24.11.07

Fugas para o encotro

A morte narra:


"Certa vez um mercador de Bagdá mandou seu servo comprar provisões no mercado. Pouco depois, o servo voltou, branco e trêmulo, e disse: 'Mestre, agora mesmo, quando estava no mercado, fui empurrado por uma mulher no meio da multidão e, ao me virar, vi que fora a Morte quem me empurrara. Ela me olhou e fez um gesto ameaçador. Agora me empreste o seu cavalo, vou calvagar para bem longe desta cidade, a fim de evitar o meu destino. Irei a Samarra: lá a Morte não me encontrará'. O mercador emprestou-lhe seu cavalo. O servo montou, enfiou as esporas nos flancos do animal e, tão rápido quanto este conseguia galopar, se foi.

Então o mercador foi até o mercado, viu-me de pé no meio da multidão, veio até mim e disse: 'Por que você fez um gesto ameaçador para o meu servo, quando o viu esta manhã?' 'Não era um gesto ameaçador', respondi, 'era só uma reação de surpresa. Fiquei atônita de vê-lo em Bagdá, já que tenho um encontro marcado com ele esta noite, em Samarra'.
- Somerset Maugham



Parece ser comum que quando pensamos em fugir à rotina questionemos os nossos condicionamentos mentais, como o pensar lógico, racional, cauculista. As saídas da rotina prometem trazer um assombro ilógico e místico, uma sensação de vida renascida, - que as estratégias consumistas pretendem financiar num caminho de santiago (existe transfiguração mística mais prét-à-porter ?), na iniciação de um mago paramentado, numa lenda pessoal de livraria, ou em vários aleluias...



Parece-me claro que a rotina não está nas coisas (na casa-trabalho-parceira/o) mas na forma segura com que se quer administrar o presente. Rotina é modo de ser no mundo, quem não convive bem com riscos vai ser rotineiro... Mas quem deseja viver o tempo inteiro correndo riscos? Queremos filmes de ação, mas vida calma e controlada... Por isso nos esforçamos para saber, antecipadamente, tudo o que está ocorrendo a nossa volta, repetimos jeitos de ser, de vestir, de pensar e de falar (times que, se não estão ganhando, pelo menos não estão nos causando especiais problemas...). Queremos saber previamente até o que nossa parceira está pensando. Depois reclamamos de uma vida sem surpresas! Rotinizar é uma estratégia para viver num ambiente conhecido, sem solavancos. Pode até não possibilitar grandes encantamentos, mas também na rotina não haverá lugar para decepções repentinas...



Como é diferente a paixão! Nela nos encantamos com risco, nos entregamos felizes à insegurança. Será que ela gosta mesmo de mim? Como será que ela é? Será que ficará ofendida se eu disser tal coisa? E se eu omitir essa outra? Que perfume, que cor, que lugares a encantarão? Oh, dúvida cruel, oh, medo de errar querendo acertar, esforçar-me e decepcionar. Como eu queria poder ler-lhe os pensamentos.... E, na falta da sonhada habilidade, a imaginação vai preenchendo a ausência de conhecimentos sobre a pessoa amada. E quem ama, sempre presume que o ser amado é mais do que comumente de fato é (paixão é auto-ilusão em forma de febre!).



O tempo passa. O vazio pode se estabelecer entre os amantes rotineiros, mas talvez seja errado atribuir esse vácuo unicamente à outra pessoa, que já não é mais como foi (será que algum dia, fora de sua cabeça, ela foi mesmo diferente?). O vazio não vem da outra pessoa, mas da ausência de riscos na vida. É que enquanto corremos riscos não temos tempo para parar e refletir sobre nós mesmos.



Mas, sob os efeitos inerciais da rotina, começa a sobrar espaço para pensamentos inoportunos. Estando a vida entregue ao piloto-automático, ressurgem aqueles terríveis questionamentos, há muito recalcados, acerca do sentido das coisas, do nosso envelhecimento inevitável e da marcha para o fim... O verdadeiro vazio é sempre sentido solitariamente. Você pode ir atrás de novas aventuras e anestesiar-se, mais um pouco. Mas, com a rotina, ele voltará - ele sempre volta. E fará as perguntas de sempre: "por que isso tudo?", "por que não para sempre?"


A rotina também pode ser utilizada de forma conscientemente instrumental: às vezes rotinizamos de forma seletiva partes de nossa existência, para quê? Para liberarmos energia para outras áreas da vida que nos encantam de fato. Meu trabalho pode ser rotineiro, mas talvez não meus prazeres (por isso justamente são prazeres)...


Não quero trabalhar criativamente para os outros, quero ser rotineiro para eles e encantador para mim próprio.


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Mas, na essência, é o seguinte:


O grande paradoxo de nossas vidas é que nos entregamos a rotina para fugir dos riscos (da paixão, da desordem, da incerteza) e, justamente, por isso, arrajamos tempo para encararmos o maior dos riscos: disponibilidade para pensarmos sobre nosso destino.
Não adianta fugir de Bagdá, alguém nos espera em Samarra.

15.11.07

Proibir os pit bulls?

Seria um tanto ridículo ser contra os cães da raça pit bull em si mesmos. Enquanto seres vivos, esses animais têm seu valor intrínseco e merecem um tratamento respeitoso e protetor. Mas parece razoável concluir que não se tratam de criaturas adequadas para conviverem entre humanos, como se fossem uma raça de cães qualquer. A história das motivações dos homens que “projetaram” esse cão - para o combate sem tréguas - hoje condena a possibilidade de circularem livremente entre nós. O sangue do guerreiro destemido, de um kamikaze preparado para as ultimas conseqüências na arena, ferve-lhe nas veias, não raro transbordando em violência contra a espécie que os criou.
A agressividade elevada, que era virtude no cão guerreiro, torna-se hoje tragédia, quando dele se esperaram coisas simples, como fazer companhia ou brincar com as crianças. Excepcionalmente pode até dar certo, mas não haverá surpresa se ocorrer o óbvio.

Com efeito, tais animais foram a resultante de cruzamentos seletivos artificiais (realizado por homens dados a rinhas de cães, ataques a touros (bull baiting) e outras truculências), privilegiando-se, em cada nova geração, os indivíduos mais agressivos- cujas matrizes, em geral, provinham de cães bulldogs e terriers ingleses. O resultado foi uma raça com muitas qualidades (coragem, tenacidade, resistência), mas com sérios problemas de comportamento no convívio com outros cães e seres humanos. Isso não significa que não haja pit bulls dóceis (tanto quanto há poodle agressivos), mas o normal, o padrão da raça, é seguir suas propensões genéticas. Entre elas, está a de ser um “predador”. Estudos norte-americanos mostraram que, comparados ao padrão-ouro dos cães de guarda (o pastor alemão) há uma diferença notável quando ambas as raças perseguem possíveis agressores: o pastor alemão dirige-se ao agressor mais forte, o pit bull, ao agressor mais frágil. Isso explica por que pit bulls agridem mais crianças e velhos do que qualquer outra raça: eles preferem presas debilitadas.

O outro lado da guia

O segundo problema, talvez maior que o primeiro, é o do perfil típico do criador de pit bull. Uma simples olhada no parque de sua cidade já mostrará que os donos desses animais costumam ser indivíduos tão preparados para a agressão contra humanos quanto seus cães: camisetas de academia de luta, músculos salientes, olhares enviesados e um pit bull na cartucheira. Como seus bichinhos, muitos desses donos também são predadores, escolhendo vítimas frágeis (homossexuais, prostitutas, pacatos cidadãos, além de cães abandonados) para agredirem e fugindo quando encontram seres do mesmo tamanho.

Como esperar que pessoas que desejam, elas mesmas, se passarem por versões modernas de membros da horda de Gengis Khan possam educar seus cãezinhos como devido? O mais provável é que valorizarão os atos de agressividade dos seus animais, contando vantagem a respeito do estrago que fizeram no vira-lata que ousou latir para ele (qualquer um dos dois). A genética propensa a violência do cão mais um dono educado (?) para a agressividade só há de resultar em perigo público. Focinheira nos dois!

Certo, há exceções. Há pessoas que não possuem esse perfil, mas optaram pela raça pit bull. Tratam-se, em geral, de pessoas boas, mas mal informadas: aquelas que quando seu filho perder a mão para o Totó de estimação, dirão com deslavada ignorância: “Eu não entendo, ele sempre foi um animal tão dócil... não sei o que aconteceu!”. O que aconteceu é que seu tratamento – ainda que afetuoso - não poderá barrar uma genética de combate. Se você discorda, se acha que o “amor tudo vence”, leve uma oncinha para casa, trate-a com amor e Parmalat, e depois deixe-a tranqüila cuidando do seu bebê...

Não. Não estou sustentando que os animais – pit bull ou onças – são maus. Bom ou mau são adjetivos para humanos, não para animais. Eles são o que são e é simplesmente por isso que devem ficar em lugares adequados para eles e seguros para nós.

Pode ser que seu pit bull nunca cause mal a ninguém. A maioria não vai causar (calcula-se que “apenas” 10% da raça são descontroladamente agressivos) . Mas, enquanto sociedade, temos que ser forçados a pagar para ver? O direito de alguém ter o cão agressivo da moda é tão substancial a ponto de, por isso, se permitir um aumento considerável do risco a ser suportado pelos demais? E tal risco não se reflete apenas na segurança concreta (ser efetivamente mordido), mas sobre a sensação de segurança. Quando uma mãe tira seus filhos do parque, porque ali há um brincalhão pit bull, ela está evidenciando que a imagem da raça, por si só, lhe causa aflição, e é um direito dos freqüentadores de parques não precisarem confiar na afirmação do simpático (!) dono do cão que sempre vai dizer: “Ele é mansinho, dona”, - para logo depois estar numa delegacia chorando “Eu não sei o que aconteceu...”.

Pit bull bom é pit bull longe.

Proibir resolve?

Mas tudo isso não me leva de imediato a ser favorável à lei que proíbe tal raça. Isso não vai funcionar. O resultado provável dessa lei será uma onda de “cruzamentos de disfarce” entre pit bulls e outras raças agressivas (fila, mastim, rottweiller...), com resultados comportamentais ainda mais instáveis. A proibição tout court da raça impedirá a possibilidade de fiscalizar os canis legalizados – com criadores responsáveis - e se colocará a criação destes animais em mãos clandestinas, muito mais próximas à criminalidade.

De minha parte, se fosse consultado, sugeriria uma espécie de “porte de cães de raça perigosa”: determinadas raças só poderiam circular devidamente identificadas – a falta dessa identificação oficial levaria à imediata apreensão e, possível, perda do animal. Tal porte valeria para todas as raças de porte e ferocidade relevante. Já certas raças específicas, como o pit bull, só poderiam permanecer em propriedades particulares, nunca em espaço público. O dono do canil teria que registrar cada ninhada junto à Secretaria de Segurança Pública, respondendo administrativamente caso vendesse ou doasse qualquer animal, sem a devida identificação e comprovação de endereço do novo titular.

Paradoxalmente, a mais eficaz política de restrição a uma conduta é a que a permite sob estrita regulamentação, e não a que proíbe em absoluto. Isso vale também para bingos, drogas ou qualquer outra coisa que, de forma risível, o Estado vem tentando, há anos, combater de forma absoluta e cujo resultado prático aproxima-se de zero.

Finalmente, não custa lembrar que qualquer pessoa que for atacada por um cão tem o direito pessoal e o dever para com a sociedade de processar civelmente o responsável pelo animal. Não deve se contentar com o eventual processo penal que, infalivelmente, terminará nas debochadas “cestas básicas”. Chame um advogado e solicite que ele ajuíze uma ação pelos danos materiais (tratamento médico, cirurgias plásticas etc.) e morais (traumas, vergonha pelas cicatrizes ou qualquer outra coisa). Só quando o irresponsável pai de um desses adolescentes e seus cães ferozes precisar vender a casa de praia para pagar as despesas com o processo em face do sofrimento alheio, deixará de considerar que sua “criança está apenas exercendo seu direito”.

Se cada mordida tiver uma resposta cara e exemplar do Judiciário em benefício da vítima, não será nem preciso a lei proibir os cães violentos, os pais, voluntariamente, porão fim a prática de dar de presente aos seus garotos feras de passeio, utilizadas para disfarçar a dificuldade de diálogo de um lado e a covardia, do outro.

4.11.07

Capitão Morrimento e o Oscar

No país onde a pirataria do CD do filme Tropa de Elite foi considerada um crime maior do que a matança oficial mostrada no filme (se houvesse autoridades neste país estaria em curso a CPI da matança do BOPE-RJ); no país onde polícia má é aquela que leva propina para não matar e polícia boa é a que mata sem levar propina, - diferença insistentemente mostrada no filme; no país em que até ontem se chamava de heróis alguns traficantes de morro, porque eles davam morte mas também ambulância para uma assustada população, e que agora quer tornar heróis sujeitos que utilizam caveiras como símbolos (piratas? Isso lá é símbolo aceitável num Estado democrático de direito!) e que usam saquinhos de supermercado para fazer interrogatórios; num país assim, só há mesmo uma saída: ficar rico - aí você não apanha nem de um lado nem do outro (Traficantes de morro e BOPE são apenas instrumentos para aterrorizar os mais vulneráveis, aqueles miseráveis que já não sabem se é melhor entregar o traficante para a polícia - e morrer pelas mãos do Baiano - ou entregar a polícia para o traficante - e morrer nas mãos do Capitão Nascimento!) . Mas se você não é rico e está achando que os capitães nascimento da vida salvarão o país da violência, você é, na melhor das hipóteses, um ingênuo; na pior, um idiota. Pense como quiser, mas quando alguém de sua família for submetido a um procedimento policial arbitrário (de tapinhas a tiros) festeje, comemore, diga que seguir a lei é coisa para filhinho-de-papai-maconheiro, ou exigência dessa gentalha dos direitos humanos, das ONGs e do Bonde do Foucaut. Mas se não conseguir festejar, se a arbitrariedade tiver sido contra você ou alguém que você muito ama, converta-se, passe para o outro lado, nunca é tarde para largar a burrice...