10.7.10

Zonas de incerteza punitiva


Uma das formas de entender os raciocínios que, em Direito, ligam o crime à pena é a idéia de zonas de certeza punitiva. Quando uma conduta dita criminosa, em termos jurídicos, for também uma transgressão social (causar repulsa pública) emergirá como corolário lógico a idéia de que a ela deve corresponder uma punição. Pensemos num indivíduo que, por mera ganância, mata a esposa para receber um seguro de vida. É difícil encontrar quem discorde que, neste caso, uma punição penal é devida e merecida. Estamos na zona de certeza positiva: é claro que é crime. Zona de certeza punitiva positiva é aquela em que direito e sociedade concordam: a conduta sob análise é crime e merece uma resposta à altura.
Em outras vezes, há uma grande clareza de que uma dada conduta não é criminosa, e qualquer um sabe disso. Pensemos num casal de namorados beijando-se em público. Há ainda quem ache que merecem punição? É claro que houve um tempo em que tal beijo, se fosse lascivo, – como diria o vetusto tratadista, - suscitava a repugnância pública e o enquadramento criminal. Hoje não. Muito embora haja em Direito penal uma estranha mania de dar voz a autores do passado na interpretação de costumes do presente, a idéia de que um beijo na boca seja portador de lascívia criminosa é algo superado, tendo se tornado uma ação penalmente irrelevante. Trata-se de conduta situada na zona de certeza criminal negativa: é claro que não constitui crime.
Como resposta a ambos os casos – matar por ganância/ beijar com desejo - o consenso é esperado: deve-se punir aquela morte; deve-se isentar esse beijo. Zona de certeza positiva e zona de certeza negativa, respectivamente. A regra é clara, como diria, em uníssono, o comentarista, o juiz e a sociedade. O Direito aqui é cheio de certezas. Não sendo necessário para aplicá-lo nenhuma sutileza, apenas uma consulta às fontes jurídicas e sociais do presente. Em outras palavras, basta interpretar a lei antevendo a revolta que causaria a absolvição do que mata por cupidez e a indignação resultante da punição do casal por seu beijo. Nessas situações, a resposta jurídica devida aparece sem meio-termo, ou é ou não é. São casos para comemoração no edifício da dogmática. Finalmente, o Direito apresenta-se claro, claríssimo. É destacar a norma e colar no caso.
Mas, no mais das vezes, estamos diante de condutas fronteiriças, não sendo possível dizer, de pronto, se são ou não criminosas. Fim de festa na casa dogmática. Pensemos na interrupção intencional da gravidez do feto anencefálico (feto sem cérebro). Muitas decisões sustentam tratar-se de crime de aborto; outras, dizem que não se trata de crime, pois, sem cérebro, não há vida viável e seria crime impossível atentar contra a vida de um feto que, "tecnicamente", não é vivo. Aqui há polêmica. Polêmica indica a existência de dúvida razoável. Há pessoas inteligentes e bem intencionadas dizendo sim, e outras, igualmente qualificadas, dizendo não. Não há como simplesmente passar a régua, a conta não fecha. Estamos, neste caso, na zona cinzenta do sistema jurídico. Falta clareza. Olhando por um lado, acha-se que é crime, olhando pelo outro, acha-se que não. Onde católicos enxergam crime, feministas laicas enxergam o exercício de um direito; onde alguns vêem uma desvalorização da vida humana em suas diferentes formas, outros anunciam o surgimento do respeito devido ao corpo e sentimentos femininos. A desejada certeza penal resta esfacelada.
Muitos tipos penais são excepcionalmente pródigos em produzir zonas cinzentas. Pensemos no artigo 233 do Código Penal. Ato obsceno. "Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa". O que é ato obsceno? Segundo Maggiore, ato obsceno representa a conduta positiva do agente, com conteúdo sexual, atentatória ao pudor público, que suscita repugnância". Resolvido? Não. Tudo bem. Só os incautos conseguem dar rápida operacionalidade penal a tal conceito. As pessoas ponderadas enchem-se de dúvidas. De fato, a explicação dada por Maggiore não permite nenhuma segurança jurídica, pois dizer que ato obsceno são condutas com conteúdo sexual ofensivo ao pudor público equivale a dizer que é ato obsceno o que a sociedade assim o considerar. O beijo ardente, o topless, a micção no muro da escola, serão ou não tidos por obscenos? Zona tão cinzenta e embaçada quanto as vidraças do carro em que namoram, lascivamente, o casal apaixonado na fria madrugada do fim-de-festa, pondo em polvorosa a donzelice do Direito e a hipocrisia da sociedade. Na caracterização de um ato enquanto obsceno um juízo de valor há de ser feito. A obscenidade de um ato depende do que se entenda por pudor público.
Plácido e Silva, em seu respeitável Vocabulário Jurídico, vem a nosso socorro, dizendo que pudor público: "É o decoro público ou sentimento coletivo a respeito da honestidade e decência dos atos, que se fundam na moral e nos bons costumes. Ofender o pudor público, assim, é praticar atos que ofendam os bons costumes e a moral pública." Como já se deve ter notado, para utilizar essa explicação é preciso saber antes o que é decoro público, é preciso saber o que é decência e moral públicas e, nessa redução sucessiva, nos depararemos sempre com a necessidade de fazer juízos de valor, acerca do que é ofensivo ou não, do que é bom ou mau. Ledo engano, o velho Plácido não nos socorre e a dúvida permanece.
Mas mesmo neste polêmico artigo 233, há zonas de certeza. Certeza positiva: é crime. Imagine um homem normal que baixe as calças na via pública e comece a se masturbar, sem se importar com os transeuntes. Ponto para Maggiori: é conduta sexual que choca o público. É ato obsceno. Merece reposta pública e criminal. Até o pai do acusado há de concordar. Plácido e Silva pode ser aplicado na íntegra: isso ofende os bons costumes, a moral pública, a decência e outras coisas mais. É tão óbvia a obscenidade desse ato quanto óbvia é a não obscenidade do beijo que a noiva dá no noivo por ocasião do casamento. Nesse caso, Maggiori, o padre e as testemunhas - embora possam antever nele intenções lascivas – emocionam-se sem se chocar. Zona de certeza negativa. Podem dispensar o delegado, o fato é atípico, digno até de beatificação.
Mas e o sujeito que toma banho nu no pátio de sua casa, sem se importar com a vizinhança, por ser adepto do naturismo? Está no seu direito ou abusando dele? Está em prática de ato obsceno ou em exercício regular de seu direito de propriedade e de livre expressão? Há polêmica. Zona cinzenta. Veja que ele não manifesta intenções lascivas – sexuais - ao tomar banho no quintal, apenas não vê problema em que os outros o vejam nu, embora ele não se esforce para que isso ocorra. Porém, o que dizer da opinião pública expressa pelos vizinhos? Parece legítima. As mães baixando a cortina, as visitas chocadas e por aí vai. Mas também não nos parece totalmente ilegítimo o direito de quem – sem intenção libidinosa – no interior de seus muros, queira bronzear-se sem roupa. Mas, e as crianças vizinhas? É, infelizmente, essas hipotéticas crianças já devem ter sido socialmente condicionadas pelos adultos a presumir lascívia no corpo desnudo. Crianças índias não se chocariam, já que não tiveram seu olhar enviesado pela moral cristã do corpo-pecado. Tudo bem, tiremos as crianças da cena. Na vizinhança só há adultos. E agora? Têm os adultos vizinhos maior direito a reprimirem a conduta do nosso naturista do que este de expressar-se, em casa, da forma como lhe parece correta? Zona cinzenta.
Há mais.
Em outubro de 2003
, o polêmico diretor de teatro Gerald Thomas, como protesto às vaias dirigidas a seu espetáculo, baixou as calças, mostrou as nádegas ao público e simulou masturbação. Ato obsceno? Foi processado e conseguiu um apertado habeas corpus no Supremo Tribunal Federal: 2 votos a favor, 2 contra. Beneficiou-se do empate. Mas ficou claro em quão cinzenta zona o acusado se movimentava. O fundamento dos votos que o absolveram baseou-se no fato de que o espetáculo era para um público urbano, elitizado, e ocorrido às 2 horas da manhã. De fato, é possível acreditar que diante do comportamento grosseiro do diretor muitos se houvessem ofendido, mas difícil é acreditar que se sentiram sexualmente molestados. Tanto assim o é que, se Gerald houvesse feito idêntica conduta como personagem de sua peça, o público a consideraria como exercício de liberdade de expressão. Parece que o diretor não errou na ação, mas no momento de sua inserção diante do público.
Em julho de 2003, o casal homossexual João e Rodrigo beijou-se no hall do shopping Frei Caneca, em São Paulo. Segundo testemunhas, foi um beijo efêmero, um "selinho". Mas os seguranças do shopping não gostaram e o repreenderam. Tal beijo constituiu ato obsceno? O shopping alegou que sim. A reprimenda ao beijo foi um ato discriminatório? O juiz assim o entendeu. E lembrou que se fosse um casal heterossexual a importunação dos seguranças não teria ocorrido. Dado que, no Brasil, ser homossexual não é crime, proibir manifestações de afeto homossexual que seriam toleradas de casais héteros, de fato, parece abusivo. Mas, e o pudor público? Certamente que chama mais a atenção um beijo entre dois homens (ou duas mulheres) do que entre um homem e um a mulher. Lembre-se que para Maggiore o ato de caráter sexual há de causar repugnância no público para haver ato obsceno. E se os freqüentadores do shopping houvessem sentido a tal repugnância? Haveria ato obsceno? Que tipo penal é esse que depende do que dele os outros pensam?
Quando uma conduta encontra-se situada na zona cinzenta do sistema penal, caberá ao intérprete ressituá-la em um dos extremos do continuum: não crime - zona cinzenta - crime. Acusadores vão tentar mostrar o crime da conduta; defensores farão o contrário. Como nosso sistema é in dubio pro reu, o trabalho dos que defendem a não existência de crime, nestas hipóteses, haveria de ser sempre mais fácil. Mas dificilmente é assim. Uma conduta situada em zona cinzenta, não podendo ser enquadrada unicamente a partir de critérios jurídicos, será enquadrada pelos critérios da moralidade estabelecida. In dúbio pro mores. O topless seria, talvez, ato obsceno numa piscina pública no interior catarinense, mas não o seria na Praia Mole, em Florianópolis. É justo punir a moça que exibe seus seios em Chapecó e tomar como exercício regular de direito a mesma conduta realizada na Capital? Nos dois casos há mais presunções do que conhecimento efetivo sobre a tolerabilidade social de tal conduta. Nem todas as pessoas de Chapecó se chocariam com os seios à mostra; nem todas as pessoas de Florianópolis seriam a isso indiferentes. Na ausência de sondagens seguras sobre a quantas anda a moralidade regional, tudo dependeria da cabeça do julgador, - que freqüentemente é pessoa estranha aos costumes locais. A segurança da lei é, então, substituída pelo risco de uma opinião pessoal.
Clarear zonas cinzentas pelo recurso à moral ocorre também em outras situações, quando a falta de certezas jurídicas é substituída por uma perigosa certeza moral. Imaginemos um indivíduo que, testando seu novo automóvel, em alta velocidade, atropela e mata um pedestre na faixa de segurança. A dúvida, neste hipotético caso, não é se houve crime. Parece claro que sim. A zona cinzenta paira aqui sobre a intenção do agente. Ele jura que se tratou de ato culposo. Foi imprudente, reconhece. Mas o promotor e a família da vítima discordam. Acham que ele, ao dirigir daquela forma numa via pública, assumiu o risco de produzir mortes e querem o seu enquadramento por homicídio doloso. Enquanto cada uma das partes tenta convencer o juiz de tratar-se de crime com ou sem intenção, imaginemos que surge uma notícia até então não sabida. Ele não estava sozinho no carro. Havia mais alguém, que se evadiu antes da chegada da polícia. A dúvida é sobre quem era o/a acompanhante. Advogado e promotor ficam imaginando quem eles gostariam que fosse, a bem de suas respectivas teses. E surgem dois cenários.
Cenário 1. Na imaginação do advogado de defesa, ideal é que o acompanhante fosse o filho do acusado, de dez anos, para quem o pai queria mostrar o desempenho do novo carro. Cenário simpático. É possível até imaginar o resto da história. O carro novo, o filho empolgado dizendo: "Acelera, pai!". O pai, sem se dar conta da imprudência, atende o esperançoso desafio da criança, e o azar! Infelictas facto! Foi agradar o filho e desagradou a sociedade! Por imprudência acelerou, por desgraça atropelou. Não houve dolo (intenção criminosa), apenas culpa (ausência de cautela).
Cenário 2. Na imaginação do promotor, bom seria se o acompanhante não fosse o filho, mas a amante do condutor, mulher casada, que se evadiu para evitar vexame. "Mulher à-toa, casal ordinário!". Aqui também se pode imaginar o resto da história: lascivamente, a fêmea infiel pede: "Acelera aí, amor", e ele, pensando que o mundo se restringia ao bordel em que se convertera sua vida, pouco se importa com os outros. "Que se danem!" Primeiro ele, primeiro ela. Os dois e suas aventuras exigem prioridade. Não há faixa que os detenha. Os outros? Os outros é que se acautelem!
Agora responda: em qual dos dois cenários há maior probabilidade que o homicídio seja tido como doloso? Bingo! Mas, veja bem, o fato de estar acompanhado de um filho, da avó, de um travesti, da amante ou de um fugitivo nada tem a ver com a questão sob julgamento, que é a de se a ação foi ou não dolosa. Pode ter sido dolosa com o filho e culposa com a amante. Mas, na zona cinzenta, a moral é chamada a ajudar no convencimento e é muito mais fácil encontrar o que reprovar criminalmente quando moralmente a conduta é deplorável.
É que o Direito é isso mesmo: convencimento. Convencer com base na lei. Convencer com base nos princípios jurídicos. Reunir evidências, provas e vestígios. Mas na zona cinzenta a prova é dúbia, o direito é nebuloso, os princípios são amplos demais. Não há o que fazer. Então, chama-se a moral para deslindar a questão. E chega ela com sua tacanha divisão de tudo em definitivamente certo e definitivamente errado. Momento de festa nas mentes simplistas. O réu será julgado pelo acompanhante que levava e não pela intenção que teve – nebulosa demais para se saber qual era. O direito passa aqui de custus legis (fiscal da lei) para custus mores (fiscal dos costumes). Feliz do safado bem acompanhado; lamentável a situação do honesto mal acompanhado.
Dize-me com quem andas e eu te direi teu destino penal.

3.7.10

Identidade e estigma


Nem sempre a pessoa tem como gerenciar sua imagem social. E, por vezes, a sociedade exige uma composição autobiográfica com ênfase na pior descrição que o indivíduo pode fazer de si mesmo. Isso ocorre com aqueles que são vítimas de estigmas. Estigma é, com efeito, uma atribuição negativa que inferioriza um indivíduo ou um grupo. Certas condições de nascimento (como cor da pele), de situação (como pobreza), de saúde (como ser aleijado), de moralidade (como ser criminoso) e de pertencimento (como ser cigano) são indutoras de estigmas. Elas facilitam a definição de seus portadores como decepcionantes exemplos de manifestação da condição humana.
O efeito básico do estigma é impedir que seu possuidor seja visto para além da situação que, aos olhos dos outros, o inferioriza. Assim, portadores do vírus da AIDS não são vistos como pessoas doentes, mas como “aidéticos”, um termo que simplifica a identificação social do sujeito, tornando-o quase uma subespécie. É como se o estigma apagasse a complexidade de seu portador em benefício de uma identidade socialmente desvalorizada. Nas prisões, existem criminosos – estigma genérico – e não pessoas que cometeram, em momentos específicos de sua vida, crimes. Nos manicômios, existem loucos e não pessoas com complicações existenciais. Não existe vida para além do estigma. Assim, quando nos jornais lemos manchetes como “Prostituta é encontrada morta”, isso, quase sempre, significa que ninguém se ocupará da história da pessoa por sob o rótulo. Prostituta é resumo suficiente de tudo o que aquela pessoa foi na vida, assim como ser encontrada morta integra de forma coerente seu destino esperado.
Na clássica obra Estigma (1988), Erving Goffman não deixa dúvidas de que os estigmatizados sabem o peso do estigma sobre o curso de suas vidas. Podem se sentir desacreditados. Isso ocorre quando sabem que seu estigma é conhecido. Como o aleijado que se sente apenas um aleijado. De outra parte, quando seu estigma é ocultável, sentem-se desacreditáveis. Vivem sob a paranóia de, a qualquer momento, virem a ser desqualificados. A estudante que, secretamente, é prostituta sabe que sua identidade de pessoa normal e aceita é provisória: a qualquer momento o estigma pode emergir como sinônimo de si própria.
Mas a ambigüidade que é, tantas vezes, a regra social no trato com os estigmatizados também se apresenta. Ora os estigmatizados têm seus defeitos superdimensionados pela sociedade, ora são depositários de fantasiosas qualidades excepcionais. Escreve Goffman (Estigma, 1998:15):
Tendemos a inferir uma série de imperfeições a partir da imperfeição original e, ao mesmo tempo, a imputar ao interessado alguns atributos desejáveis mas não desejados, freqüentemente de aspecto sobrenatural, tais como sexto sentido ou percepção.”
Ciganos e cegos são, não raramente, considerados portadores de poderes de percepção, intuição e previsão aguçados. Ter esse acesso ao sobrenatural é característica não necessariamente negativa, mas, em geral, não desejável para as pessoas normais. O juiz de direito que, em noites específicas, atua como “pai-de-santo” fará de tudo para esconder essa sua possibilidade de acesso ao além. Eventuais possibilidades dessa natureza não combinam com seu status de pessoa respeitável. Mas, ao revés, são capazes de tornar mais intrigante e, mesmo, digna de algum respeito a existência dos estigmatizados.
Um último efeito a ser salientado sobre as situações de estigma é que a posse de um facilita a aquisição de outro. Assim, quem é estigmatizado como sendo simplesmente “negro” ou “cigano” corre sério risco de ganhar outros estigmas como de “ladrão” ou “preguiçoso”. Para quem possui o estigma de aidético é facilmente visto também como homossexual. Para quem é apontada como prostituta não é difícil ser tida também como “mãe desnaturada” e desonesta. Um estigma atrai o outro, afundando seu portador em identificações sociais cada vez mais negativas.

Sandro Sell (do livro Comportamento social e anti-social humano).
Imagem: Picasso, Self Portrait Facing Death

2.7.10

Espelho e reconhecimento



A frase "ser é ser percebido" pode ser tomada também, para longe de seu contexto original (e do post anterior), como um imperativo ético contra a indiferença. A tal da ética do reconhecimento de que fala Charles Taylor e o Thiago Fabres: o olhar do outro nos constrói, nos melhora, nos deturpa ou nos destrói. E, por contraposição, a ausência de reconhecimento alheio, nos torna vazios, solitários e vegetativos.
O que é nossa identidade pessoal senão uma constante negociação entre uma vacilante auto-intuição e aquilo que os outros vêem em nós?
O olhar dos senhores coisificava os escravos, o olhar da tradição estupidificava as mulheres, o olhar dos padres originava o pecado, assim como o olhar do amante faz surgir à beleza inigualável da amada...
Em Psicologia social, chama-se esse dom, de construção do sujeito pelos seus expectadores referenciais, de efeito Pigmalião- referindo-se ao mito do escultor que amou uma estátua como se fosse pessoa e, assim, conseguiu torná-la gente (quem se lembra do filme My fair lady, recorda como a personagem de Audrey Hepburn passa de uma florista vulgar a uma nobre dama, simplesmente porque seu “amigos” conseguiram fazer com que ela fosse vista dessa segunda maneira – o nome da obra que deu origem ao filme era mesmo “Pigmalião”, de Bernard Shaw).
Nossa existência significativa, para nós e para o mundo, vai surgindo como resultado daquilo que Charles Cooley chamava de nosso reflexo no espelho social. Sabemos que existimos e que somos assim e não assado na medida e na maneira em que somos refletidos no olhar do outro. Jacquard diz:
“Minha capacidade para pensar e dizer “eu” não me foi fornecida pelo meu patrimônio genético; o que esse me deu era necessário, mas não suficiente. Só consegui dizer “eu”, graças ao “tu” que ouvi. A pessoa que sou não é o resultado de um processo interno solitário; só pôde construir-se encontrando-se no foco dos olhares dos outros. Não só essa pessoa é alimentada com todas as contribuições dos que me rodeiam, mas sua realidade essencial é construída pelas trocas com eles; eu sou os vínculos que vou tecendo com os outros.”

Se é o olhar que gera o mundo e seus seres, com maior razão ainda é ele que coloca os adjetivos nas coisas já percebidas. O olhar do pedófilo torna a criança apetitosa; o da mãe, a torna inocente; o do humanista confere dignidade ao criminoso que, pelas maiorias morais, já tinha se feito monstro.

Não alimente os presos!
Somos criaturas
de relação não apenas porque precisamos dos outros para sobreviver, mas porque precisamos deles para ser algo mais do que uma besta de cerébro avantajado. Um cão pode ser um cão na ausência de outros cães, enquanto nós só nos "humanizamos" no contato com nossos semelhantes, no reconhecimento recíproco de nossa humanidade.
Os párias de todo lugar, os deserdados, os que perderam a referência do olhar que humaniza, vivem num mundo existencialmente precário. Cadáveres sobre pernas vivas...
Vemos esses andarilhos de beira de asfalto: roupas podres, barba cavernosa, e um andar apressado como se estivessem a ponto de perder o vôo. Para onde vão esses indesejados com ares de subespécie? Seguem algum tipo de fluxo migratório? Seus resmungos de loucura, sua pele torrada a 40 graus, sua decisão firme de manter-se paralelo ao traçado da BR, atravessado por milhares de olhares motorizados, parece indicar uma necessidade de reforço megalômano de que de fato se perdeu tudo. Um milhão de olhares e nenhum reconhecimento de similitude, não tem como não se permanecer indigente...
Então os alunos me perguntam:
- Professor, quando é que a gente vai visitar o presídio?
- Vocês querem ver presos?
- Queremos!
- Façam publicamente um ato moralmente vergonhoso, depois tranquem-se no quarto e, passadas algumas semanas, olhem-se no espelho.
- Ah, professor, mas assim não vale, nós somos normais.
- Pois é, vocês são normais... Agora entenderam por que eu nunca irei levá-los?
- Não!
- Porque criaturas que se acham normais portam olhares anormalizantes e é justamente esses olhares que fazem com que estar na penitenciária seja intrinsecamente diferente de estar trancado no quarto.
- O Senhor está dizendo que a gente iria para estigmatizar os presos?
- Não, eu estou apenas dizendo que vocês aproveitariam melhor o seu tempo indo ao zoológico.
- Mas - ironiza um deles - nós não fazemos Biologia e sim Direito!
- Porém carregam os mesmos olhares dos biólogos diante de colônias de bactérias... O dia que construírem o olhar da semelhança, poderão ir à vontade, pois então a curiosidade de "ver presos" será substituída pela angústia da troca de olhares entre humanos. E aí,meus amigos, o bicho pega e vocês nunca mais vão conseguir dormir em paz, pois perderão a fantasia do que separava o eles e o nós. É mais ou menos como, aos 6 anos, descobrir que o papai noel sempre esteve na casa da gente, com gente, e que qualquer um pode vir a sê-lo: inclusive eu ou vocês...
- Entendi, prof! Acho que o zoológico será mais divertido mesmo...
- Com certeza! Até a próxima fase.
Sandro Sell
Imagem: Pablo Picasso: Girl Before a Mirror,1932. Oil on canvas, 64 x 51" (162.3 x 130.2 cm). The Museum of Modern Art, New York