24.11.07

Fugas para o encotro

A morte narra:


"Certa vez um mercador de Bagdá mandou seu servo comprar provisões no mercado. Pouco depois, o servo voltou, branco e trêmulo, e disse: 'Mestre, agora mesmo, quando estava no mercado, fui empurrado por uma mulher no meio da multidão e, ao me virar, vi que fora a Morte quem me empurrara. Ela me olhou e fez um gesto ameaçador. Agora me empreste o seu cavalo, vou calvagar para bem longe desta cidade, a fim de evitar o meu destino. Irei a Samarra: lá a Morte não me encontrará'. O mercador emprestou-lhe seu cavalo. O servo montou, enfiou as esporas nos flancos do animal e, tão rápido quanto este conseguia galopar, se foi.

Então o mercador foi até o mercado, viu-me de pé no meio da multidão, veio até mim e disse: 'Por que você fez um gesto ameaçador para o meu servo, quando o viu esta manhã?' 'Não era um gesto ameaçador', respondi, 'era só uma reação de surpresa. Fiquei atônita de vê-lo em Bagdá, já que tenho um encontro marcado com ele esta noite, em Samarra'.
- Somerset Maugham



Parece ser comum que quando pensamos em fugir à rotina questionemos os nossos condicionamentos mentais, como o pensar lógico, racional, cauculista. As saídas da rotina prometem trazer um assombro ilógico e místico, uma sensação de vida renascida, - que as estratégias consumistas pretendem financiar num caminho de santiago (existe transfiguração mística mais prét-à-porter ?), na iniciação de um mago paramentado, numa lenda pessoal de livraria, ou em vários aleluias...



Parece-me claro que a rotina não está nas coisas (na casa-trabalho-parceira/o) mas na forma segura com que se quer administrar o presente. Rotina é modo de ser no mundo, quem não convive bem com riscos vai ser rotineiro... Mas quem deseja viver o tempo inteiro correndo riscos? Queremos filmes de ação, mas vida calma e controlada... Por isso nos esforçamos para saber, antecipadamente, tudo o que está ocorrendo a nossa volta, repetimos jeitos de ser, de vestir, de pensar e de falar (times que, se não estão ganhando, pelo menos não estão nos causando especiais problemas...). Queremos saber previamente até o que nossa parceira está pensando. Depois reclamamos de uma vida sem surpresas! Rotinizar é uma estratégia para viver num ambiente conhecido, sem solavancos. Pode até não possibilitar grandes encantamentos, mas também na rotina não haverá lugar para decepções repentinas...



Como é diferente a paixão! Nela nos encantamos com risco, nos entregamos felizes à insegurança. Será que ela gosta mesmo de mim? Como será que ela é? Será que ficará ofendida se eu disser tal coisa? E se eu omitir essa outra? Que perfume, que cor, que lugares a encantarão? Oh, dúvida cruel, oh, medo de errar querendo acertar, esforçar-me e decepcionar. Como eu queria poder ler-lhe os pensamentos.... E, na falta da sonhada habilidade, a imaginação vai preenchendo a ausência de conhecimentos sobre a pessoa amada. E quem ama, sempre presume que o ser amado é mais do que comumente de fato é (paixão é auto-ilusão em forma de febre!).



O tempo passa. O vazio pode se estabelecer entre os amantes rotineiros, mas talvez seja errado atribuir esse vácuo unicamente à outra pessoa, que já não é mais como foi (será que algum dia, fora de sua cabeça, ela foi mesmo diferente?). O vazio não vem da outra pessoa, mas da ausência de riscos na vida. É que enquanto corremos riscos não temos tempo para parar e refletir sobre nós mesmos.



Mas, sob os efeitos inerciais da rotina, começa a sobrar espaço para pensamentos inoportunos. Estando a vida entregue ao piloto-automático, ressurgem aqueles terríveis questionamentos, há muito recalcados, acerca do sentido das coisas, do nosso envelhecimento inevitável e da marcha para o fim... O verdadeiro vazio é sempre sentido solitariamente. Você pode ir atrás de novas aventuras e anestesiar-se, mais um pouco. Mas, com a rotina, ele voltará - ele sempre volta. E fará as perguntas de sempre: "por que isso tudo?", "por que não para sempre?"


A rotina também pode ser utilizada de forma conscientemente instrumental: às vezes rotinizamos de forma seletiva partes de nossa existência, para quê? Para liberarmos energia para outras áreas da vida que nos encantam de fato. Meu trabalho pode ser rotineiro, mas talvez não meus prazeres (por isso justamente são prazeres)...


Não quero trabalhar criativamente para os outros, quero ser rotineiro para eles e encantador para mim próprio.


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Mas, na essência, é o seguinte:


O grande paradoxo de nossas vidas é que nos entregamos a rotina para fugir dos riscos (da paixão, da desordem, da incerteza) e, justamente, por isso, arrajamos tempo para encararmos o maior dos riscos: disponibilidade para pensarmos sobre nosso destino.
Não adianta fugir de Bagdá, alguém nos espera em Samarra.

15.11.07

Proibir os pit bulls?

Seria um tanto ridículo ser contra os cães da raça pit bull em si mesmos. Enquanto seres vivos, esses animais têm seu valor intrínseco e merecem um tratamento respeitoso e protetor. Mas parece razoável concluir que não se tratam de criaturas adequadas para conviverem entre humanos, como se fossem uma raça de cães qualquer. A história das motivações dos homens que “projetaram” esse cão - para o combate sem tréguas - hoje condena a possibilidade de circularem livremente entre nós. O sangue do guerreiro destemido, de um kamikaze preparado para as ultimas conseqüências na arena, ferve-lhe nas veias, não raro transbordando em violência contra a espécie que os criou.
A agressividade elevada, que era virtude no cão guerreiro, torna-se hoje tragédia, quando dele se esperaram coisas simples, como fazer companhia ou brincar com as crianças. Excepcionalmente pode até dar certo, mas não haverá surpresa se ocorrer o óbvio.

Com efeito, tais animais foram a resultante de cruzamentos seletivos artificiais (realizado por homens dados a rinhas de cães, ataques a touros (bull baiting) e outras truculências), privilegiando-se, em cada nova geração, os indivíduos mais agressivos- cujas matrizes, em geral, provinham de cães bulldogs e terriers ingleses. O resultado foi uma raça com muitas qualidades (coragem, tenacidade, resistência), mas com sérios problemas de comportamento no convívio com outros cães e seres humanos. Isso não significa que não haja pit bulls dóceis (tanto quanto há poodle agressivos), mas o normal, o padrão da raça, é seguir suas propensões genéticas. Entre elas, está a de ser um “predador”. Estudos norte-americanos mostraram que, comparados ao padrão-ouro dos cães de guarda (o pastor alemão) há uma diferença notável quando ambas as raças perseguem possíveis agressores: o pastor alemão dirige-se ao agressor mais forte, o pit bull, ao agressor mais frágil. Isso explica por que pit bulls agridem mais crianças e velhos do que qualquer outra raça: eles preferem presas debilitadas.

O outro lado da guia

O segundo problema, talvez maior que o primeiro, é o do perfil típico do criador de pit bull. Uma simples olhada no parque de sua cidade já mostrará que os donos desses animais costumam ser indivíduos tão preparados para a agressão contra humanos quanto seus cães: camisetas de academia de luta, músculos salientes, olhares enviesados e um pit bull na cartucheira. Como seus bichinhos, muitos desses donos também são predadores, escolhendo vítimas frágeis (homossexuais, prostitutas, pacatos cidadãos, além de cães abandonados) para agredirem e fugindo quando encontram seres do mesmo tamanho.

Como esperar que pessoas que desejam, elas mesmas, se passarem por versões modernas de membros da horda de Gengis Khan possam educar seus cãezinhos como devido? O mais provável é que valorizarão os atos de agressividade dos seus animais, contando vantagem a respeito do estrago que fizeram no vira-lata que ousou latir para ele (qualquer um dos dois). A genética propensa a violência do cão mais um dono educado (?) para a agressividade só há de resultar em perigo público. Focinheira nos dois!

Certo, há exceções. Há pessoas que não possuem esse perfil, mas optaram pela raça pit bull. Tratam-se, em geral, de pessoas boas, mas mal informadas: aquelas que quando seu filho perder a mão para o Totó de estimação, dirão com deslavada ignorância: “Eu não entendo, ele sempre foi um animal tão dócil... não sei o que aconteceu!”. O que aconteceu é que seu tratamento – ainda que afetuoso - não poderá barrar uma genética de combate. Se você discorda, se acha que o “amor tudo vence”, leve uma oncinha para casa, trate-a com amor e Parmalat, e depois deixe-a tranqüila cuidando do seu bebê...

Não. Não estou sustentando que os animais – pit bull ou onças – são maus. Bom ou mau são adjetivos para humanos, não para animais. Eles são o que são e é simplesmente por isso que devem ficar em lugares adequados para eles e seguros para nós.

Pode ser que seu pit bull nunca cause mal a ninguém. A maioria não vai causar (calcula-se que “apenas” 10% da raça são descontroladamente agressivos) . Mas, enquanto sociedade, temos que ser forçados a pagar para ver? O direito de alguém ter o cão agressivo da moda é tão substancial a ponto de, por isso, se permitir um aumento considerável do risco a ser suportado pelos demais? E tal risco não se reflete apenas na segurança concreta (ser efetivamente mordido), mas sobre a sensação de segurança. Quando uma mãe tira seus filhos do parque, porque ali há um brincalhão pit bull, ela está evidenciando que a imagem da raça, por si só, lhe causa aflição, e é um direito dos freqüentadores de parques não precisarem confiar na afirmação do simpático (!) dono do cão que sempre vai dizer: “Ele é mansinho, dona”, - para logo depois estar numa delegacia chorando “Eu não sei o que aconteceu...”.

Pit bull bom é pit bull longe.

Proibir resolve?

Mas tudo isso não me leva de imediato a ser favorável à lei que proíbe tal raça. Isso não vai funcionar. O resultado provável dessa lei será uma onda de “cruzamentos de disfarce” entre pit bulls e outras raças agressivas (fila, mastim, rottweiller...), com resultados comportamentais ainda mais instáveis. A proibição tout court da raça impedirá a possibilidade de fiscalizar os canis legalizados – com criadores responsáveis - e se colocará a criação destes animais em mãos clandestinas, muito mais próximas à criminalidade.

De minha parte, se fosse consultado, sugeriria uma espécie de “porte de cães de raça perigosa”: determinadas raças só poderiam circular devidamente identificadas – a falta dessa identificação oficial levaria à imediata apreensão e, possível, perda do animal. Tal porte valeria para todas as raças de porte e ferocidade relevante. Já certas raças específicas, como o pit bull, só poderiam permanecer em propriedades particulares, nunca em espaço público. O dono do canil teria que registrar cada ninhada junto à Secretaria de Segurança Pública, respondendo administrativamente caso vendesse ou doasse qualquer animal, sem a devida identificação e comprovação de endereço do novo titular.

Paradoxalmente, a mais eficaz política de restrição a uma conduta é a que a permite sob estrita regulamentação, e não a que proíbe em absoluto. Isso vale também para bingos, drogas ou qualquer outra coisa que, de forma risível, o Estado vem tentando, há anos, combater de forma absoluta e cujo resultado prático aproxima-se de zero.

Finalmente, não custa lembrar que qualquer pessoa que for atacada por um cão tem o direito pessoal e o dever para com a sociedade de processar civelmente o responsável pelo animal. Não deve se contentar com o eventual processo penal que, infalivelmente, terminará nas debochadas “cestas básicas”. Chame um advogado e solicite que ele ajuíze uma ação pelos danos materiais (tratamento médico, cirurgias plásticas etc.) e morais (traumas, vergonha pelas cicatrizes ou qualquer outra coisa). Só quando o irresponsável pai de um desses adolescentes e seus cães ferozes precisar vender a casa de praia para pagar as despesas com o processo em face do sofrimento alheio, deixará de considerar que sua “criança está apenas exercendo seu direito”.

Se cada mordida tiver uma resposta cara e exemplar do Judiciário em benefício da vítima, não será nem preciso a lei proibir os cães violentos, os pais, voluntariamente, porão fim a prática de dar de presente aos seus garotos feras de passeio, utilizadas para disfarçar a dificuldade de diálogo de um lado e a covardia, do outro.

4.11.07

Capitão Morrimento e o Oscar

No país onde a pirataria do CD do filme Tropa de Elite foi considerada um crime maior do que a matança oficial mostrada no filme (se houvesse autoridades neste país estaria em curso a CPI da matança do BOPE-RJ); no país onde polícia má é aquela que leva propina para não matar e polícia boa é a que mata sem levar propina, - diferença insistentemente mostrada no filme; no país em que até ontem se chamava de heróis alguns traficantes de morro, porque eles davam morte mas também ambulância para uma assustada população, e que agora quer tornar heróis sujeitos que utilizam caveiras como símbolos (piratas? Isso lá é símbolo aceitável num Estado democrático de direito!) e que usam saquinhos de supermercado para fazer interrogatórios; num país assim, só há mesmo uma saída: ficar rico - aí você não apanha nem de um lado nem do outro (Traficantes de morro e BOPE são apenas instrumentos para aterrorizar os mais vulneráveis, aqueles miseráveis que já não sabem se é melhor entregar o traficante para a polícia - e morrer pelas mãos do Baiano - ou entregar a polícia para o traficante - e morrer nas mãos do Capitão Nascimento!) . Mas se você não é rico e está achando que os capitães nascimento da vida salvarão o país da violência, você é, na melhor das hipóteses, um ingênuo; na pior, um idiota. Pense como quiser, mas quando alguém de sua família for submetido a um procedimento policial arbitrário (de tapinhas a tiros) festeje, comemore, diga que seguir a lei é coisa para filhinho-de-papai-maconheiro, ou exigência dessa gentalha dos direitos humanos, das ONGs e do Bonde do Foucaut. Mas se não conseguir festejar, se a arbitrariedade tiver sido contra você ou alguém que você muito ama, converta-se, passe para o outro lado, nunca é tarde para largar a burrice...

30.10.07

Sobre o aborto e o crime

I. O dever de tomar posição

Muitas vezes classificamos uma questão como polêmica unicamente por não desejarmos, naquele momento, emitir uma opinião decisiva sobre o assunto. Isso pode ocorrer nos casos em que, apesar de possuirmos uma posição definida, tememos que os outros nos desaprovem por expressá-la. Noutras vezes, qualificamos de polêmica uma questão sobre a qual não temos informações suficientes, ou sobre a qual não refletimos o bastante, querendo com isso mantermos suspenso nosso juízo, até que nos sintamos em condições de emiti-lo. Se no primeiro caso verificamos certa covardia moral: pensamos diferentemente dos demais, mas não queremos que eles saibam disso; no segundo, temos uma atitude de clara prudência intelectual. Destarte, quem pretende opinar sobre temas controversos, melhor que se esclareça antes, sob o risco de acabar dando vazão a toda uma série de ignorâncias, disfarçada sob a forma de argumentos.

Há ainda aqueles para os quais nada neste mundo é polêmico: tudo tem uma resposta direta, objetiva e correta. É o grupo formado pelos que, em regra, não pensam a partir da própria cabeça: terceirizam suas opiniões a uma doutrina, igreja ou filosofia. Quando se lhes pergunta o que acham disso ou daquilo, eles não têm palavras próprias, escondendo-se por detrás de citações alheias, - seja da Bíblia, do filósofo da moda ou da tradição a que, justamente para não se darem ao trabalho de pensar, filiaram-se. Para esse grupo, tomar posições é coisa para Jesus, Wittgeistein, Freud ou Maomé; somente os “iluminados” possuem o monopólio da emissão correta de juízo, só restando aos demais juntarem-se ao rebanho e deixarem-se conduzir. Nem mesmo nas lacunas de seus pensadores-idolos, os discípulos da mente alheia ousam pensar em nome próprio. Preferem dizer que “O que Jesus diria nesse caso é o seguinte...”, “O que Freud, se vivesse hoje, provavelmente diria é...”, - em suma, preferem advinhar a opinião alheia a ter que expressar uma própria.

Feito lacaios que julgam sua própria importância pelas riquezas do patrão a que servem, o sujeito que imagina estar isento de pensar porque outros melhores já o fizeram, só serve mesmo para recolher as migalhas restantes do banquete daqueles que não renunciaram a mais nobre das características intelectuais: tomar como seu dever pessoal – e intransferível - o esclarecimento dos dilemas que afligem sua época. E é essa obstinada pessoalidade, esse estilo inconfundível debruçado no debate dos problemas humanos que fazem o leitor se deliciar com um Montaigne, um Cícero, um Nietzche ou um Peter Singer. Lê-los, certamente é correr o risco (elevadíssimo!) de mudar de opinião – e, no reino do espírito, nada pode ser mais excitante do que sair com a ignorância ferida por um esgrimista de primeira linha. Mas se terá obrado mal se, caindo em tentação e preguiça, emergirmos de tais leituras não com as próprias opiniões repensadas, mas carregando, submissamente, a opinião alheia.

Não existe outro jeito, você tem que pensar com o cérebro que tem aí, - ou, então, quando alguém perguntar sua opinião, cale-se e instale no seu interlocutor as idéias do seu autor-pen-drive.

II. O aborto e seus debatedores

Dizer que a questão do aborto é polêmica é mais do que um subterfúgio para não precisarmos emitir uma opinião definitiva: “sou favorável”, “sou contra”. Ela é difícil mesmo, pois reúne e confunde, sem pena, os conceitos de vida, liberdade, moral e direito, nos seus contornos e limites últimos. Quando começa à vida? Na concepção ou com o cérebro em avançado estado de formação? A pretensa liberdade da mulher que não deseja a gravidez supera o pretenso interesse do filho em potencial? O ter assumido o risco de gravidez, quando decidiu ter relações sexuais, não faria com que a balança dos direitos pendesse para o lado do feto? E o Direito, deve se posicionar ao lado de quem? Do mais frágil? E se assim for, quem é o mais frágil relevante na relação mãe-que-não-quer-ser/criança-que-vem-vindo? Alguns dirão: “Você usa mal os termos, nem ela é “mãe”, nem “ele” é criança...” Pode ser, mas não existem nomes neutros aos entes em discussão, qualquer um que se utilize (feto, bebê, embrião, ser indesejado, nascituro, anjo, criança etc.) será prenhe de conotações políticas. Poder-se-ia, por exemplo, em analogia com o que se fez com os “velhos” (termo de descarte), denominar o ente no útero como integrante da “primeiríssima idade”, o que seria tão cheio de segundas intenções quanto chamá-lo de "pré-vivente". Conceituar os termos de uma polêmica já é, em si, posicionar-se sobre ela. Não há saída.

a) Os anti-aborto são só atraso?

Diante de um tema espinhoso como esse, é normal termos uma série de dúvidas que autorizam o indivíduo intelectualmente prudente a iniciar o debate sobre o muro, não por medo de descer, mas por acreditar que em cada lado da discussão há menos argumentos do que filiação a regimentos. Numa ala, estão os religiosos e seu conceito de vida metafísico, que associa a cada embrião uma alma, a cada alma uma missão e a cada missão um realizar-se da vontade de Deus. E como com Deus não se discute, não há o que debater, restando apenas uma resignada submissão. Nesse caso, aborto só o "natural", aquele que, muitas vezes, é o que se desejava, mas para o qual não se contribuiu. A essência aqui não é ser contra o aborto, mas não haver “culpados” em sua ocorrência.

Muitos desses religiosos sequer pararam para pensar pessoalmente a questão do aborto. Com uma pretensão absurda, inferem qual seria a “autêntica vontade de Deus” e se tornam soldados de seu cumprimento. Bem pensado, quase todas as misérias da humanidade (inquisição, nazismo, terrorismo etc.) vêm de pessoas com essa pequenez moral: que deixam de refletir sobre o que acham certo e errado (eximindo-se de sua responsabilidade pessoal) e passam a se considerar simples mensageiros da “vontade divina” ou de algum líder sedutor. Com esses indivíduos não é possível discutir, apenas rezar para que não sejam maioria no poder – caso contrário, voltaremos à Idade Média ou às casas de suplício.

Mas ao lado do rebanho de religiosos, na luta contra o aborto está também uma série de pessoas – religiosas ou não – que refletiram e acreditam que os melhores argumentos pendem para a não aceitação do aborto em regra. Afora casos excepcionais – risco de vida à mãe, anencefalia, estupro – esse é o grupo que pretende dar uma chance ao potencial futuro membro da humanidade. Por reflexão, valores e inclinação pessoais insiro-me aqui, sem, entretanto, deixar de sentir certa vertigem quando contemplo minha posição em face da alternativa, na qual se situam a maior parte de meus esclarecidos amigos. Vejamos por quê.

O argumento do risco. Ora, se os pais correram o risco de gerar um bebê – transar pode resultar nisso, minha cara amiga – e o bebê está a caminho, não é mais justo e responsável deixá-lo vir? Quem corre o risco que assuma o “dano”, se é que se pode falar assim. Objeta-se: “Essa criança indesejada, mesmo que decorrente de risco assumido pelos pais, irá comprometer-lhes o futuro!” De acordo. Mas e se, o mesmo casal, dirigindo, apaixonadamente, batesse numa Ferrari, isso também comprometeria seu futuro, não? Por que nesse caso eles têm que assumir os resultados de seu risco criado e no caso do bebê não? “Ah” – objeta-se – “o dano causado pelo acidente é muito menor do que o causado por um filho, que é para vida toda!”. Certo, mas os respectivos “bens” em comparação, causar dano a uma Ferrari ou a um potencial bebê, também são drasticamente desproporcionais... É estranho que ressarcir a Ferrari abalroada seja um dever moral e jurídico e não assumir o dever de cuidado para com o feto-conseqüência-de-risco-assumido seja reivindicado como um direito...

É de fácil compreensão o princípio jurídico segundo o qual aquele que, com sua conduta consciente, cria um risco indevido para terceiros não pode se eximir do dever de suportar os custos da materialização desse mesmo risco. Se tal regra vale para trivilialidades (“Trafegou a 140 km/h, destruiu outro carro, vai pagar”), deve valer também para direitos que envolvem a vida, ainda que nos seus iniciais desdobramentos: “Teve relações sexuais sem cuidado (assumiu o risco), gerou um feto (o resultado do risco assumido), vai ter que protegê-lo. Repare que é assim que se trata o pai-que-não-quer-ser quando, após uma relação amorosa eventual, engravida mulher indesejada. Não vai adiantar ele dizer que foi um erro, que o seguimento de tal gravidez prejudicará seu futuro, que imaginou que ela “se cuidava”. Não há saída: correu o risco de produzir prole, terá que assumi-la (Pobre Renan na mão das Mônicas da vida...). Para o homem, a regra é essa, por que para a mulher seria diferente?

Os problemas não param aí.

O argumento ecológico. É irônico que certos ecologistas queiram que aceitemos a abstração ético-jurídica do “direito das gerações futuras” (portanto não devemos extinguir as baleias, pois os nossos virtuais bisnetos têm o direito de conhecê-las), mas defendem que aqueles que já estão em parte aqui (geração presente virtual) podem ser abortados. Nossos bisnetos – que nem nasceram, se é que vão - são sujeitos de direito (“o meio ambiente é deles também”), enquanto o feto é apenas objeto para deliberação e eventual devastação alheia. Muito estranha essa lógica em que meu bisneto tem mais direito hoje (enquanto futura geração) do que quando estiver efetivamente na barriga da minha possível futura neta... Além disso, com argumentos ecológicos, alguns sustentam que o aborto seria saudável para o planeta, pois um futuro com menos pessoas é a melhor alternativa para todos (todos quem?!). Isso é dar mais importância aos chapéus do que às cabeças, pois a capacidade de suporte da vida humana na Terra (quantos humanos nela cabem?) é menos função do número de pessoas do que de nossas escolhas de vida, - até o momento baseadas no consumismo de petróleo, plásticos e perfumarias. Mudando nossa forma de vida, poderemos multiplicar, em muito, o número de humanos na Terra. Portanto, há escolhas mais sensatas para diminuir a poluição do que nos voltarmos contra a proliferação de nossa espécie.

Anencefálicos. Mas em se tratando de aborto, a estranheza é mesmo a regra. A Igreja e seu séqüito fazem campanha contra o abortamento do anencefálico (feto sem cérebro), aquele que jamais sobreviverá, por conta própria, fora do corpo materno. Aceitam que uma mãe com diagnóstico de gravidez anencefálica sofra os nove meses de gestação, com seus padecimentos e constrangimentos públicos (“para quando é o bebê?), pois ela carrega em si a tal da “missão divina”. Nesse caso, a proteção ao novo “ser” é inócua, já que ele não vingará, tornando mais do que razoável que a balança do Direito penda para o lado da gestante, cujo sofrimento é real e, laicamente falando, inútil. Uma mãe católica de um feto anencefálico pode se sentir no dever de suportar tal gravidez com espírito de sacrifício cristão, situação que respeitamos. Mas querer obrigar uma mãe não religiosa a passar o mesmo calvário é mais do que falta de caridade: é importunação invasiva ao direito de crença e liberdade alheios.

Filhos de estupro. E enquanto com seus lobbies, religiosos tentam evitar a legalização do aborto do anencefálico, por ser “uma obra de Deus”, deixam de citar que situação mais polêmica já se encontra em nossa legislação: o aborto autorizado decorrente de estupro. De um ponto de vista de moral religiosa, aceitar o aborto do feto viável porque seu pai agiu criminosamente, parece ser desconsiderar as “linhas tortas da escrita divina” e aceitar que o filho pague pelos pecados do pai. Quer a mãe esteja ou não sofrendo, de maneira insuportável, com a gravidez proveniente de uma relação forçada – que pode ter sido com o ex-namorado -, seu bebê, por estar amaldiçoado na origem, não merece a menor proteção jurídica? Uma saída para esses casos, ainda na seara religiosa, desde que constatadamente o sofrimento da mãe-vítima não seja insuportável, não seria esperar que o bebê nascesse para, então, dá-lo em adoção? Como os religiosos – tão cheios de argumentos em favor do anencefálico – justificam sua inércia nesse ponto?

De nossa parte sustentamos que, embora a presunção de legalidade deva oscilar, em situações de estupro, no sentido da vontade da mulher, deve-se lembrar, também, de que há casos cujas circunstâncias da relação não consentida, bem como a personalidade dos envolvidos, não autorizam, de per si, a presunção de que o feto gerado seja apenas um “produto de crime”, que poderia, então, ser destruído sem mais. É preciso desvendar, em cada caso, as devidas gradações de constrangimento e sofrimento, que vão desde um nível insuportável (num verdadeiro estado de necessidade psicológico: ou sacrifica-se o feto ou a mãe se destrói) até casos bem menos dramáticos, que possibilitam saídas menos drásticas.

É claro que no caso do estupro a mãe não assumiu o risco da gravidez, razão pela qual o poder de escolha lhe deva ser dado. Nessa situação, por óbvio, também não há que se falar da participação do pai nessa decisão, pois alguém não pode reivindicar direitos decorrentes de seu crime.

Mas num país em que os religiosos são tão ativos contra o aborto de fetos clinicamente inviáveis, chama a atenção seu silêncio em face do aborto dos fetos “moralmente inviáveis”.


b) Os pró-aborto são os mais avançados?

Do outro lado da linha, encontram-se os “moderninhos”, que, afora as exceções de praxe, costumam ser tão alienados quanto os religiosos, pois sua posição não deriva de melhores argumentos, mas de uma filiação estética aos grupos de vanguarda. Situam-se aí aquelas pessoas cuja cabeça é o amálgama de uma pitada de psicanálise, meio livro de Foucault e 200 horas de canal GNT. É a turma dos que pensam que ter uma posição ética avançada é o mesmo que se posicionar do lado “mais moderno” da questão. Não custa lembrar que, em ética, não interessa muito para que lado você penda, o que interessa é que seus argumentos em prol da posição escolhida sejam válidos, universalizáveis e auto-retornáveis. Em outras palavras, exige-se que seus argumentos não decorram de falta de esclarecimento ou de confusões lógicas, mas que derivem do uso da razão aliada a uma ampla base de dados e, finalmente, exige-se que, num debate ético, ninguém defenda posições que não aceitaria como justas para o seu caso em particular (aquele que considera que fora um dever de sua mãe levar até o fim sua gravidez demonstra impostura ao defender o aborto). Emitir uma opinião ética é como jogar uma pedra para cima e ter coragem suficiente para não sair de baixo.

Vejamos as pedras que, ultimamente, têm atirado os moderninhos.

Primeira: dizem que o aborto é um direito exclusivo da mulher. Para pagar a pensão, levar ao colégio, educar e assumir os traumas, o filho é de ambos os pais, mas para decidir sobre seu nascimento é só da mulher? Sei... Ora, quem disse que a mulher gera o filho sozinha? Objeta-se: “Mas muitas delas criam os filhos sozinhas!” Tal situação é verdadeira e, certamente, está errada, mas é mais fácil consertar isso do que autorizar o aborto como uma forma de compensar a ausência de responsabilidade do pai. Se dois devem ser responsabilizados pelo bebê nascido, dois devem ser chamados a opinar sobre o cancelamento, por aborto, de seu nascimento, - salvo, por óbvio, quando este decorrer de imperiosa recomendação médica.

E se a mulher quiser abortar e o homem não? “O corpo é dela”, dirão. Ora, já falamos que ao voluntariamente optar em manter relações sexuais com o agora pai, ela assumiu o risco de engravidar; portanto – afora o caso de estupro ou fraude –, sua barriga está sendo utilizada em decorrência de ação voluntária dela própria, - se queria seu corpo fora disso, não deveria ter-se exposto ao risco da maternidade. Mas se engravidou, – tenha sido por desejo, imprudência ou “acidente” - e o futuro pai diz que quer o filho, deve ser obrigação da mulher levar até o fim a gestação, como decorrência do direito à vida do nascituro, associada ao risco voluntariamente assumido pela mãe. O corpo é da mulher, é verdade, mas o corpo em formação dentro de si, não.

Suponhamos um exemplo extremo: Uma mulher engravida, sendo a criança muito desejada por ambos os pais. Mas eis que, no curso da gravidez, eles se separam e a mulher, em ato de vingança, pretende o aborto. Pergunta-se: juridicamente, se o aborto fosse legalizado, não haveria nada que esse pai pudesse fazer para dissuadir a mulher de sua torpe vingança? Ora, já não costuma ser arbitrada ao pai, judicialmente, – em nome da futura criança – a obrigação de alimentar a gestante se esta, em função da miséria em que se encontra, não tem condições de alimentar-se de acordo com o requerido para a sua saúde e a do bebê de ambos? Se o pai tem o dever de sustentar seu filho mesmo antes do nascimento, deve ter o direito de preservar-lhe a vida em qualquer fase da gestação.

Quando à discussão acerca de “quando começa a vida”, ela pode ter um grande interesse científico, mas eticamente têm se convertido em toda sorte de sofismas. Favoráveis ao aborto, em geral, gostam de ser também avançados em termos ecológicos, e então nos pedem para que cuidemos das formas mais elementares de vida na Terra, falando de seu valor intrínseco ou funcional na Natureza. Mas quando tratam de sua própria espécie, querem um conceito de vida cheio de limites e outros senões. É certo que não sabemos determinar com exatidão o momento em que começa a vida humana, mas, como é comum em nosso Direito, sempre que não sabemos algo com exatidão, presumimos uma resposta em benefício do mais vulnerável: in dúbio pro reo, in dúbio pro mísero, in dúbio pro operário, por que não in dubio pro vida? Por que presumir em favor do feto? Pela simples razão de que se estivermos errados quanto ao início da vida, e fizermos a gestante arcar com os nove meses da gravidez, que poderia ter sido interrompida quando o feto ainda não tinha vida, ela terá perdido praticamente um ano de vida não-grávida; isso é lamentável, pois cada um sabe dos transtornos que isso acarreta. Mas e se estivermos errados quanto ao início da vida, acreditando que ela ocorre mais à frente do que realmente é correto, e cancelarmos a vida de um novo ser, como quantificar – e reparar - tal prejuízo? Ora o fato de que jamais ficaremos sabendo de tal prejuízo (fetos não berram) não é motivo para não nos atormentarmos com tal possibilidade. Na dúvida, fiquemos com o lado cujos possíveis prejuízos são irreperáveis.

Mas isso é pouco em face do novo modismo pró-aborto.

Baixando o crime na clínica. A nova onda pró-aborto é insuperável: querem utilizá-lo para baixar a criminalidade. O governador do Rio acha que isso deva fazer parte de um pacote amplo de soluções em segurança pública. Numa cidade como o Rio de Janeiro, isso deverá significar uma política de redução de custos operacionais: ao invés de matarmos os filhos adolescentes dos mais pobres, não deixaremos sequer que essa espécie de gente procrie. Será que surgirá o departamento de obstetrícia do Bope? Aí logo um honesto capitão Nascimento (nascimento?!) dirá: “Feto favelado bom é feto favelado morto.” (Será que o aborto-padrão será com a “touca”, aquele saquinho de plástico na cabeça?). Os homens de preto substituirão os de branco nas maternidades? E assim, ao invés de se investir em saúde e educação, investir-se-á na eliminação de futuros pacientes e estudantes. Solução mais econômica impossível! Poderíamos também criar uma mutação do vírus ebola que só atingisse gente da zona norte! As possibilidades são tantas...

“Mas as estatísticas internacionais mostram uma relação entre aborto e queda da marginalidade”. Isso é discutível mesmo nos EUA. O artigo de Steven Levitt que deu origem a essa polêmica (muito mal explicado em Freakonomics, que é de onde os “especialistas” retiraram a idéia) enumera vários fatores que teriam contribuído para diminuir o crime nos EUA na década de 1990. Entre eles estão o aumento do efetivo policial, a estabilização do mercado de crack, o aumento da população carcerária e a legalização do aborto. Mas lembremos o contexto ideológico do artigo de Levitt: os Republicanos atribuíram à política de “Tolerância Zero” à queda vertiginosa na taxa de homicídios em Nova York, durante a administração Giulliani. Levitt, que é um intelectual democrata, construiu toda uma argumentação para tirar o mérito da Tolerância Zero, sustentando que a criminalidade só baixa por motivos “liberais”, como o aborto.

Objeta-se: “Não interessa quem ele seja, o que interessa é que utilizou estatísticas para fundamentar seu pensamento, não usou?” Mais ou menos: ele usou as estatísticas com as quais simpatizava. Por exemplo: dos anos de 1980 para os 90, quando há a queda na criminalidade, a pena de morte nos EUA praticamente quadruplicou em número de execuções. Teria ela alguma relação com essa baixa? Por ser uma agenda republicana – a pena de morte - Levitt preferiu não analisá-la. Em suma: é possível que mais abortos seja igual a menos crime (faltam dados conclusivos), mas seria pelo fato de que bebês indesejados enveredam mais para uma vida criminosa? A explicação não parece muito mecânica? A principal causa do crime teria sido descoberta e isolada? E é a gravidez indesejada? E, então, inversamente, os garotinhos muito esperados, nascidos em berço de ouro, esses serão os futuros líderes da nação?
Até Lombroso desconfiaria dessas relações.

Pode-se ser, sensatamente, contra ou a favor do aborto, mas não vejo como fundamentá-lo enquanto tecnologia de extermínio de criminosos presumidos. Sim, porque a política é para os pobres (desde quando as classes mais abastadas no Brasil dependem da lei do aborto – ou de qualquer lei - para fazerem o que querem?). O pré-natal não chega até à moça pobre, a informação anticoncepcional também não. O aborto chegaria? Por onde, pelo SUS? Ou pelo BOPE?

Para evitar o alegado risco trazido pelos indesejados filhos da pobreza, há modos mais eficazes e menos polêmicos: educar as meninas das comunidades pobres – se elas tiverem perspectiva e informação, saberão planejar sua vida e não se encherão de filhos antes dos 20 anos. Distribuir eficientemente anticoncepcionais e preservativos.
E quanto aos filhos indesejados (para as mães ou para o Estado?) que ainda assim teimarem em nascer? Não há solução mágica. Se queremos reduzir o risco de que concluam que uma vida honesta neste país não vale a pena (levante à mão quem nunca se interrogou sobre isso), precisarmos lhes dar creches e retirar as balas “perdidas” do entorno de suas orelhinhas: quem é embalado pelo zunido de tiros, pela lógica, deveria mesmo se tornar bandido, mas – milagre brasileiro – a maior parte desses sobreviventes de guerra (que nem mesmo têm reconhecido o direito de desenvolverem traumas), levará uma vida tão miserável quanto decente.

O que está sobrando nessas comunidades não são crianças, mas bandidos, policiais violentos e balas, muitas balas.

Em suma, sou muito a favor de discutirmos o tema do aborto. Em regra sou contra sua generalização, mas aceito os bons argumentos dos que pensam diferentemente. Mas, sob hipótese conhecida alguma, concordo em usá-lo como forma de política pública de extermínio às responsabilidades dos Estados.

Antes se discutia se o feto tinha vida, agora se discute se ele é criminoso. Mais um passo à frente e surgirá uma lei dizendo que os bebês indesejados nascidos no Brasil só poderão deixar a maternidade sob autorização judicial. Um último passo à frente e chegaremos ao inferno.

10.10.07

A ocasião e o ladrão

É clássico o entendimento de que um ato delituoso costuma resultar do encontro entre uma pré-disposição criminosa e a oportunidade de transgredir. Segundo tal idéia, não estaria totalmente correto nem o adágio popular acerca de que “a ocasião faz o ladrão”, nem a idéia determinista de que a oportunidade apenas permite a realização de um crime preexistente na mente do futuro criminoso. Não. O crime resultaria tanto de uma ocasião favorável à sua ocorrência quanto da pré-disposição criminosa. Em termos gerais, essa teoria parece estar correta. Mas tem suas limitações.

Por vezes, a oportunidade é a própria gênese da idéia criminosa. Se não houvesse a tentação, não haveria o pensamento delituoso. Essa é a razão porque no Brasil proíbe-se a prisão decorrente de “flagrante preparado”: ardil em que policiais criam situação artificial e tentadora, capaz não apenas de acirrar, mas (acredita-se) de incutir no suspeito a idéia de delito. O caso típico é aquele em que disfarçados agentes da lei oferecem droga a um indivíduo, dando-lhe voz de prisão caso aceite a capciosa proposta. A dúvida é se, com tal operação, os policiais prenderam um criminoso ou o produziram. No reino das possibilidades, não é impossível que aquele indivíduo – não tivesse havido a sugestão dos policiais – jamais faria contato com o mundo das drogas.

Numa tradução galante do flagrante preparado, desconfiados cônjuges, com o intuito de medirem a fidelidade de seus parceiros, contratam pessoas belas para que tentem seduzi-los. Se tal ocorrer, seria revelado o “verdadeiro caráter” do abordado parceiro: desde sempre à espera de uma oportunidade de transgredir o dever de fidelidade. Mas tal avaliação é justa? A fidelidade, ou a honestidade, é algo que se tem – ou não - em grau absoluto? Ou é algo que denota a forma habitual com que o indivíduo lida com oportunidades tentadoramente proibidas? Em outras palavras, dadas as contingências da vida humana, podemos exigir que as pessoas se filiem a valores de forma absoluta, independentemente das circunstâncias? Ser reprovado num teste desses revela mais o caráter do indivíduo do que todo o resto de sua trajetória de vida?

Os latinos tinham um ditado que dizia: “virgem porque não cantada”. É impossível sabemos o número de pessoas que se mantiveram castas, ou honestas, não por disposição férrea de assim permanecerem, mas por lhes terem faltado oportunidade de transgredir. A Bíblia narra que mesmo a Jesus foi difícil vencer as tentações. A moral da sagrada história parece ser a de que se venceu, venceu porque era Deus. “Disse-lhe Jesus: também está escrito: não tentarás o Senhor teu Deus (Mt 4,7). Humanos dificilmente rejeitariam as propostas feitas a Cristo. Isso indicaria que, longe das hostes celestes, por vezes, a ocasião pode fazer o ladrão.

Mas é claro que nem todos cedem a qualquer oportunidade tentadora e proibida. Parece mesmo haver pessoas decididas a não delinqüir, mesmo quando isso lhes parece fácil e sumamente desejável. Há consciências e consciências. Porém, a experiência das quedas na iluminação noturna de certas cidades mostra a existência de uma potencialidade social latente para o crime. O blackout ocorrido na cidade de Nova Iorque, em 1965, deixou claro, por exemplo, que o elevado número de crimes cometidos durante esse histórico apagão não poderia ser atribuído apenas aos delinqüentes habituais. A estes se somaram delinqüentes de ocasião. Animados pela certeza de que a escuridão os deixaria impunes, cidadãos normais assaltaram, pilharam e estupraram.

A partir disso, podemos dizer que a taxa de honestidade social é formada tanto pela adesão voluntária daqueles que, sob qualquer situação, procuram ajustar sua conduta à lei, quanto pela abstenção daqueles que, por absoluta falta de oportunidade delitiva, se mantêm honestos. Nesse sentido, uma moça andando com roupas provocantes numa rua deserta não deve temer apenas o improvável encontro com alguém que – desde sempre – seja um desajustado sexual. Deve temer também estar provocando uma situação favorável à produção de um episódico desajuste num transeunte até então não criminoso. Muitos dirão: “isso é culpar a vítima!” Não. O fato de a vítima ter involuntariamente contribuído com sua vitimização não é uma forma de desculpar o agressor – sobre quem a resposta legal há de se fazer sentir. É sim uma forma de mostrar a vítima que um infortúnio criminoso não é sempre inevitável, permitindo que tragédias pessoais não se repitam.

22.9.07

Funções manifestas e latentes

Conceito central na Sociologia de Robert Merton (1910-2003), a idéia de funções manifestas e funções latentes pode ser também aplicada ao entendimento do agir individual. Segundo essa distinção, um comportamento possui, em geral, motivações manifestas (aquelas abertamente expressas por seu praticante) e motivações latentes, que possuem um caráter involuntário e inconsciente. A função manifesta, abertamente expressa por um consumidor de vinhos caros é a da satisfação de seu gosto refinado. Mas é bem possível que por trás desse comportamento haja também motivações inconscientes: o desejo de ser reconhecido como uma pessoa refinada e bem-sucedida. De fato, a distinção social atribuída aos especialistas em vinho é compatível com essa função latente.

O sociólogo Torsten Veblem (1857-1929) sustentava que as pessoas compravam coisas caras não por serem melhores (função manifesta), mas, justamente, por serem caras (função latente). Pois o prestígio social de uma pessoa, numa sociedade como a nossa, acaba sendo diretamente proporcional à magnitude do que consome. Se isso estiver certo, a compra de um Ferrari ou um BMW, de um Chanel ou um Dior se deve, de forma manifesta, à grande qualidade desses produtos, mas, de forma latente, à diferenciação social que eles proporcionam. Basta notar que os consumidores de tais produtos, cuja cifra gasta é, amiúde, justificada pela qualidade e durabilidade dos bens adquiridos, são os que mais rapidamente deles se desfazem, já que são bastante suscetíveis às oscilações da moda.

Da mesma forma, a linguagem difícil dos juristas, explicitamente atribuída a “necessidades da técnica jurídica”, quase sempre não passa de uma mescla de neologismos propositadamente rebuscados, bem como uma miscelânea de termos arcaicos, encontráveis na obra dos grandes tratadistas do passado. Por trás da função manifesta da “técnica jurídica”, encontra-se a função latente do emprego de linguagem difícil: monopolizar o entendimento das leis, tonando-se, os juristas, indispensáveis à sua interpretação.


Isso não significa que as funções manifestas são sempre desculpas esfarrapadas para um comportamento que visa outro fim. Não. Por certo, as funções manifestas evidenciam certas intenções sinceras de comportamento. Mas não explicam tudo.


Como salientou Merton, se fossem retiradas as funções latentes, de exaltação e prestígio social, a dinâmica do consumo de artigos de luxo sofreria um grande impacto. Da mesma forma, se fosse retirada a função de intermediário necessário do advogado entre o cidadão e as leis, muito da linguagem jurídica seria simplificada, sem que houvesse prejuízo “técnico” relevante. Em termos do método sociológico, a distinção entre funções manifestas e funções latentes ajuda-nos, pois, a compreender por que um comportamento sobrevive ao tempo, mesmo parecendo não atingir sua função.

7.9.07

Tiros e cantadas

"Há demônios especialistas no cotidiano, eles manipulam, por assim dizer, a intensidade do efeito do acaso sobre nossas vidas."
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Difícil não tentar se posicionar no caso da morte provocada pelo promotor Thales que, a partir de importunações a sua namorada, feita por um grupo de rapazes, disparou sua arma, chegando ao absurdo número de onze tiros. Um morto e um ferido. Isso ocorreu em Bertioga, litoral paulista, no ano de 2004. O caso é rumoroso porque torna réu alguém cuja função é promover a justiça. Ser réu não significa ser culpado, mas é, no mínimo, constrangedor alguém passar de acusador a acusado.

O caso se torna rumoroso também porque, ao contrário do que acontece com os pobres mortais, seu julgamento deve ir para o Tribunal de Justiça, defendido, pela opinião especializada, por ser um direito (foro privilegiado) e um meio mais técnico de decidir a vida de alguém. Que o argumento seja tratar-se de um direito, vá lá. Mas o argumento de ser “mais técnico” é estranho, quase revoltante. Alegam juristas de instituições e tribunais que só no Tribunal de Justiça haverá efetiva "justiça", por ali não haver clima de vingança contra o promotor. Se for assim vamos estender o foro privilegiado a todos – foro generalizado – que cometeram crimes que indignaram a população! Por que ele teme o povo e eu tenho que encará-lo? Júri popular nos outros é refresco... Ademais no Tribunal de Justiça, Thales será julgado pelos seus colegas – há ex-promotores entre desembargadores – além do que jurista gosta de jurista como médicos gostam de médicos. Se Thales fosse médico, alguém acreditaria na justiça feita pelo Conselho Federal de Medicina no seu caso? Um promotor de justiça não deveria temer o julgamento da população a que tantas vezes clamou, em discurso de tribuna, a que cumprisse “seu nobre dever de julgar.”

Seus defensores clamam pela tese da legítima defesa. Mas esta exige uso moderado dos meios necessários para repelir a injusta agressão (art. 25, CP). Onze tiros! Segundo a doutrina e jurisprudência pátrias, exige-se também proporcionalidade entre o bem agredido e o bem, que pela legítima defesa, se faz perecer. Nesse caso certamente não se justificaria a legítima defesa se os tiros tivessem sido dados para desagravar a honra da namorada ou a do próprio promotor. Honra – qualquer pessoa sabe disso, ainda mais sendo membro do Ministério Público – se desagrava na Justiça, não à bala. A corrente jurisprudencial que sustenta o contrário é aquela que aceita, para não cair em contradição, que o marido que surpreende sua esposa com outro na cama – existe algo mais ofensivo à honra masculina? - tem o direito alternativo de dar-lhe um tiro ou pedir o divórcio. Ora, como sustentava Basileu Garcia, a honra não perece até a chegada à Justiça, onde pode ser reparada. Se cada mulher importunada – chamada de “gostosa” – tivesse um namorado pistoleiro, sobrariam poucos homens na face da terra. Felizmente, a média das pessoas acredita que existem melhores meios para lidar com essas incomodações do cotidiano.

Para legítima defesa no caso só mesmo se Thales, e/ou sua namorada, tivessem sido agredidos fisicamente, estivessem em vias de, ou, razoavelmente, imaginassem que seriam (legítima defesa putativa). Ainda que haja legítima defesa (façamos essa concessão pró-réu), ainda haveria excesso. Onze tiros! E a discussão acerca de se tal excesso fora culposo, isto é por falta de cautela, por erro de cálculo (exemplo: disparou onze vezes, matando um e ferindo outro, quando um indivíduo mais cauteloso saberia que apenas um tiro na perna de um seria suficiente), ou doloso, isto é decorrente da cólera, da vontade de desforra contra o agressor. Legítima defesa com excesso implica punição na medida desse excesso. Onze tiros!

É possível que Thales seja inocente, que seja reconhecida a legítima defesa e pronto. Tudo é possível. Mas onze tiros não descem redondo não...

Saindo do mundo jurídico, o caso de Thales parece nos dar uma importante lição sobre o uso de armas de fogo. As pessoas que as portam alegam portar para a defesa. Parece lógico. Mas não é real. Pelas estatísticas de óbitos, aqueles que portam armas morrem mais à bala do que os que não portam. Isso em decorrência do chamado “fator arma”: quem possui uma arma sente-se senhor de si, capaz de reagir a qualquer importunação, ir tirar satisfação com quem ficou com sua vaga no estacionamento, fechou seu carro ou mexeu com sua garota. Uma arma dá ao sujeito a idéia de que ele é mais sujeito, que controla a situação, e por isso ele vai à frente no enfrentamento, enquanto o desarmado iria para casa.

Que barulho foi esse?”, pergunta à esposa na cama. “Acho que foi lá fora, na garagem.”, responde o marido. “Vamos então acender uma luz, ligar para polícia.”, “De jeito nenhum”, diz o macho confiante, “fica em silêncio que vou pegar a arma para dar uma lição nesses fs.d.p.”. Será que esse sujeito pegou seus criminosos? A julgar pelas estatísticas, ele morreu. Metade dos policiais cariocas – os mais acostumados a trocar tiros no país – levam chumbo quando entram em tiroteio com bandidos. O que esperar então daquele que só deu três tirinhos no barranco do sítio e agora quer bancar o herói? Coitado! Sem a arma, teria ouvido a esposa e assim não teria ocupado uma vaga no IML.

Parece – opinião livre – que algo assim pode ter acontecido com Thales. Alguém mexe com sua namorada. Ela, provavelmente (sua mãe a ensinou) sabe como lidar com isso: não dá bola, sai de perto, dirige-se a lugar seguro. Mas ele está armado. “Com namorada minha ninguém mexe.!” Reclama com os rapazes que estão em grande número. Imprudência? Não, ele tem a arma! A arma é mostrada. Jovem e solitário promotor diante de um bando de jovens na madrugada. Quem vencerá? Testosterona a dar com sobra. O grupo diz algo como: “Atira se és homem!” Mais alguns detalhes e onze tiros!

Ah, se o promotor tivesse deixado sua arma em casa naquele dia! Teria entrado no carro, voltado para casa. Sairia doido da vida, mas a namorada logo o tranqüilizaria, encheria sua bola, como só as mulheres sabem fazer: “Deixa, amor, eles mexem, mas você que aproveita.” O macho-alfa então dormiria em paz, com sua honra lavada, afinal eles mexem com ela por que não podem tê-la. “Que conclusão maravilhosa, meu amor!” Além de jovem, bonito e bem empregado ainda sou o rei da cocada! “Thales, você é um sucesso”.

Mas, o azar, Thales levara a arma naquele dia. E por isso, sua honra, seu emprego e, quem sabe, sua própria mulher, tão obstinadamente defendida, sumam de sua vida. Pobre Thales e sua arma.

Talvez essa história aqui narrada não seja a verdadeira, mas é uma versão possível e que, pelo menos serve de apólogo, por isso passemos a moral da história:

1). Garotas, não importunem seus acompanhantes com as cantadas que recebem de terceiros. Homens não sabem brigar como vocês (mais civilizadas), que se xingam, trocam ataques à honra, à roupa, à estética ou aos cabelos. “Vagabunda, mocréia, bruxa!” Mas depois se encontram no banheiro da boate para retocarem, lado a lado, a maquiagem e irem cuidar cada qual de sua vida. Nós não, inseguros como somos, queremos eliminar o outro, quebrar-lhe os dentes, fazê-lo sofrer, não podemos puxar cabelo, não podemos ficar só xingando, temos que sair no braço ou na arma. Por isso não desperte o ódio de seu namorado, ele pode ir para a cadeia – ou para o cemitério – porque alguém lhe ofendeu/elogiou de “gostosa”.

2) Garotos, pensem bem quando sacarem a arma. Arma, quem já foi do meio sabe, só se saca quando é para utilizar. Antes de sacar, então, pense: estou mesmo disposto a atirar? Estou disposto a me arriscar a passar os próximos anos respondendo a processos, com risco de cadeia e ruína financeira, por causa desse infeliz? Tenho alguma outra saída além de atirar? Com uma arma na mão não se blefa, jamais!, Pois, outro defeito tipicamente masculino, o macho desafiado se torna imbecil. Quando você mostrar a arma para o garotão, verá que ele quase nunca fugirá – é que nós, homens, vimos muitos filmes do Chuck Norris – por isso o desafiado abrirá a camisa e dirá: “Atira, se for homem.” E daí pra onze tiros é um pulinho.

Em suma: mulher que se queixa ao namorado que outro mexeu com ela é “chave-de-cadeia”, pense bem, garotão, se ela vale sua liberdade e patrimônio dos próximos anos. E, garotas, namorado armado vai “se achar” e na hora que deveria baixar a bola, vai tentar mostrar o seu valor, que você é a garota do Rambo e etc., e aí a mãe de vocês vai, com quase certeza, chorar. E muito.

26.8.07

Poema

Quem é que não se lembra
Daquele grito que parecia trovão?!
– É que ontem
Soltei meu grito de revolta.
Meu grito de revolta ecoou pelos vales mais longínquos da Terra,
Atravessou os mares e os oceanos,
Transpôs os Himalaias de todo o Mundo,
Não respeitou fronteiras
E fez vibrar meu peito...

Meu grito de revolta fez vibrar os peitos de todos os Homens,
Confraternizou todos os Homens
E transformou a Vida...

... Ah! O meu grito de revolta que percorreu o Mundo,
Que não transpôs o Mundo,
O Mundo que sou eu!

Ah! O meu grito de revolta que feneceu lá longe,
Muito longe,
Na minha garganta!

Na garganta de todos os Homens



Amílcar Cabral (1924-1973). Poeta e político nascido no Guiné-Bissau, então colônia portuguesa. Amílcar se destacou na luta contra o colonialismo português sobre a África. Diante da recusa dos portugueses aos apelos pela libertação de Cabo Verde e Guiné, Amílcar tomou parte na luta armada. Foi assassinado em 1973, sem ter visto seu país se tornar reconhecidamente independente - o que só ocorreria em 1974. Poeta magistral em nossa língua, é lamentável que muitos brasileiros dele jamais tenham ouvido falar. Ah, o poema acima se chama mesmo Poema.

24.8.07

CESUSC Exercícios


Esses americanos são mesmo um povo atrasado, como é que ousam mandar para a prisão uma moça a quem, na linguagem clássica da criminologia, faltam dois pês?



Direito Penal II

1) Marcos, funcionário público, durante as férias, estupra Flora, vindo a ser condenado, definitivamente, a quatro anos de prisão. Ele perderá seu emprego? E se fosse empregado privado, poderia pelo crime, ser despedido por justa causa?
ROTEIRO DE RESPOSTA:
a) Verificar se o crime foi ou não cometido com abuso de poder/violação de dever (alínea “a” do art. 92), caso contrário aplicar a alínea “b”.
b) Verificar se a eventual perda do cargo é efeito automático da condenação (está no código, procure).
c) Empregado privado? Pesquise na doutrina.


2) Joel, policial, foi condenado a oito anos de prisão pelo crime de tortura. Perderá seu emprego? Depois de sua reabilitação poderá prestar concurso público para delegado de polícia?
ROTEIRO DE RESPOSTA:
a) Verificar o que diz sobre isso a lei de tortura (pesquisar nas leis anexadas ao seu código penal).

3) Em crime de ação privada, o querelante aceita perdoar apenas um dos querelados. Este aceita formalmente o perdão oferecido. Como ficará a ação contra os dois querelados restantes?
ROTEIRO DE RESPOSTA:
a) A resposta está facilmente localizada no código, no capítulo da Ação Penal.
b) Não esqueça de ter claro, para a prova e carreira, a diferença entre querelante e querelado.

4) Marina espancou seu filho Toninho, de cinco anos. Condenada a um ano de prisão, ela perderá o poder familiar sobre Toninho? E sobre seus dois outros filhos, Tomas, de 15 e Juliana, de 16?
ROTEIRO DE RESPOSTA:
a) Verifique se esse crime – lesão/maus tratos – é dos que autorizam a medida de restrição ao poder familiar;
b) Veja se a lei exige tempo mínimo de condenação para esse efeito;
c) Verifique se tal efeito é automático;
d) Pesquise na doutrina se tal efeito se estende aos demais filhos.

5) Maurício, condenado a dez anos por tráfico de drogas, cumpriu três, e pergunta-lhe se tem direito ao livramento condicional. Essa é a primeira condenação de Maurício. Pode ser beneficiário de eventual indulto?
ROTEIRO DE RESPOSTA:
a) verifique se tráfico de drogas cai na regra dos crimes hediondos;
b) verifique o tempo mínimo de cumprimento de pena para o livramento condicional de condenados por tal crime, quando não reincidentes;
c) verifique se tráfico de drogas enquadra-se na vedação constitucional ao indulto (art. 5º.,XLIII, da CF).

6) Dinarte, durante o período de prova do livramento condicional, é acusado da prática de roubo. Qual a conseqüência de tal acusação sobre sua condição de beneficiário do livramento condicional?
ROTEIRO DE RESPOSTA:
a) Pesquise o que é “período de prova”;
b) Veja na lei os possíveis efeitos de uma acusação (diferente de condenação) e seus efeitos.

7) Diante de uma pena privativa de liberdade em que caiba tanto sursis quanto sua substituição nos termos do art. 44 do Código Penal, o que deve o juiz fazer Explique.
ROTEIRO DE RESPOSTA:
a) O código penal é expresso nesse sentido. É só conferir.

8) Marcos, com 18 anos, cometeu o crime de roubo (art. 157, caput), em 22 de abril de 2006. A denúncia foi recebida pelo juiz em 05 de setembro de 2007. Citado, compareceu ao interrogatório. Mas, temendo ser preso, mudou-se para o estado do Pará. Ele agora está no seu escritório para saber quando prescreverá – se já não prescreveu – seu crime.
ROTEIRO DE RESPOSTA:a) Se ele compareceu ao interrogatório, não se suspende a prescrição;
b) Enquanto a pena não transitar em julgado para a acusação (o que parece o caso), a prescrição irá se regular pela regra do 109 do CP, a partir da pena máxima para o tipo cometido.
c) Verifique se, neste caso, deve o prazo ser contado a partir da data do fato criminoso ou do recebimento da denúncia.

9) Luís comete lesões corporais em 22 de fevereiro de 2005. Foi denunciado em 05 de março de 2006 (na mesma data a denúncia foi recebida) e julgado em primeira instância em 20 de março de 2007 (publicada no mesmo dia), a seis meses e 20 dias de prisão. A acusação não tem mais recursos. Houve prescrição? Explique.
ROTEIRO DE RESPOSTA:
a) Se já há pena máxima definitiva, é possível verificar a prescrição retroativa;
b) Verifique pela pena aplicada, mais a tabela do 109 do CP, se do fato até o recebimento da denúncia; ou desta até a publicação sentença não se passou o lapso prescricional in concreto.

10) Adroaldo, que cometera um estupro, foi considerado inimputável, por sentença transitada em julgado. Recolhido a hospital de custódia e tratamento, por um período mínimo de dois anos, ele já está lá há 11 anos - sendo os exames criminológicos desfavoráveis à sua soltura. Seu advogado alega que ele já está trancafiado por prazo superior ao máximo previsto para crime cometido (dez anos), logo deveria ser imediatamente posto em liberdade. Dê um parecer acerca da razoabilidade – legal e jurídica - do pedido do advogado.
ROTEIRO DE RESPOSTA:
a) Pesquise na doutrina;
b) Reflita.

22.8.07

A etiqueta do crime: considerações sobre o labelling approach

Receita indigesta
Os criminosos são, em grande medida, uma invenção do sistema de repressão penal; ao contrário do que pensa o senso comum, eles não são simples seres malvados, que andavam livres sobre a terra até que o Direito os descobriu e que, desde então, tenta, por meio das penas, neutralizá-los. Não, os criminosos não são produtos de descobertas, mas sim entes inventados pela lógica distorcida do sistema penal vigente. Para quem foi embalado pelo modelo etiológico – aquele do criminoso enquanto ser anormal - as afirmações acima podem parecer tão estranhas quanto acusar o sistema de saúde pública de ter criado os doentes, e é por isso que a primeira impressão que se costuma ter diante da abordagem criminológica que as subscreve, o labelling approach, é a de estarmos diante de uma das muitas teorias da conspiração, aquelas paranóicas construções teóricas destinadas a apontar conluios maquiavélicos que dirigiriam, sub-repticiamente, as instituições centrais de nossa sociedade, como o Direito e o Estado. O sistema penal inventar criminosos, onde já se viu...
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Mas antes de desenvolver uma antipatia irreversível pelo labelling approach, municie-se de algumas informações que dão o que pensar. A primeira é a cifra oculta, ou seja, a constatação de que há muito mais condutas praticadas contra o direito criminal do que o sistema penal tem condições de investigar e processar. Isso significa que muitos cometem crimes, mas apenas alguns serão ditos criminosos (ninguém é criminoso até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, lembra?). A segunda: há, mesmo proporcionalmente, muito mais pobres nas cadeias do que membros de outras classes. Da primeira afirmação podemos concluir que muito mais gente mereceria ser chamada de criminosa em relação àquelas que efetivamente são. Da segunda, inferimos que, não podendo perseguir a todos, o sistema penal persegue prioritariamente os mais pobres. Some-se a isso contradições como a seguinte: se há tantas críticas ao sistema penal brasileiro, de que há excesso de recursos e procedimentos que inviabilizam, por exemplo, a prisão do político desonesto, por que os estratos mais marginalizados da população caem tão facilmente atrás das grades? Por que essas dificuldades que o jurista conformado diz ser “inerente ao processo” somem no andar debaixo? Mistério...

Cifra oculta, dificuldade em criminalizar os ricos, excesso de pobres nas cadeias, esses são os ingredientes básicos da receita de como produzir criminosos. Reserve essas informações. E vamos em frente.
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São seus olhos
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Surgida nos EUA da década de 1960, a teoria do labelling approach, ou teoria do etiquetamento, sofreu uma forte influência do interacionismo simbólico, corrente sociológica que sustenta que a realidade humana não é tanto feita de fatos, mas da interpretação que as pessoas coletivamente atribuem a esses fatos. Isso significa, entre outras coisas, que uma conduta só será tida como criminosa se os mecanismos de controle social estiverem dispostos a assim classificá-la. O que é um crime, então? Crime, pelos menos em seus efeitos sociais, não serão, como ensinava o dogmático penalista, todas as transgressões injustificadas à lei penal. Não, crimes são apenas as condutas que a sociedade e seus órgãos punitivos decidem perseguir como tal. Sem certo consenso de que determinada conduta suspeita deve ser averiguada, que determinados fatos e indícios devem ser convertidos em um processo penal, não haverá, em seus efeitos práticos, crime.
Era isso que H. Becker, um dos principais expoentes da abordagem do etiquetamento, queria dizer quando sustentava que o desvio não está no ato cometido, nem tampouco naquele que o comete, mas que o desvio é a conseqüência visível da reação social a um dado comportamento. Ser desviante, ou criminoso, é, assim, o resultado de um etiquetamento social, e não o corolário lógico de uma conduta praticada. É possível, como bem sabemos, infringir as normas penais sem que se seja criminalizado. Pense-se, sobretudo, nas milhares de condutas presumivelmente delituosas das elites brasileiras, não investigadas por falta de “vontade” das autoridades competentes. Também não é incomum haver processos de criminalização sem que haja certeza acerca da autoria da conduta típica – pense nas investigações apressadas, nas exposições abusivas da imprensa, e nos processos judiciais mal conduzidos contra suspeitos miseráveis. Não, o crime não é algo que se faz, mas uma determinada resposta social a um algo supostamente feito.
O crime, portanto, não emerge naturalmente a partir de uma conduta proibida praticada por um agente imputável (modelo dogmático), nem resulta diretamente de uma conduta proibida praticada por um ser anti-social (modelo etiológico), mas é o resultado de uma interpretação sobre que aquela conduta, vinda daquela pessoa, merece ser classificada como crime. Exemplifica-se. Imaginemos uma mulher que tenta sair de uma joalheria com um caro e não pago bracelete quando é barrada pelos seguranças. Se essa aparente tentativa de subtração à coisa alheia móvel (art. 155 do Código Penal) será tomada como crime, sintoma compreensível de cleptomania ou mera distração, vai depender menos dos detalhes da conduta tentada do que do perfil da apontada infratora. A tese da distração cai bem, por exemplo, se a suposta tentativa fosse realizada por uma cliente habitual da joalheria; assim como a tese da cleptomania se adequaria perfeitamente se a acusada fosse uma famosa atriz de novela. Já para uma empregada da loja, a única tese “compatível com a realidade das coisas” é a de tentativa de furto puro e simples. A conduta é a mesma, a ausência de provas também, só o que variará, neste caso, são as suposições socialmente consideradas adequadas ao caso.
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Crenças presumidamente lógicas, mas claramente ideológicas na proteção dos mais poderosos é que resolverão a questão. “Acreditamos ser um sintoma de cleptomania” – diz em nota o dono da loja – “pois é ilógico crer que uma pessoa de elevada posição social iria se rebaixar a ponto de furtar uma jóia”. Eis aí uma declaração coerente com o imaginário popular de que o furto é delito exclusivo de pessoas pobres. Ora, se a cleptomania é um transtorno psíquico, sua manifestação não se ligará ao fato de se poder pagar ou não pelo bracelete, mas à compulsão de tê-lo sem pagar. Assim, a condição de ser pobre ou rico, clinicamente, não deveria importar. Ou esse transtorno é exclusivo de quem ganha acima de tantos milhões por ano? Mesmo o DSM IV (o manual de psiquiatria norte-americano) parece induzir a essa crença, ao colocar que o furto na cleptomania costuma ser de um bem de pouco valor monetário, relativamente às posses de seu praticante. Mas isso se deve à orientação corrente, a bem da sociedade, de que o diagnóstico para a cleptomania deve ser residual, só devendo prevalecer se não for mais bem explicado por outro transtorno de conduta. Rasteiramente: se a pessoa não precisava do que furtou, ganha força a tese da cleptomania; se precisava, deve ser furto mesmo.
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Políticos e corruptos de elite defendem-se da mesma forma: “Não preciso roubar.” Se, ao longo do mundo e, particularmente neste país, só se apropriasse dos bens alheios quem precisasse, o universo das finanças públicas seria esplendidamente superavitário. Ao contrário, se todos os necessitados passassem a roubar, a vida num país de tantos miseráveis como o Brasil seria insuportável. Para o mal ou para o bem, a lógica do “como sou rico, não roubo”/ “como sou pobre, roubo” não guarda relação com os fatos: apenas com ideologias. E é dessa ideologia que se beneficiarão a socialite e a atriz para explicarem que um bracelete não pago, em seu poder, na saída da loja, só pode indicar distração ou sintoma clínico; furto nunca. Mas essa mesma ideologia selará o futuro da empregada, sobre a qual a tese da distração, ou doença, será vista como uma afronta à inteligência dos personagens que conduzem seu indiciamento criminal. Logo o delegado a lembrará que “não nasceu ontem!”.
Então o que é um criminoso? Criminoso é aquele a quem, por sua conduta e algo mais, a sociedade conseguiu atribuir com sucesso o rótulo de criminoso. Pode ter havido a conduta contrária ao Direito penal, mas é apenas com esse “algo mais” que seu praticante se tornará efetivamente criminoso. Em geral, esse algo mais é composto por uma espécie de índice de marginalização do sujeito: quanto maior o índice de marginalização, maior a probabilidade de ele ser dito criminoso. Tal índice cresce proporcionalmente ao número de posições estigmatizadas que o sujeito acumula. Assim, se ele é negro, pobre, desempregado, homossexual, de aspecto lombrosiano e imigrante paraguaio, seu índice de marginalização será altíssimo e, qualquer deslize, fará com que seja rotulado de marginal. Em compensação, se o indivíduo é rico, turista norte-americano em férias, casado e branco, seu índice de marginalização será tendente à zero. O rótulo de vítima lhe cairá fácil, mas o de marginal só com um espetáculo investigativo sem precedentes.
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Não é o que se faz, mas o que se é

Contrariando os manuais acadêmicos, o labelling approach sustenta que é mais fácil ser tido como criminoso pelo que se é do que pelo que se faz. Essa afirmação ganha força quando nos lembramos da cifra oculta, nomenclatura que destaca que as condutas delituosas que chegam a virar processos judiciais constituem apenas a ponta do iceberg do total de condutas ilícitas efetivamente existentes em uma sociedade. Se nem tudo que, pela leitura da lei, deveria ser tido como crime assim é reconhecido pela prática dos operadores do sistema penal, deve haver um critério de seleção para decidir entre tantas condutas ilícitas praticadas quais serão, de fato, tratadas como crime. O labelling approach sustenta que tal critério é o índice de marginalização do sujeito, o número de estigmas que ele carrega, ainda que nenhum deles precise ser de natureza criminal. Nesse sentido, o sistema penal não teria a função de combater o crime, mas a de atribuir rótulos de criminosos aos já marginalizados.

Pensemos em duas pessoas viajando num ônibus. Escondida entre as poltronas das duas encontra-se um pacote contendo droga ilícita. Não se sabendo a qual delas pertence, investigam-se ambas. As duas se dizem inocentes e os indícios colhidos não são esclarecedores. Investiga-se quem são elas. O da direita é contabilista, empregado da mesma empresa há 10 anos, pai de família, de paletó e gravata. Já o da esquerda é um surfista, sustentado pelos pais, com um piercing na sobrancelha. Basta saber em qual dos dois seria mais fácil acrescentar o rótulo de criminoso para saber quem será mais enfaticamente investigado. Um rótulo predispõe ao outro. Surfista desocupado e traficante combinam muito mais facilmente do que contabilista empregado e traficante (pelo tirocínio de alguns policiais, quem tem menos dinheiro para viver tem mais dinheiro para comprar drogas). Na prática, em situações como essas, sabe-se que o Estado se lembrará, de fato e de direito, que é seu dever provar a eventual culpa do contabilista antes de sair alardeando que achou o culpado. É o que manda a lei. No entanto, com uma freqüência assustadora, diante do surfista desocupado o ônus se inverterá, cabendo ao este demonstrar sua inocência, trocando-se a presunção de inocência determinada pela lei pelas regras da pragmática repressiva.
O rótulo de marginal parece não ter aderência direta à pele dos indivíduos. Para aderir, necessário é que tais indivíduos primeiro tenham sido selados com outros rótulos estigmatizantes, é preciso que seu índice de marginalização seja alto. É assim que o processo contra o político desonesto quase nunca concluirá nada. As recorrentes alegações de ausência de provas, de cerceamento de defesa e a demora na ação, que levará à prescrição “sem julgamento de mérito”, o favorecerão antes que o rótulo de criminoso possa-lhe ser impingido. Já para investigar, processar e encarcerar um indivíduo pobre, o sistema repressivo é rápido e quase infalivelmente condenatório. É que a base onde fixar o rótulo de marginal já existia: a própria pobreza. Todos esperavam a condenação e ela veio. Nenhuma surpresa.
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Ladeira escorregadia

Um estigma predispõe ao outro. É como uma ladeira escorregadia: uma vez tendo descido o primeiro degrau da exclusão (ser pobre, desempregado, bicha, preto ou prostituta) é preciso ter muito cuidado para não descer mais outro e outro, até chegar ao final do processo excludente, sintetizado no rótulo de criminoso. É assim que comentários aparentemente causais-explicativos são dados na mídia quando se descobre, por exemplo, que o assassino era homossexual. Na leitura popular há um continuum do tipo: homossexual, pervertido, criminoso. Já se esperava. Da mesma forma, tudo parece estar esclarecido quando se descobre na casa do acusado de assassinato uma coleção de filmes pornográficos – que a autoridade exibirá como se fosse de relevância crucial à prova que lhe cabe buscar. A mente cozida em folhetins policiais, amiúde, segue uma nefasta lógica do tipo: gosto por pornografia = perversão = a predisposição assassina. Esse é um expediente que encanta a platéia, ávida por curiosidades e aberrações, e permite disfarçar a ausência de competência probatória do espetáculo.

Mas, é bem verdade, que um estigma não leva a outro apenas por efeito de um etiquetamento desonesto. Não, um estigma efetivamente pode levar a outro, porque quanto mais estigmas alguém carrega menos custoso lhe será assumir outros. Basta lembrar que todo estigma é uma depreciação no valor social de alguém. Assim, quanto mais estigmas esse alguém tiver menos socialmente ele valerá, tendo pouco a perder ao se dispor a assumir mais um rótulo depreciativo. Um sujeito marginalizado é mais facilmente recrutado para os modos de vida ilícitos. Depois de ter perdido o lar e a escola, é relativamente pouco custoso ao adolescente embrenhar-se no mundo das infrações, quer seja assumindo a culpa de outrem, quer seja efetivamente tomando parte na ação criminosa. A partir do momento em que desse adolescente já “não se esperava grande coisa”, abriu-se o convite para que dele se esperassem as piores coisas. Cada estigma aumenta a vulnerabilidade do sujeito às demandas do mundo do crime.

A quem já está no inferno – infere a lógica popular – custa pouco dar um abraço no diabo. Se já não se tem muito a perder, pode-se, com poucos receios, arriscar perder tudo, pois, em se tratando de dignidade, o valor de cada um de seus componentes decresce à medida que decresce seu todo. É preciso ter a honra geral intacta para que se possa ser desonrado em aspectos específicos. Mesmo o Direito civil segue essa crença. Assim, tradicionalmente será maior o valor da indenização estética de um dano produzido contra um rosto intacto, bonito, sem cicatrizes, do que se o mesmo dano fosse produzido contra um rosto já marcado e deformado. A lógica da reparação civil, neste caso, é bíblica: muito será dado a quem muito já tem (ou teve). Em forma de exemplo, quem não possui os dentes incisivos não deverá sofrer tanto com a perda de um dos caninos – sofrimento considerado terrível para aquele que tem uma dentição perfeita. Para as questões de estigma, esse critério de reparação civil parece aplicável: quanto menos respeito social se possui menos custoso é perder esse resíduo de dignidade.

A sociedade cria o marginalizado de forma a deixá-lo a apenas um passo da marginalidade. É assim que o dito crime organizado – comandado por pessoas nem um pouco excluídas – pode recrutar tão facilmente pobres, negros e miseráveis para fazer a parte suja e arriscada do tráfico. Recrutam-se pessoas cuja dinâmica da sobrevivência desceu ao nível do “se for preso, azar” ou “se morrer, morreu”. Pessoas que já não têm o que perder. Tire de uma pessoa uma boa parte de sua dignidade social e ela facilmente se encarregará de acabar com o resto, pois quanto mais baixa é a sua posição na sociedade, menor são suas alternativas de vida honrosa e menores são também os custos simbólicos de sua entrada no mundo do crime. Uma exclusão abre caminho para a outra e assim sucessivamente.

Embora um estigma possa facilitar a entrada em outro, isso não autoriza os acusadores públicos a fazerem uma dedução simplista de que quem já tem pouco a perder foi o responsável pelo crime de autoria incerta. Seria inverter causa e conseqüência. Ora a prostituta, por exemplo, tem pouco a perder acrescentando ao seu métier ações criminosas (como o pequeno tráfico de entorpecentes) justamente porque, mesmo antes de entrar no crime, já era tratada como se fosse criminosa. Se uma pessoa não perdesse a dignidade por ser prostituta, não lhe cairia facilmente o rótulo de criminosa diante de uma acusação mal fundamentada. É justamente porque a sociedade faz com que um estigma leve a outro que eles efetivamente seguem essa lógica. Num exemplo inverso, o médico viciado em morfina, que tendo acesso fácil à droga, e horários de plantão para disfarçar seu vício, será capaz de conservar sua dignidade de pessoa honesta e produtiva, não sofrendo os efeitos da marginalização. É viciado apenas, sendo razoável supor que repudiaria propostas criminosas – como traficar, furtar, matar – como qualquer outra pessoa. A lógica não é, portanto, a de que uma conduta ilícita leve a outra, mas a de que uma situação de marginalização seja um efetivo convite a que se abrace outra.

O que serve como explicação sociológica da entrada facilitada dos marginalizados no mundo crime, não serve como recurso simplificador dos procedimentos de investigação criminal. A conclusão de uma investigação criminal não pode se apoiar em máximas do tipo: “Dentre os acusados, é criminoso aquele que possuir o maior índice de marginalização.” Assim, é um absurdo que certos delegados diante de uma morte violenta e incerta numa favela, sem saber quem é a vítima e seu autor, sem nada saber daquele crime especificamente, digam com estúpida convicção ao repórter da TV: “provável envolvimento com o tráfico de drogas”, como se a morte dos que vivem em favelas não pudesse decorrer de motivos passionais, vingança pessoal, motivos fúteis, crimes patrimoniais, familiares etc. para acontecer; ali se morre apenas por ação do tráfico. A platéia social novamente gosta e o espetáculo pode ser conduzido de qualquer forma, pois quem se importa com tão desqualificado morto? Agora, diante da morte do político que ia depor num processo criminal no dia seguinte, alardeando que entregaria muitos nomes de pessoas importantes, o mesmo delegado seria pateticamente cauteloso: “Todas as hipóteses, inclusive de crime por motivações políticas, estão sendo averiguadas”. É que, particularmente no Brasil, ricos podem morrer de muitas formas; pobres apenas da forma que menos trabalho der à investigação.
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Só não paga quem pode
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Nos desdobramentos teóricos do labelling approach, o que chamamos de imputação criminosa seria, na verdade, o resultado de duas distorções, sintetizadas sob o sugestivo nome de “processo de criminalização”. Na primeira distorção, há a chamada criminalização primária, feita, sobretudo, pelo legislador penal, que consiste na eleição de condutas a serem consideradas criminosas não pelo critério do dano social que provocam, mas pela origem habitual dos que praticam tais condutas. Um exemplo paradigmático neste sentido é expresso pelo artigo 176 do Código Penal brasileiro que incrimina aquele que, dentre outras condutas, toma refeição em restaurante “sem dispor de recursos para efetuar o pagamento”. Sim, você leu certo, só há crime se quem tomou a refeição no restaurante não tinha dinheiro para pagá-la, mas se ele dispunha de recursos para tal e simplesmente preferiu não efetuar o pagamento não poderá ser incriminado. O objetivo dessa lei não é, como então fica óbvio, evitar danos ao patrimônio alheio, nem convencer as pessoas a que paguem a refeição tomada, mas evitar que os mais pobres possam se “aproveitar” de sua pobreza. A jurisprudência confirma: “Para configurar-se o crime, é necessário que o agente faça a refeição sem ter dinheiro para pagá-la; se tem recursos, mas não paga, como acontece nos ‘pinduras’ estudantis, o ilícito é só civil e não penal” (TACrSP, Julgados 90/83).

Ao criar leis, portanto, há um processo de criminalização primária, resultante da intolerância legislativa com a conduta dos mais pobres. Quando falamos de criminalização primária, falamos, em síntese, de duas coisas:

a) O crime não é uma realidade natural, descoberta e declarada pelo Direito, mas uma invenção do legislador, algo é crime não necessariamente porque represente uma conduta socialmente intolerável, mas porque os legisladores desejaram que assim fosse;


b)E essa invenção segue critérios de preferência legislativa, cujos balizamentos não costumam respeitar princípios de razoabilidade ou proporcionalidade, gerando leis penais duríssimas contra as condutas dos mais pobres e rarefeitas em se tratando de crimes típicos dos estratos sociais elevados.

Na segunda distorção, chamada de criminalização secundária, entram em ação os órgãos de controle social (polícia, judiciário, imprensa etc.) que, ao investigarem prioritariamente os portadores de maior índice de marginalização, acharão – por óbvio – um maior número de condutas criminosas entre eles. Se mais vezes os pobres são tidos como suspeitos, se condições como possuir emprego e residência fixa influenciam nos rumos do processo penal, se muitos dos advogados que defendem os mais pobres chegam tarde às audiências e demonstram pouco interesse nessas causas, se não ter um modelo familiar idêntico ao das classes de onde provêm os juízes e seus auxiliares facilita, sobremaneira, o rótulo de “proveniente de família desestruturada”, se ter um passado tortuoso é capaz de suprir a ausência de provas na presente acusação, então, não há outra saída: os marginalizados serão facilmente convertidos em marginais. A etiqueta penal lhes aderirá à pele, e dela jamais sairá.

Em síntese, o labelling approach atuou como um despertador inconveniente no sono do penalista dogmático, que jurava que o Direito penal nada mais fazia do que nos proteger de pessoas essencialmente más. Ao contrário, o labelling veio para mostrar que nosso tipo habitual de criminoso – pobre e encarcerado – revela muito pouco sobre a estrutura do mal em si, e muito, mas muito mesmo, sobre a ideologia desigualitária de nossa sociedade.


Bibliografia:

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BECKER, H. (1978). Los estraños. Buenos Aires: Tiempo Contemporáneo.
BERGER, P. L. e LUCKMANN, T.(2000). A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes.
Farrington, D. (1991). Psychological contributions to the explanation of offending. Issues in Criminological and Legal Psychology. Vol. 1, n.º 17, 7-19.
GOFFMAN, E. (1988). Estigma. Rio de Janeiro: Guanabara.
LOMBROSO, C. (1969). L’uomo delinqüente. Roma, s.ed.
SELL, S. C. Comportamento social e anti-social humano. Florianópolis: Ijuris, 2006.
ZAFFARONI, E. R. & BATISTA, N. Direito penal brasileiro I. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
XIBERRAS, M. (1996). As teorias da exclusão. Lisboa: Instituto Piaget.

11.8.07

Multa moral

Está fazendo sucesso na mídia a iniciativa de uma escola de Jaraguá do Sul, Santa Catarina, que instituiu uma “multa” de 10 centavos por palavrão falado em sua biblioteca. Aparentemente a idéia é boa e, segundo alguns funcionários entrevistados, os próprios alunos tratam de fiscalizar seus colegas desbocados, delatando-os para que sofram o simbólico prejuízo financeiro. Dizem que o nível do palavreado local elevou-se. Por que não pensamos nisso antes? Porque não funciona.

A idéia de aplicar multa a deslizes morais não é nova. Sendo sistematicamente abandonada porque, apesar dos bons resultados inicialmente verificados, ela costuma trazer um efeito colateral fulminante: ao converter uma obrigação moral (aquela que se deve fazer por si mesma, por considerá-la o jeito virtuoso de proceder) em uma obrigação externamente motivada, realizada sob pena de multa, o sujeito mercantiliza sua própria noção de dever, surgindo-lhe a idéia de que tudo tem um preço, inclusive sua conduta moral, conduzindo-lhe, assim, ao cálculo utilitarista acerca do quanto tem disponível, em dinheiro, para transgredir.

Tudo vira um jogo

Como os professores vão passar um sermão no garoto malcriado se ele já está com os 10 centavos à mão? “Ora, cobre a dívida, e não me encha o saco, professor!”. A autoridade moral do mestre ficaria desautorizada em si mesma; ele se converteria num mero cobrador de deslizes éticos; a caixa registradora substituiria a advertência responsabilizante.

E quando a penalidade for retirada o que restará? Restará a consciência de que transgredir é apenas uma brincadeira de gato e rato, de pagar pela burrice de não ter visto que algum delator estava à espreita. A retirada da punição terá o efeito de uma revogação da norma por ela protegida: estarão liberados os palavrões. Não era isso que aconteceria conosco se amanhã surgisse uma lei dizendo que estacionar em local proibido, ou falar ao celular no volante, embora ainda fosse desaconselhável, não acarretaria mais qualquer tipo de punição? Não teríamos sempre nossos motivos "excepcionais" para estacionar ali, pendurar-se ao fone aqui? Acho que sim.

É conhecimento elementar de sociologia jurídica que a retirada da pena leva à conclusão pessoal de revogação da norma a ela associada. Morto o cão, morta a raiva.

Isso ocorre mesmo com as chamadas sanções premiais. Passe a dar ao seu filho pequeno um real todas as vezes que ele se dispuser a tomar banho. Depois revogue a premiação. Diga que tomar banho “nada mais é do que uma obrigação moral.” Ele vai se sentir lesado, vai acreditar que você o injustiçou, tentará compensar o desequilíbrio contratual gerado: vai se esfregar menos, gastar mais xampu, molhar todo o banheiro, dizer que já tomou... Aí então, haja punição ou a volta do prêmio...

Prêmios materiais ou multas dadas para regularem comportamentos tendem a exigir perpetuidade. Mas o sujeito não se condiciona? Com o tempo não dá para tirar o reforço premial e pronto? Felizmente (para quem admira a liberdade humana, pelo menos) não é tão simples assim; se fosse, meu patrão poderia cancelar meu salário que eu continuaria indo para o trabalho; o governo poderia dispensar os fiscais da Receita que, por inércia, continuaríamos a dar a César o que não é de Deus.

Israel e suas creches

Em Israel, narram os autores de Freakonomics, uma experiência em alguns aspectos semelhante a de Jaraguá do Sul foi tentada. Ali os pais costumavam se atrasar demais para pegar os filhos na creche ao final do dia. Isso trazia aborrecimentos à instituição que tinha que manter algum professor de plantão, aguardando a chegada tardia dos pais e suas desculpas triviais. Então se decidiu implementar uma multa para atrasos superiores a 10 minutos, no valor de três dólares. O resultado? Aumentaram os atrasos, pois os pais agora não mais se sentiam culpados por fazerem alguém esperar por eles na creche: estavam pagando pelo atraso. Quem paga não precisa de desculpas nem de satisfações, quem paga tem uma liberdade que nasce do bolso. Desculpa é coisa para quem depende de favores alheios. Não é à toa que Adolpho Bloch dizia, sabiamente, que se devia fazer de tudo para fugir de favores: “De graça nem por um milhão!”.

As multas de trânsito

De certo que as multas de trânsito têm certa funcionalidade. Evitam transgressões. A razão disso é que as regras do trânsito não são, em geral, normas morais: ninguém ficará com remorso por ter ultrapassado o limite de velocidade quando as condições do carro e da pista eram convidativas. Mas se há um guarda ou um radar nos monitorando, obedecemos ao limite de velocidade imposto. Um pouco à frente, sem a menor culpa, aceleramos de novo. Estamos no celular, dirigindo. Ops, um policial! Escondemos o aparelho. “Não caiu não, é que tinha um guarda, e eu não podia falar...”.

Quando uma regra não possui apoio da moral, quando obedecer-lhe não nos parece, por si mesma, uma virtude, a pena é tudo o que lhe resta. Mas a pena só dissuade na medida de sua relativa certeza de aplicação e enquanto permanecer vigente. Todos se comportam conforme as ordens do semáforo eletrônico, mas uma infinidade de pessoas volta de festas dirigindo embriagado. O que varia em ambos os casos, como se vê, não é o perigo da ação contrária à lei: mas a quase certeza de punição no primeiro caso e a quase certeza de que no caminho de casa não haverá nenhuma blitz e seus bafômetros. Quando uma obrigação não é percebida como moral, a presença do fiscal é sua única garantia de obediência.

Moral da história

Só a moral, por ser uma obrigação autônoma, nos mantém controlados mesmo quando a pena não existe ou sua aplicação é falha. Numa lição que remonta a Kant, só quando eu cumpro uma regra por acreditar tratar-se de algo que me é devido fazer, sem esperar ou temer nada por isso, é que estou sendo um sujeito ético. E é somente nesse caso que eu sou um sujeito moralmente livre, pois meus limites são impostos pela minha própria consciência. Mas se cumpro algo porque temo uma punição, estou sendo escravizado pela norma: faço porque os outros – a sociedade - assim deseja. Nessa situação, preciso ser estritamente vigiado.

Num sistema de regras sociais legítimas - éticas mesmo - deve-se esperar que o número daqueles que seguem os comportamentos exigidos porque acreditam que isso é o que de fato lhes cabe fazer deva ser sensivelmente superior ao número daqueles que adequadamente se comportam apenas por que temem punições. Santa Catarina tem cerca de 17 mil policiais e seis milhões de habitantes. Por sorte, a imensa maioria dos catarinenses faz o que é certo porque quer continuar em paz consigo mesmo e não porque teme uma excepcional atuação da polícia. Isso se chama civilização.


Moral com moral se paga

Michael Walzer dizia que para que haja justiça nos sistemas humanos é preciso que se impeça que a lógica de uma determinada instituição social passe a ser a lógica de outra. Por exemplo, a lógica do amor é a do desejo, da admiração do outro em si; a do dinheiro é a da mercantilização das coisas. Num mundo justo, dinheiro não poderia ser utilizado para comprar amor; nem amor utilizado para auferir dinheiro. Seria injusto que isso ocorresse. Na mesma linha, a moeda da moral é a da auto-satisfação do dever cumprido, do querer bem-conviver com os demais em sociedade. Se o dinheiro passar a regular a moral, ela se destruirá, por ter se sido colonizada pela lógica mercantil.

Infelizmente não há muito que inovar: comportamento moral só pode ser reforçado por sua própria lógica. No caso escolar, isso se daria fazendo os alunos compreenderem, e sentirem, que sem tais normas a vida em coletividade se tornaria empobrecida, agressiva, ríspida e deplorável. No entanto, é preciso reconhecer que muitas regras de ontem não são mais legitimadas hoje. Perderam a função. Poderíamos inclusive investigar se a interdição dos palavrões não é uma delas. Cada vez mais a televisão, as rádios, as músicas, os livros, os adultos bem instruídos, as mães, os pais e os avós os utilizam. Seriam ainda imorais os palavrões?

A extinção das cegonhas

A maior parte dos palavrões possui conotação sexual. No passado, eles ofendiam, sobretudo na boca das crianças, porque indicavam um conhecimento vulgar das ações escondidas da mamãe e do papai, do titio e das moças da casa de tolerância. Hoje, quando as cegonhas já não fazem mais entrega e que a metáfora agropecuária da sementinha plantada na mamãe causa risos na tuminha do pré-primário, é de repensar a subversão causada pelos palavrões.

Talvez as palavras obscenas tenham de fato perdido qualquer importância moral, tornando-se seu emprego mero aspecto de estética lingüística: “Em nossa escola comemos com elegância, falamos com garbo, vestimo-nos a caráter.” Se dizer palavrões deixou de ser um ato moralmente reprovável, se aquele que o fala não mais sente culpa e aquele que o escuta não mais se ofende (embora possa fazer que sim, “para educar as crianças”), só resta mesmo as sanções externas. Aí sim, ponto para Jaraguá do Sul. Mas se palavrões ainda ofendem a moral, então é melhor voltar ao tradicional, a ladainha: “Menina, isso não se diz!”, “Era o que faltava, uma moça com uma palavra dessas na boca!” “Ai, ai, ai!!!” “Vai de castigo!”.

Em Jaraguá, e sua multa, essa menina poderia faceiramente responder: “Que é isso, babaca, para que ir de castigo se eu posso ir ao banco?”.