pelo bracelete, mas à compulsão de tê-lo sem pagar. Assim, a condição de ser pobre ou rico, clinicamente, não deveria importar. Ou esse transtorno é exclusivo de quem ganha acima de tantos milhões por ano? Mesmo o DSM IV (o manual de psiquiatria norte-americano) parece induzir a essa crença, ao colocar que o furto na cleptomania costuma ser de um bem de pouco valor monetário, relativamente às posses de seu praticante. Mas isso se deve à orientação corrente, a bem da sociedade, de que o diagnóstico para a cleptomania deve ser residual, só devendo prevalecer se não for mais bem explicado por outro transtorno de conduta. Rasteiramente: se a pessoa não precisava do que furtou, ganha força a tese da cleptomania; se precisava, deve ser furto mesmo.
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Políticos e corruptos de elite defendem-se da mesma forma: “Não preciso roubar.” Se, ao longo do mundo e, particularmente neste país, só se apropriasse dos bens alheios quem precisasse, o universo das finanças públicas seria esplendidamente superavitário. Ao contrário, se todos os necessitados passassem a roubar, a vida num país de tantos miseráveis como o Brasil seria insuportável. Para o mal ou para o bem, a lógica do “como sou rico, não roubo”/ “como sou pobre, roubo” não guarda relação com os fatos: apenas com ideologias. E é dessa ideologia que se beneficiarão a socialite e a atriz para explicarem que um bracelete não pago, em seu poder, na saída da loja, só pode indicar distração ou sintoma clínico; furto nunca. Mas essa mesma ideologia selará o futuro da empregada, sobre a qual a tese da distração, ou doença, será vista como uma afronta à inteligência dos personagens que conduzem seu indiciamento criminal. Logo o delegado a lembrará que “não nasceu ontem!”.
Então o que é um criminoso? Criminoso é aquele a quem, por sua conduta e algo mais, a sociedade conseguiu atribuir com sucesso o rótulo de criminoso. Pode ter havido a conduta contrária ao Direito penal, mas é apenas com esse “algo mais” que seu praticante se tornará efetivamente criminoso. Em geral, esse algo mais é composto por uma espécie de índice de marginalização do sujeito: quanto maior o índice de marginalização, maior a probabilidade de ele ser dito criminoso. Tal índice cresce proporcionalmente ao número de posições estigmatizadas que o sujeito acumula. Assim, se ele é negro, pobre, desempregado, homossexual, de aspecto lombrosiano e imigrante paraguaio, seu índice de marginalização será altíssimo e, qualquer deslize, fará com que seja rotulado de marginal. Em compensação, se o indivíduo é rico, turista norte-americano em férias, casado e branco, seu índice de marginalização será tendente à zero. O rótulo de vítima lhe cairá fácil, mas o de marginal só com um espetáculo investigativo sem precedentes.
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Não é o que se faz, mas o que se é

Contrariando os manuais acadêmicos, o labelling approach sustenta que é mais fácil ser tido como criminoso pelo que se é do que pelo que se faz. Essa afirmação ganha força quando nos lembramos da cifra oculta, nomenclatura que destaca que as condutas delituosas que chegam a virar processos judiciais constituem apenas a ponta do iceberg do total de condutas ilícitas efetivamente existentes em uma sociedade. Se nem tudo que, pela leitura da lei, deveria ser tido como crime assim é reconhecido pela prática dos operadores do sistema penal, deve haver um critério de seleção para decidir entre tantas condutas ilícitas praticadas quais serão, de fato, tratadas como crime. O labelling approach sustenta que tal critério é o índice de marginalização do sujeito, o número de estigmas que ele carrega, ainda que nenhum deles precise ser de natureza criminal. Nesse sentido, o sistema penal não teria a função de combater o crime, mas a de atribuir rótulos de criminosos aos já marginalizados.

Pensemos em duas pessoas viajando num ônibus. Escondida entre as poltronas das duas encontra-se um pacote contendo droga ilícita. Não se sabendo a qual delas pertence, investigam-se ambas. As duas se dizem inocentes e os indícios colhidos não são esclarecedores. Investiga-se quem são elas. O da direita é contabilista, empregado da mesma empresa há 10 anos, pai de família, de paletó e gravata. Já o da esquerda é um surfista, sustentado pelos pais, com um piercing na sobrancelha. Basta saber em qual dos dois seria mais fácil acrescentar o rótulo de criminoso para saber quem será mais enfaticamente investigado. Um rótulo predispõe ao outro. Surfista desocupado e traficante combinam muito mais facilmente do que contabilista empregado e traficante (pelo tirocínio de alguns policiais, quem tem menos dinheiro para viver tem mais dinheiro para comprar drogas). Na prática, em situações como essas, sabe-se que o Estado se lembrará, de fato e de direito, que é seu dever provar a eventual culpa do contabilista antes de sair alardeando que achou o culpado. É o que manda a lei. No entanto, com uma freqüência assustadora, diante do surfista desocupado o ônus se inverterá, cabendo ao este demonstrar sua inocência, trocando-se a presunção de inocência determinada pela lei pelas regras da pragmática repressiva.
O rótulo de marginal parece não ter aderência direta à pele dos indivíduos. Para aderir, necessário é que tais indivíduos primeiro tenham sido selados com outros rótulos estigmatizantes, é preciso que seu índice de marginalização seja alto. É assim que o processo contra o político desonesto quase nunca concluirá nada. As recorrentes alegações de ausência de provas, de cerceamento de defesa e a demora na ação, que levará à prescrição “sem julgamento de mérito”, o favorecerão antes que o rótulo de criminoso possa-lhe ser impingido. Já para investigar, processar e encarcerar um indivíduo pobre, o sistema repressivo é rápido e quase infalivelmente condenatório. É que a base onde fixar o rótulo de marginal já existia: a própria pobreza. Todos esperavam a condenação e ela veio. Nenhuma surpresa.
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Ladeira escorregadia

Um estigma predispõe ao outro. É como uma ladeira escorregadia: uma vez tendo descido o primeiro degrau da exclusão (ser pobre, desempregado, bicha, preto ou prostituta) é preciso ter muito cuidado para não descer mais outro e outro, até chegar ao final do processo excludente, sintetizado no rótulo de criminoso. É assim que comentários aparentemente causais-explicativos são dados na mídia quando se descobre, por exemplo, que o assassino era homossexual. Na leitura popular há um continuum do tipo: homossexual, pervertido, criminoso. Já se esperava. Da mesma forma, tudo parece estar esclarecido quando se descobre na casa do acusado de assassinato uma coleção de filmes pornográficos – que a autoridade exibirá como se fosse de relevância crucial à prova que lhe cabe buscar. A mente cozida em folhetins policiais, amiúde, segue uma nefasta lógica do tipo: gosto por pornografia = perversão = a predisposição assassina. Esse é um expediente que encanta a platéia, ávida por curiosidades e aberrações, e permite disfarçar a ausência de competência probatória do espetáculo.

Mas, é bem verdade, que um estigma não leva a outro apenas por efeito de um etiquetamento desonesto. Não, um estigma efetivamente pode levar a outro, porque quanto mais estigmas alguém carrega menos custoso lhe será assumir outros. Basta lembrar que todo estigma é uma depreciação no valor social de alguém. Assim, quanto mais estigmas esse alguém tiver menos socialmente ele valerá, tendo pouco a perder ao se dispor a assumir mais um rótulo depreciativo. Um sujeito marginalizado é mais facilmente recrutado para os modos de vida ilícitos. Depois de ter perdido o lar e a escola, é relativamente pouco custoso ao adolescente embrenhar-se no mundo das infrações, quer seja assumindo a culpa de outrem, quer seja efetivamente tomando parte na ação criminosa. A partir do momento em que desse adolescente já “não se esperava grande coisa”, abriu-se o convite para que dele se esperassem as piores coisas. Cada estigma aumenta a vulnerabilidade do sujeito às demandas do mundo do crime.

A quem já está no inferno – infere a lógica popular – custa pouco dar um abraço no diabo. Se já não se tem muito a perder, pode-se, com poucos receios, arriscar perder tudo, pois, em se tratando de dignidade, o valor de cada um de seus componentes decresce à medida que decresce seu todo. É preciso ter a honra geral intacta para que se possa ser desonrado em aspectos específicos. Mesmo o Direito civil segue essa crença. Assim, tradicionalmente será maior o valor da indenização estética de um dano produzido contra um rosto intacto, bonito, sem cicatrizes, do que se o mesmo dano fosse produzido contra um rosto já marcado e deformado. A lógica da reparação civil, neste caso, é bíblica: muito será dado a quem muito já tem (ou teve). Em forma de exemplo, quem não possui os dentes incisivos não deverá sofrer tanto com a perda de um dos caninos – sofrimento considerado terrível para aquele que tem uma dentição perfeita. Para as questões de estigma, esse critério de reparação civil parece aplicável: quanto menos respeito social se possui menos custoso é perder esse resíduo de dignidade.

A sociedade cria o marginalizado de forma a deixá-lo a apenas um passo da marginalidade. É assim que o dito crime organizado – comandado por pessoas nem um pouco excluídas – pode recrutar tão facilmente pobres, negros e miseráveis para fazer a parte suja e arriscada do tráfico. Recrutam-se pessoas cuja dinâmica da sobrevivência desceu ao nível do “se for preso, azar” ou “se morrer, morreu”. Pessoas que já não têm o que perder. Tire de uma pessoa uma boa parte de sua dignidade social e ela facilmente se encarregará de acabar com o resto, pois quanto mais baixa é a sua posição na sociedade, menor são suas alternativas de vida honrosa e menores são também os custos simbólicos de sua entrada no mundo do crime. Uma exclusão abre caminho para a outra e assim sucessivamente.

Embora um estigma possa facilitar a entrada em outro, isso não autoriza os acusadores públicos a fazerem uma dedução simplista de que quem já tem pouco a perder foi o responsável pelo crime de autoria incerta. Seria inverter causa e conseqüência. Ora a prostituta, por exemplo, tem pouco a perder acrescentando ao seu métier ações criminosas (como o pequeno tráfico de entorpecentes) justamente porque, mesmo antes de entrar no crime, já era tratada como se fosse criminosa. Se uma pessoa não perdesse a dignidade por ser prostituta, não lhe cairia facilmente o rótulo de criminosa diante de uma acusação mal fundamentada. É justamente porque a sociedade faz com que um estigma leve a outro que eles efetivamente seguem essa lógica. Num exemplo inverso, o médico viciado em morfina, que tendo acesso fácil à droga, e horários de plantão para disfarçar seu vício, será capaz de conservar sua dignidade de pessoa honesta e produtiva, não sofrendo os efeitos da marginalização. É viciado apenas, sendo razoável supor que repudiaria propostas criminosas – como traficar, furtar, matar – como qualquer outra pessoa. A lógica não é, portanto, a de que uma conduta ilícita leve a outra, mas a de que uma situação de marginalização seja um efetivo convite a que se abrace outra.

O que serve como explicação sociológica da entrada facilitada dos marginalizados no mundo crime, não serve como recurso simplificador dos procedimentos de investigação criminal. A conclusão de uma investigação criminal não pode se apoiar em máximas do tipo: “Dentre os acusados, é criminoso aquele que possuir o maior índice de marginalização.” Assim, é um absurdo que certos delegados diante de uma morte violenta e incerta numa favela, sem saber quem é a vítima e seu autor, sem nada saber daquele crime especificamente, digam com estúpida convicção ao repórter da TV: “provável envolvimento com o tráfico de drogas”, como se a morte dos que vivem em favelas não pudesse decorrer de motivos passionais, vingança pessoal, motivos fúteis, crimes patrimoniais, familiares etc. para acontecer; ali se morre apenas por ação do tráfico. A platéia social novamente gosta e o espetáculo pode ser conduzido de qualquer forma, pois quem se importa com tão desqualificado morto? Agora, diante da morte do político que ia depor num processo criminal no dia seguinte, alardeando que entregaria muitos nomes de pessoas importantes, o mesmo delegado seria pateticamente cauteloso: “Todas as hipóteses, inclusive de crime por motivações políticas, estão sendo averiguadas”. É que, particularmente no Brasil, ricos podem morrer de muitas formas; pobres apenas da forma que menos trabalho der à investigação.
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Só não paga quem pode
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Nos desdobramentos teóricos do labelling approach, o que chamamos de imputação criminosa seria, na verdade, o resultado de duas distorções, sintetizadas sob o sugestivo nome de “processo de criminalização”. Na primeira distorção, há a chamada criminalização primária, feita, sobretudo, pelo legislador penal, que consiste na eleição de condutas a serem consideradas criminosas não pelo critério do dano social que provocam, mas pela origem habitual dos que praticam tais condutas. Um exemplo paradigmático neste sentido é expresso pelo artigo 176 do Código Penal brasileiro que incrimina aquele que, dentre outras condutas, toma refeição em restaurante “sem dispor de recursos para efetuar o pagamento”. Sim, você leu certo, só há crime se quem tomou a refeição no restaurante não tinha dinheiro para pagá-la, mas se ele dispunha de recursos para tal e simplesmente preferiu não efetuar o pagamento não poderá ser incriminado. O objetivo dessa lei não é, como então fica óbvio, evitar danos ao patrimônio alheio, nem convencer as pessoas a que paguem a refeição tomada, mas evitar que os mais pobres possam se “aproveitar” de sua pobreza. A jurisprudência confirma: “Para configurar-se o crime, é necessário que o agente faça a refeição sem ter dinheiro para pagá-la; se tem recursos, mas não paga, como acontece nos ‘pinduras’ estudantis, o ilícito é só civil e não penal” (TACrSP, Julgados 90/83).

Ao criar leis, portanto, há um processo de criminalização primária, resultante da intolerância legislativa com a conduta dos mais pobres. Quando falamos de criminalização primária, falamos, em síntese, de duas coisas:

a) O crime não é uma realidade natural, descoberta e declarada pelo Direito, mas uma invenção do legislador, algo é crime não necessariamente porque represente uma conduta socialmente intolerável, mas porque os legisladores desejaram que assim fosse;


b)E essa invenção segue critérios de preferência legislativa, cujos balizamentos não costumam respeitar princípios de razoabilidade ou proporcionalidade, gerando leis penais duríssimas contra as condutas dos mais pobres e rarefeitas em se tratando de crimes típicos dos estratos sociais elevados.

Na segunda distorção, chamada de criminalização secundária, entram em ação os órgãos de controle social (polícia, judiciário, imprensa etc.) que, ao investigarem prioritariamente os portadores de maior índice de marginalização, acharão – por óbvio – um maior número de condutas criminosas entre eles. Se mais vezes os pobres são tidos como suspeitos, se condições como possuir emprego e residência fixa influenciam nos rumos do processo penal, se muitos dos advogados que defendem os mais pobres chegam tarde às audiências e demonstram pouco interesse nessas causas, se não ter um modelo familiar idêntico ao das classes de onde provêm os juízes e seus auxiliares facilita, sobremaneira, o rótulo de “proveniente de família desestruturada”, se ter um passado tortuoso é capaz de suprir a ausência de provas na presente acusação, então, não há outra saída: os marginalizados serão facilmente convertidos em marginais. A etiqueta penal lhes aderirá à pele, e dela jamais sairá.

Em síntese, o labelling approach atuou como um despertador inconveniente no sono do penalista dogmático, que jurava que o Direito penal nada mais fazia do que nos proteger de pessoas essencialmente más. Ao contrário, o labelling veio para mostrar que nosso tipo habitual de criminoso – pobre e encarcerado – revela muito pouco sobre a estrutura do mal em si, e muito, mas muito mesmo, sobre a ideologia desigualitária de nossa sociedade.


Bibliografia:

ANDRADE, V. R. P. (2003). Sistema penal máximo vs. Cidadania mínima. Porto Alegre: Do Advogado.
BECKER, H. (1978). Los estraños. Buenos Aires: Tiempo Contemporáneo.
BERGER, P. L. e LUCKMANN, T.(2000). A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes.
Farrington, D. (1991). Psychological contributions to the explanation of offending. Issues in Criminological and Legal Psychology. Vol. 1, n.º 17, 7-19.
GOFFMAN, E. (1988). Estigma. Rio de Janeiro: Guanabara.
LOMBROSO, C. (1969). L’uomo delinqüente. Roma, s.ed.
SELL, S. C. Comportamento social e anti-social humano. Florianópolis: Ijuris, 2006.
ZAFFARONI, E. R. & BATISTA, N. Direito penal brasileiro I. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
XIBERRAS, M. (1996). As teorias da exclusão. Lisboa: Instituto Piaget.

11.8.07

Multa moral

Está fazendo sucesso na mídia a iniciativa de uma escola de Jaraguá do Sul, Santa Catarina, que instituiu uma “multa” de 10 centavos por palavrão falado em sua biblioteca. Aparentemente a idéia é boa e, segundo alguns funcionários entrevistados, os próprios alunos tratam de fiscalizar seus colegas desbocados, delatando-os para que sofram o simbólico prejuízo financeiro. Dizem que o nível do palavreado local elevou-se. Por que não pensamos nisso antes? Porque não funciona.

A idéia de aplicar multa a deslizes morais não é nova. Sendo sistematicamente abandonada porque, apesar dos bons resultados inicialmente verificados, ela costuma trazer um efeito colateral fulminante: ao converter uma obrigação moral (aquela que se deve fazer por si mesma, por considerá-la o jeito virtuoso de proceder) em uma obrigação externamente motivada, realizada sob pena de multa, o sujeito mercantiliza sua própria noção de dever, surgindo-lhe a idéia de que tudo tem um preço, inclusive sua conduta moral, conduzindo-lhe, assim, ao cálculo utilitarista acerca do quanto tem disponível, em dinheiro, para transgredir.

Tudo vira um jogo

Como os professores vão passar um sermão no garoto malcriado se ele já está com os 10 centavos à mão? “Ora, cobre a dívida, e não me encha o saco, professor!”. A autoridade moral do mestre ficaria desautorizada em si mesma; ele se converteria num mero cobrador de deslizes éticos; a caixa registradora substituiria a advertência responsabilizante.

E quando a penalidade for retirada o que restará? Restará a consciência de que transgredir é apenas uma brincadeira de gato e rato, de pagar pela burrice de não ter visto que algum delator estava à espreita. A retirada da punição terá o efeito de uma revogação da norma por ela protegida: estarão liberados os palavrões. Não era isso que aconteceria conosco se amanhã surgisse uma lei dizendo que estacionar em local proibido, ou falar ao celular no volante, embora ainda fosse desaconselhável, não acarretaria mais qualquer tipo de punição? Não teríamos sempre nossos motivos "excepcionais" para estacionar ali, pendurar-se ao fone aqui? Acho que sim.

É conhecimento elementar de sociologia jurídica que a retirada da pena leva à conclusão pessoal de revogação da norma a ela associada. Morto o cão, morta a raiva.

Isso ocorre mesmo com as chamadas sanções premiais. Passe a dar ao seu filho pequeno um real todas as vezes que ele se dispuser a tomar banho. Depois revogue a premiação. Diga que tomar banho “nada mais é do que uma obrigação moral.” Ele vai se sentir lesado, vai acreditar que você o injustiçou, tentará compensar o desequilíbrio contratual gerado: vai se esfregar menos, gastar mais xampu, molhar todo o banheiro, dizer que já tomou... Aí então, haja punição ou a volta do prêmio...

Prêmios materiais ou multas dadas para regularem comportamentos tendem a exigir perpetuidade. Mas o sujeito não se condiciona? Com o tempo não dá para tirar o reforço premial e pronto? Felizmente (para quem admira a liberdade humana, pelo menos) não é tão simples assim; se fosse, meu patrão poderia cancelar meu salário que eu continuaria indo para o trabalho; o governo poderia dispensar os fiscais da Receita que, por inércia, continuaríamos a dar a César o que não é de Deus.

Israel e suas creches

Em Israel, narram os autores de Freakonomics, uma experiência em alguns aspectos semelhante a de Jaraguá do Sul foi tentada. Ali os pais costumavam se atrasar demais para pegar os filhos na creche ao final do dia. Isso trazia aborrecimentos à instituição que tinha que manter algum professor de plantão, aguardando a chegada tardia dos pais e suas desculpas triviais. Então se decidiu implementar uma multa para atrasos superiores a 10 minutos, no valor de três dólares. O resultado? Aumentaram os atrasos, pois os pais agora não mais se sentiam culpados por fazerem alguém esperar por eles na creche: estavam pagando pelo atraso. Quem paga não precisa de desculpas nem de satisfações, quem paga tem uma liberdade que nasce do bolso. Desculpa é coisa para quem depende de favores alheios. Não é à toa que Adolpho Bloch dizia, sabiamente, que se devia fazer de tudo para fugir de favores: “De graça nem por um milhão!”.

As multas de trânsito

De certo que as multas de trânsito têm certa funcionalidade. Evitam transgressões. A razão disso é que as regras do trânsito não são, em geral, normas morais: ninguém ficará com remorso por ter ultrapassado o limite de velocidade quando as condições do carro e da pista eram convidativas. Mas se há um guarda ou um radar nos monitorando, obedecemos ao limite de velocidade imposto. Um pouco à frente, sem a menor culpa, aceleramos de novo. Estamos no celular, dirigindo. Ops, um policial! Escondemos o aparelho. “Não caiu não, é que tinha um guarda, e eu não podia falar...”.

Quando uma regra não possui apoio da moral, quando obedecer-lhe não nos parece, por si mesma, uma virtude, a pena é tudo o que lhe resta. Mas a pena só dissuade na medida de sua relativa certeza de aplicação e enquanto permanecer vigente. Todos se comportam conforme as ordens do semáforo eletrônico, mas uma infinidade de pessoas volta de festas dirigindo embriagado. O que varia em ambos os casos, como se vê, não é o perigo da ação contrária à lei: mas a quase certeza de punição no primeiro caso e a quase certeza de que no caminho de casa não haverá nenhuma blitz e seus bafômetros. Quando uma obrigação não é percebida como moral, a presença do fiscal é sua única garantia de obediência.

Moral da história

Só a moral, por ser uma obrigação autônoma, nos mantém controlados mesmo quando a pena não existe ou sua aplicação é falha. Numa lição que remonta a Kant, só quando eu cumpro uma regra por acreditar tratar-se de algo que me é devido fazer, sem esperar ou temer nada por isso, é que estou sendo um sujeito ético. E é somente nesse caso que eu sou um sujeito moralmente livre, pois meus limites são impostos pela minha própria consciência. Mas se cumpro algo porque temo uma punição, estou sendo escravizado pela norma: faço porque os outros – a sociedade - assim deseja. Nessa situação, preciso ser estritamente vigiado.

Num sistema de regras sociais legítimas - éticas mesmo - deve-se esperar que o número daqueles que seguem os comportamentos exigidos porque acreditam que isso é o que de fato lhes cabe fazer deva ser sensivelmente superior ao número daqueles que adequadamente se comportam apenas por que temem punições. Santa Catarina tem cerca de 17 mil policiais e seis milhões de habitantes. Por sorte, a imensa maioria dos catarinenses faz o que é certo porque quer continuar em paz consigo mesmo e não porque teme uma excepcional atuação da polícia. Isso se chama civilização.


Moral com moral se paga

Michael Walzer dizia que para que haja justiça nos sistemas humanos é preciso que se impeça que a lógica de uma determinada instituição social passe a ser a lógica de outra. Por exemplo, a lógica do amor é a do desejo, da admiração do outro em si; a do dinheiro é a da mercantilização das coisas. Num mundo justo, dinheiro não poderia ser utilizado para comprar amor; nem amor utilizado para auferir dinheiro. Seria injusto que isso ocorresse. Na mesma linha, a moeda da moral é a da auto-satisfação do dever cumprido, do querer bem-conviver com os demais em sociedade. Se o dinheiro passar a regular a moral, ela se destruirá, por ter se sido colonizada pela lógica mercantil.

Infelizmente não há muito que inovar: comportamento moral só pode ser reforçado por sua própria lógica. No caso escolar, isso se daria fazendo os alunos compreenderem, e sentirem, que sem tais normas a vida em coletividade se tornaria empobrecida, agressiva, ríspida e deplorável. No entanto, é preciso reconhecer que muitas regras de ontem não são mais legitimadas hoje. Perderam a função. Poderíamos inclusive investigar se a interdição dos palavrões não é uma delas. Cada vez mais a televisão, as rádios, as músicas, os livros, os adultos bem instruídos, as mães, os pais e os avós os utilizam. Seriam ainda imorais os palavrões?

A extinção das cegonhas

A maior parte dos palavrões possui conotação sexual. No passado, eles ofendiam, sobretudo na boca das crianças, porque indicavam um conhecimento vulgar das ações escondidas da mamãe e do papai, do titio e das moças da casa de tolerância. Hoje, quando as cegonhas já não fazem mais entrega e que a metáfora agropecuária da sementinha plantada na mamãe causa risos na tuminha do pré-primário, é de repensar a subversão causada pelos palavrões.

Talvez as palavras obscenas tenham de fato perdido qualquer importância moral, tornando-se seu emprego mero aspecto de estética lingüística: “Em nossa escola comemos com elegância, falamos com garbo, vestimo-nos a caráter.” Se dizer palavrões deixou de ser um ato moralmente reprovável, se aquele que o fala não mais sente culpa e aquele que o escuta não mais se ofende (embora possa fazer que sim, “para educar as crianças”), só resta mesmo as sanções externas. Aí sim, ponto para Jaraguá do Sul. Mas se palavrões ainda ofendem a moral, então é melhor voltar ao tradicional, a ladainha: “Menina, isso não se diz!”, “Era o que faltava, uma moça com uma palavra dessas na boca!” “Ai, ai, ai!!!” “Vai de castigo!”.

Em Jaraguá, e sua multa, essa menina poderia faceiramente responder: “Que é isso, babaca, para que ir de castigo se eu posso ir ao banco?”.

4.8.07

Do fundamento das penas criminais

Há muito se vem debatendo qual é, afinal, o fundamento das punições estatais, sobretudo do encarceramento. Para uma primeira abordagem, esse fundamento residiria na retribuição ao mal causado pelo criminoso. Com a punição, o Estado estaria se vingando daquele que ousou desobedecer as suas ordens. Nesse sentido, não interessa se a pena é eficaz para ressocializar o preso, o que interessa é que ele pague o que deve à sociedade. Nessa lógica, quanto menos conforto houver nas prisões, maior será o peso vingativo do Estado. A pergunta-chave para equacionar o estilo e a duração da pena para a abordagem retributivista é a seguinte: diante do mal causado pelo transgressor, quanto de sofrimento o Estado está legitimado a infligir-lhe? As respostas têm ido da simples advertência verbal à pena de morte.

Uma segunda abordagem é a utilitarista. Baseia-se na idéia de que a pena aplicada deve ser útil à sociedade, sobretudo pelo seu potencial de dissuasão de condutas criminosas futuras. O objetivo principal não é fazer sofrer o condenado, mas, a partir de seu sofrimento, mostrar às demais pessoas em sociedade a forma como o Estado reage diante daqueles que o desobedecem. Há muitas críticas a essa visão. A primeira delas é de que o Estado não tem o direito de utilizar um ser humano concreto, ainda que condenado, como mero instrumento de exemplificação social. Isso contraria as noções de dignidade e justiça. De fato, suponhamos que numa determinada cidade esteja se tornando cada vez mais comum a prática de pequenos furtos. O juiz da cidade, que até o dia anterior costumava aplicar penas leves a esses delinqüentes, resolveu, a título de exemplo, sentenciar pesadamente os acusados que hoje lhe forem apresentados. Isso faria com que os que praticaram o mesmo delito ontem e hoje recebam penas muito diferentes. Seria isso justo?
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Ademais, é voz corrente nos meios jurídicos ser preferível absolver dez culpados a condenar um inocente. Pois condenações indevidas são o sumo suplício do injustiçado e o sumo erro do Estado. Mas para o utilitarismo, que se importa menos com o condenado e mais com os efeitos sociais da condenação, é preferível condenar um suspeito a deixá-lo vagar livre por aí, já que isso daria a impressão social de que é possível cometer crimes sem ter aborrecimentos. Condenações indevidas devem ser indenizadas, mas, ainda assim, seriam preferíveis ao risco de que se proliferasse a idéia de que o crime, por ficar freqüentemente impune, compensa.
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Uma terceira corrente é a ressocializadora. Seu fundamento é o de que a pena deve permitir que o agressor se corrija e volte à sociedade como um bom cidadão. Num sistema como o brasileiro, que limita a pena de prisão a trinta anos e não autoriza a pena capital, esse seria o modelo mais coerente. Afinal, se o condenado um dia há de voltar à vida em sociedade, se faz mister que se ressocialize. No entanto, vários problemas interferem nesse desiderato. As condições desumanas de nossos presídios, a pressão popular para que os presos não tenham qualquer conforto (a população, em geral, é adepta do retributivismo) e a falta, máxima no Brasil, de elites morais que sirvam de espelho de bons comportamentos para os egressos de nossas prisões, dificultam sua conversão a modelos pacíficos de convivência.

Muitos salientam que a falta de oportunidades que a sociedade concede aos egressos das prisões é um dos motivos do fracasso do sistema ressocializador. Isso ocorre, não há dúvida. Mas poderia não ocorrer? O síndico que contrata para zelador de seu prédio um ex-apenado corre um grave risco social. Se por acaso o egresso da prisão voltar a delinqüir e molestar alguém da vizinhança, acusar-se-á esse síndico de ter sido imprudente, e se o responsabilizará moralmente pela infeliz escolha (até ontem, uma escolha solidária). Nem mesmo o Estado contrata, para a maioria de seus cargos, pessoas que já foram condenadas. Quando alguém já delinqüiu seriamente, carrega consigo o pesado ônus de uma identidade desacreditada. Esse ônus que recai como um peso sobre o ex-delinqüente é o reflexo de uma cautela social. A sociedade é credor melindroso, uma vez tendo sido vítima de velhacaria, nega-se a novos empréstimos de confiança.
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Um outro problema, trazido pela teoria ressocializadora: se a função da pena seria recuperar, como fundamentar a prisão de sujeitos que se mostram arrependidos e cujo histórico e excepcionalidade de seu delito leva a crer que não voltarão a delinqüir? Há muito, criminologistas vêm levantando o problema representado pelo passional puro: aquele indivíduo que, movido por episódica paixão, comete um crime isolado, incompatível com sua biografia. A punição de certos assassinos passionais de esposas adúlteras exemplifica o problema. Suponhamos o caso de um bom cidadão, caridoso, sem nenhuma história de crime, mas que, em momento de grande decepção e raiva, matou a esposa, cuja infidelidade acabara de descobrir. Ele se entrega à polícia, chora, mostra-se arrependido. Psiquiatras subscrevem laudos de que ele não representa perigo à sociedade etc. Por que o colocar na cadeia? Certamente não para ressocializá-lo. Ele não precisa disso. Só restaria para tal intento a aplicação das outras teorias. Para os retributivistas, pois, dever-se-ia encarcerá-lo como um castigo; para os utilitaristas, para que sirva de exemplo.

Um óbice ainda maior à abordagem ressocializadora é que ela subscreve, sem provar, uma noção positiva de natureza humana, sempre recuperável para o bem. Da filosofia platônica, passando pelo cristianismo, vindo até as concepções penais contemporâneas, acredita-se que o mal é um equívoco, que ele nada mais é do que a ausência do bem. Bem para o qual todos tendem, basta que se lhes desperte as virtudes latentes. Essa não é uma tese cientificamente demonstrável, é um axioma da antropologia ocidental. Os exemplos de pessoas que, a despeito do afeto e oportunidades que lhes foram dados, jamais saíram das sendas do crime apenas se avolumam. A tese parece mesmo estar errada, dada a freqüência estatística da reincidência prisional ao longo do mundo. Além disso, alguns estudos em psiquiatria forense vêm apontando para a irrecuperabilidade de certas patologias anti-sociais.
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Mas é humanamente compreensível, e até louvável, que a tese da sempre possível recuperação humana saia ilesa dessas contrariedades. Se não sabemos se uma dada tese sobre o ser humano é ou não verdadeira, mais prudente é escolher a versão que lhe aumenta as oportunidades. Fazemos isso com o princípio do na dúvida, a favor do réu, sendo compreensível que o façamos também diante da dúvida acerca da recuperabilidade, ou não, de um ser humano.


Abaixo, de forma esquemática, são apresentadas essas e outras razões utilizadas para fundamentar a pena de prisão.




Visão esquemática dos objetivos declarados da pena de prisão


Objetivo I:


Vingança pública (= Fazer sofrer o criminoso)

Direcionada:
Ao criminoso, e, indiretamente, às suas vítimas.
Razões alegadas:
- O criminoso deve sofrer, proporcionalmente, o mal que causou às suas vítimas.
- O sofrimento do criminoso é um direito das vítimas e as ajuda a superar a dor do ultraje sofrido.
- Tradução popular: “Nós queremos que o criminoso pague pelo que fez.”

Críticas:
- O Estado não pode se igualar ao criminoso, agindo contra ele de forma semelhante a que ele agiu contra suas vítimas.
- Medir a pena pelo sofrimento em espécie causado à vítima é ilusório e injusto. Ilusório porque o sofrimento da vítima – ou de seus familiares – é subjetivo, único e não neutralizável pela dor imposta ao culpado. Injusto porque, medida pelo sofrimento da vítima, um homicídio culposo (não intencional) mereceria a mesma pena que um homicídio doloso (feito com clara intenção matar) já que, por exemplo, a dor da mãe enlutada não costuma ser sensível às nuanças de intenção do autor do delito. Intenções que são justamente a base de nosso sistema de responsabilização penal.
- No caso de crimes sem vítimas concretas (como porte ilegal de armas ou de drogas), ou de difícil especificação das vitimas (tráfico de drogas, corrupção etc.) fixar a pena com base no sofrimento causado torna-se um procedimento aleatório, nebuloso e, por isso mesmo, arbitrário, contrariando as mais elementares noções de segurança jurídico-penal.
- Em casos de crimes patrimoniais puros, a dor (que é um dano monetário objetivo) seria mais eficientemente neutralizada por indenizações pecuniárias às vítimas (pagas pelo condenado ou, caso ele não possa fazê-lo, pelo Estado, como decorrência de sua falha em garantir a segurança dos cidadãos).
- Além disso, alguns estudos sugerem que as vítimas sentem-se melhor quando conseguem perdoar seus ofensores do que quando têm a oportunidade de vingarem-se deles.


Objetivo II

Prevenção especial negativa (= Tirar o criminoso de circulação)

Direcionada:
Ao criminoso

Razões alegadas:
- A pena serve para neutralizar o criminoso, mantê-lo à distância de novas vítimas.
- Tradução popular: “Preso, ele não incomoda mais!”


Críticas:
- Enjaular o criminoso, simplesmente, é uma medida paliativa quanto à segurança da sociedade. Quando seu tempo de pena expirar, a tendência do condenado – pelos efeitos deletérios do cárcere – é voltar mais propenso ao delito.
- Ademais revela uma visão negativa do ser humano, aproximando-o de feras que não podendo ser “domesticadas” devem permanecer trancafiadas pelo máximo tempo possível.
- O tempo de pena do sujeito tem que ser regulado pelo crime que ele cometeu e não pelo mal que a sociedade acredita que ele possa vir a fazer. Em outras palavras, não se podem aplicar penas presentes justificando-as por eventuais crimes futuros. O crime é o pressuposto lógico-jurídico da pena e não o contrário.
- Somente penas como a de morte ou a perpétua (vedadas pela Constituição Brasileira) seriam coerentes com a proposta neutralizadora.
- Some-se a isso que, para neutralizar o condenado, o sistema prisional deveria ser não apenas à prova de fugas, quanto capaz de evitar que de dentro de suas grades o crime fosse despachado para a sociedade (como é sabido, o chamado crime organizado brasileiro formou-se nas prisões e delas são comandados).


Objetivo III

Prevenção especial positiva (= Humanizar o criminoso)

Direcionada:
Ao criminoso.


Razões alegadas:
- O criminoso é um ser com deficiências em seu desenvolvimento pessoal-social. Seja ao nível cognitivo, moral ou social ele precisa de ajuda para transformar-se em uma pessoa normal.
- A pena deve ser ressocializadora, educativa, re-adaptante.
- Tradução popular: “O preso precisa ser recuperado para a vida em sociedade.”


Críticas:
- O criminoso não é necessariamente alguém mal-adaptado ou incapaz.
- Mesmo que fosse um ser socializado de forma nociva à sociedade, o Estado não pode forçar uma pessoa a se transformar moralmente, isto seria uma forma de violação da liberdade de crença, inerente ao ser humano. O Estado pode exigir a abstenção da prática de crimes, mas jamais pode exigir pureza de pensamentos.
- Se os criminosos nos parecem sempre carentes de educação, de família modelar, ou mesmo, de boa aparência, é porque somos levados a confundir criminoso (um conceito legal aplicável do ladrãozinho, passando pelo assassino, ao sonegador de impostos e ao político corrupto) com os criminalizados (estereótipo que só vai do ladrãozinho ao assassino pobres).
Saliente-se:

- O crime, como seria de se esperar, é cometido por pessoas dos mais variados níveis de educação e renda, portanto, criminosos há de todos os tipos sociais. Mas para ser encarcerado é preciso ser mais do que um mero praticante de ilícitos penais: é preciso ser desqualificado o bastante para ser selecionado pelas agências de persecução e condenação penal (polícias e sistema de justiça). Essa é a razão porque confundimos encarcerados - que são invariavelmente pobres - com criminosos e, assim, não é difícil generalizar que sendo os presos pobres e incultos - e sendo os presos nosso modelo mental de criminosos - lhes falta educação, integração e ressocialização.
- Para ressocializar o condenado, o encarceramento haveria de reforçar o lado humano da sua identidade. Em nosso sistema, no entanto, o que é reforçado é seu lado criminoso: o sujeito é resumido ao seu crime. Um indivíduo que com 30 anos de vida cometeu um único crime, numa única tarde, pode ter feito algo realmente monstruoso, mas restam 99,9% de seu tempo vivido para atestar que ele é mais do que o “monstro” daquela tarde. Mas confundido com o seu crime, que passa a ser ele próprio, o indivíduo sente que nada mais tem a perder e acaba por aceitar a identidade desacreditada que lhe foi atribuída, com seu conseqüente desvio para a criminalidade tornada, então, modo de vida.
- Por fim, para “melhorar” alguém o ambiente carcerário haveria de ser moralmente superior ao ambiente de origem do condenado, o que não condiz com a realidade.


Objetivo IV

Prevenção geral negativa (= Amedrontar futuros candidatos aos crime)

Direcionada:
À sociedade

Razões alegadas:
- A condenação do criminoso serve para intimidar a sociedade, mostrando o que acontece aqueles que delinqüem.
- Tradução popular: “A punição deve ser exemplar, para que os que estão pensando em cometer delitos semelhantes sintam o terrível peso da lei.”


Críticas:
- Um Estado que precisa impor suas leis unicamente pelo terror revela que vive em confronto com sua própria sociedade.
- O preso é tratado como instrumento de suplício, a fim de infundir medo à sociedade, negando sua condição de pessoa.
- As penas terão que ser extremamente duras e certeiras para causar o pavor nos demais.
- O preso tem o direito de não servir de contra-exemplo à sociedade, pois a pena dever ser medida pela culpabilidade do agente e não por seu efeito intimidatório sobre a coletividade.


Objetivo V

Prevenção geral positiva (= Convencer a sociedade que vale a pena obedecer as leis)

Direcionada:
À sociedade

Razões alegadas:
- Ao delinqüir o sujeito se torna útil à sociedade na exata medida em que o impacto público de seu crime leva os demais a reforçarem seus votos de repugnância a tal conduta, fortalecendo o consenso de que o crime é errado.
- A condenação do criminoso serve, então, para reforçar os laços sociais, explicitar o que é crime, aumentar a crença na justiça e a idéia de que vale a pena ser honesto.
- Tradução popular: “Se não acontecer nada com esses criminosos, eu também vou entrar para o mundo do crime!”


Críticas
- O preso é utilizado como instrumento educativo para a sociedade.
- O preso tem direito de não servir de contra-exemplo aos demais.
- Crimes que não ocasionem repulsa pública (que não sejam transgressões sociais) deveriam permanecer impunes porque utilizam a justiça sem reforçar a idéia de que o crime não deve ser cometido. Assim, ao punir o contrabando, a pirataria, a sonegação fiscal das empresas (tidos popularmente como formas de defesa contra as injustiças da economia ou do governo), o sentimento gerado na população é o de que as autoridades estão perseguindo questões irrisórias, ao invés de "subirem os morros", onde estariam os verdadeiros criminosos.



Bibliografia:

SELL, S. C. Comportamento social e anti-social humano. Florianópolis: Ijuris, 2006.
ZAFFARONI, E. R. & outros. Direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan: 2006.