29.8.06

A cor do brasileiro

Professor Sandro Sell

Pelo Estatuto da Igualdade Racial teremos que declarar nossa cor em documentos como certidão de nascimento e outros. Qual a finalidade disso? Boa, nenhuma. Esse negócio de marcar obrigatoriamente as pessoas por seus pertencimentos a determinadas raças ou etnias tem mesmo um péssimo passado. O sonho de toda ideologia autoritária começa por algo assim: deixar tudo bem separado, preto no branco, para poder dizer: “Esses somos nós, aqueles são eles. Nós precisamos disso, eles daquilo. Nós devemos ter preferências, pois eles são os culpados”. Se não fosse a esquerda quem estivesse propondo esse estatuto, milhares de militantes brasileiros já estariam na ONU pondo em suspeita o ressuscitar dessa forma perigosa de classificar as pessoas. “Qual é a sua cor?” Terá que perguntar cada delegado, cada médico e cada funcionário de burocracia. “A cor da humanidade”, – numa democracia, essa deveria ser a única resposta possível e suficiente. Vai deixar de ser.
Dizem que o objetivo dessa separação é louvável: permitiria a produção de estatísticas sobre, por exemplo, “doenças de negro” (sic), como a anemia falciforme. Vamos supor, por um momento, que há doenças que seguem rigorosamente a raça do indivíduo. Só que seguir a raça de alguém no Brasil não é fácil. Brancos e negros – em flagrante conspiração ao simplismo do estatuto – teimaram em se casar sem declarar cores, dando origem a um sem número de misturas, que podemos ou nomear uma por uma (pardo, quase-branco, quase-negro, marrom, mulato, escurinho...), ou resumi-las, todas, sob o apelido genérico de “humanidade”. Esse último termo tem a vantagem de dar um recado aos racistas de plantão: as cores são um detalhe, as pessoas não.
Mas como seria definida a cor de alguém? Há duas possibilidades. A primeira seria ter uma palheta de cores para que o sumo classificador racial comparasse o indivíduo a um padrão e revelasse ao mundo sua verdadeira cor. A outra, preferida pelo estatuto, é a de que as próprias pessoas digam de que cor querem ser, ou de que cor se sentem. O problema com a primeira é óbvio; com a segunda, é que ela impede de fazer estatísticas confiáveis baseadas na autodescrição. Se há “doenças de raça” a serem mapeadas, de que adianta uma estatística racial derivada do auto-enquadramento sentimental do indivíduo a uma cor e não da quantidade de melanina em sua epiderme?
Mas o estatuto não é só isso, dirão, com razão, alguns. Ele é pior. É pela folclorizaçao do negro, acredita que sempre que alguém se diz negro as primeiras palavras que lhe devem ser associadas é samba e capoeira. Determina que o Estado ensine essas práticas que, diga-se de passagem, não precisam do Estado para estarem inseridas na cultura popular. É mais fácil ensinar Shakespeare a alunos (brancos ou negros) prometendo-lhe que, se estudarem direitinho, terão aulas de capoeira, do que o contrário. É mais fácil levar a loirinha pro samba do que convencê-la a ir à ópera.
Mas e a desigualdade racial? Ela existe e precisa ser combatida. Só que não será chamando alguns de negros e outros de brancos que isso será feito.

Para saber mais:

SELL, S. C. Ação afirmativa e democracia racial: uma introdução ao debate no Brasil. Florinópolis: UFSC/BOITEUX, 2002.

21.8.06

Zonas de incerteza punitiva

Professor Sandro Sell


Zonas de incerteza punitiva

Uma das formas de entender os raciocínios que, em Direito, ligam o crime à pena é a idéia de zonas de certeza punitiva. Quando uma conduta dita criminosa, em termos jurídicos, for também uma transgressão social (causar repulsa pública) emergirá como corolário lógico a idéia de que a ela deve corresponder uma punição. Pensemos num indivíduo que, por mera ganância, mata a esposa para receber um seguro de vida. É difícil encontrar quem discorde que, neste caso, uma punição penal é devida e merecida. Estamos na zona de certeza positiva: é claro que é crime. Zona de certeza punitiva positiva é aquela em que direito e sociedade concordam: a conduta sob análise é crime e merece uma resposta à altura.

Em outras vezes, há uma grande clareza de que uma dada conduta não é criminosa, e qualquer um sabe disso. Pensemos num casal de namorados beijando-se em público. Há ainda quem ache que merecem punição? É claro que houve um tempo em que tal beijo, se fosse lascivo, – como diria o vetusto tratadista, - suscitava a repugnância pública e o enquadramento criminal. Hoje não. Muito embora haja em Direito penal uma estranha mania de dar voz a autores do passado na interpretação de costumes do presente, a idéia de que um beijo na boca seja portador de lascívia criminosa é algo superado, tendo se tornado uma ação penalmente irrelevante. Trata-se de conduta situada na zona de certeza criminal negativa: é claro que não constitui crime.

Como resposta a ambos os casos – matar por ganância/ beijar com desejo - o consenso é esperado: deve-se punir aquela morte; deve-se isentar esse beijo. Zona de certeza positiva e zona de certeza negativa, respectivamente. A regra é clara, como diria, em uníssono, o comentarista, o juiz e a sociedade. O Direito aqui é cheio de certezas. Não sendo necessário para aplicá-lo nenhuma sutileza, apenas uma consulta às fontes jurídicas e sociais do presente. Em outras palavras, basta interpretar a lei antevendo a revolta que causaria a absolvição do que mata por cupidez e a indignação resultante da punição do casal por seu beijo. Nessas situações, a resposta jurídica devida aparece sem meio-termo, ou é ou não é. São casos para comemoração no edifício da dogmática. Finalmente, o Direito apresenta-se claro, claríssimo. É destacar a norma e colar no caso.

Mas, no mais das vezes, estamos diante de condutas fronteiriças, não sendo possível dizer, de pronto, se são ou não criminosas. Fim de festa na casa dogmática. Pensemos na interrupção intencional da gravidez do feto anencefálico (feto sem cérebro). Muitas decisões sustentam tratar-se de crime de aborto; outras, dizem que não se trata de crime, pois, sem cérebro, não há vida viável e seria crime impossível atentar contra a vida de um feto que, “tecnicamente”, não é vivo. Aqui há polêmica. Polêmica indica a existência de dúvida razoável. Há pessoas inteligentes e bem intencionadas dizendo sim, e outras, igualmente qualificadas, dizendo não. Não há como simplesmente passar a régua, a conta não fecha. Estamos, neste caso, na zona cinzenta do sistema jurídico. Falta clareza. Olhando por um lado, acha-se que é crime, olhando pelo outro, acha-se que não. Onde católicos enxergam crime, feministas laicas enxergam o exercício de um direito; onde alguns vêem uma desvalorização da vida humana em suas diferentes formas, outros anunciam o surgimento do respeito devido ao corpo e sentimentos femininos. A desejada certeza penal resta esfacelada.

Muitos tipos penais são excepcionalmente pródigos em produzir zonas cinzentas. Pensemos no artigo 233 do Código Penal. Ato obsceno. “Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa”. O que é ato obsceno? Segundo Maggiore, ato obsceno representa a conduta positiva do agente, com conteúdo sexual, atentatória ao pudor público, que suscita repugnância”. Resolvido? Não. Tudo bem. Só os incautos conseguem dar rápida operacionalidade penal a tal conceito. As pessoas ponderadas enchem-se de dúvidas. De fato, a explicação dada por Maggiore não permite nenhuma segurança jurídica, pois dizer que ato obsceno são condutas com conteúdo sexual ofensivo ao pudor público equivale a dizer que é ato obsceno o que a sociedade assim o considerar. O beijo ardente, o topless, a micção no muro da escola, serão ou não tidos por obscenos? Zona tão cinzenta e embaçada quanto as vidraças do carro em que namoram, lascivamente, o casal apaixonado na fria madrugada do fim-de-festa, pondo em polvorosa a donzelice do Direito e a hipocrisia da sociedade. Na caracterização de um ato enquanto obsceno um juízo de valor há de ser feito. A obscenidade de um ato depende do que se entenda por pudor público.

Plácido e Silva, em seu respeitável Vocabulário Jurídico, vem a nosso socorro, dizendo que pudor público: “É o decoro público ou sentimento coletivo a respeito da honestidade e decência dos atos, que se fundam na moral e nos bons costumes. Ofender o pudor público, assim, é praticar atos que ofendam os bons costumes e a moral pública.” Como já se deve ter notado, para utilizar essa explicação é preciso saber antes o que é decoro público, é preciso saber o que é decência e moral públicas e, nessa redução sucessiva, nos depararemos sempre com a necessidade de fazer juízos de valor, acerca do que é ofensivo ou não, do que é bom ou mau. Ledo engano, o velho Plácido não nos socorre e a dúvida permanece.

Mas mesmo neste polêmico artigo 233, há zonas de certeza. Certeza positiva: é crime. Imagine um homem normal que baixe as calças na via pública e comece a se masturbar, sem se importar com os transeuntes. Ponto para Maggiori: é conduta sexual que choca o público. É ato obsceno. Merece reposta pública e criminal. Até o pai do acusado há de concordar. Plácido e Silva pode ser aplicado na íntegra: isso ofende os bons costumes, a moral pública, a decência e outras coisas mais. É tão óbvia a obscenidade desse ato quanto óbvia é a não obscenidade do beijo que a noiva dá no noivo por ocasião do casamento. Nesse caso, Maggiori, o padre e as testemunhas - embora possam antever nele intenções lascivas – emocionam-se sem se chocar. Zona de certeza negativa. Podem dispensar o delegado, o fato é atípico, digno até de beatificação.

Mas e o sujeito que toma banho nu no pátio de sua casa, sem se importar com a vizinhança, por ser adepto do naturismo? Está no seu direito ou abusando dele? Está em prática de ato obsceno ou em exercício regular de seu direito de propriedade e de livre expressão? Há polêmica. Zona cinzenta. Veja que ele não manifesta intenções lascivas – sexuais - ao tomar banho no quintal, apenas não vê problema em que os outros o vejam nu, embora ele não se esforce para que isso ocorra. Porém, o que dizer da opinião pública expressa pelos vizinhos? Parece legítima. As mães baixando a cortina, as visitas chocadas e por aí vai. Mas também não nos parece totalmente ilegítimo o direito de quem – sem intenção libidinosa – no interior de seus muros, queira bronzear-se sem roupa. Mas, e as crianças vizinhas? É, infelizmente, essas hipotéticas crianças já devem ter sido socialmente condicionadas pelos adultos a presumir lascívia no corpo desnudo. Crianças índias não se chocariam, já que não tiveram seu olhar enviesado pela moral cristã do corpo-pecado. Tudo bem, tiremos as crianças da cena. Na vizinhança só há adultos. E agora? Têm os adultos vizinhos maior direito a reprimirem a conduta do nosso naturista do que este de expressar-se, em casa, da forma como lhe parece correta? Zona cinzenta.

Há mais.

Em outubro de 2003, o polêmico diretor de teatro Gerald Thomas, como protesto às vaias dirigidas a seu espetáculo, baixou as calças, mostrou as nádegas ao público e simulou masturbação. Ato obsceno? Foi processado e conseguiu um apertado habeas corpus no Supremo Tribunal Federal: 2 votos a favor, 2 contra. Beneficiou-se do empate. Mas ficou claro em quão cinzenta zona o acusado se movimentava. O fundamento dos votos que o absolveram baseou-se no fato de que o espetáculo era para um público urbano, elitizado, e ocorrido às 2 horas da manhã. De fato, é possível acreditar que diante do comportamento grosseiro do diretor muitos se houvessem ofendido, mas difícil é acreditar que se sentiram sexualmente molestados. Tanto assim o é que, se Gerald houvesse feito idêntica conduta como personagem de sua peça, o público a consideraria como exercício de liberdade de expressão. Parece que o diretor não errou na ação, mas no momento de sua inserção diante do público.

Em julho de 2003, o casal homossexual João e Rodrigo beijou-se no hall do shopping Frei Caneca, em São Paulo. Segundo testemunhas, foi um beijo efêmero, um “selinho”. Mas os seguranças do shopping não gostaram e o repreenderam. Tal beijo constituiu ato obsceno? O shopping alegou que sim. A reprimenda ao beijo foi um ato discriminatório? O juiz assim o entendeu. E lembrou que se fosse um casal heterossexual a importunação dos seguranças não teria ocorrido. Dado que, no Brasil, ser homossexual não é crime, proibir manifestações de afeto homossexual que seriam toleradas de casais héteros, de fato, parece abusivo. Mas, e o pudor público? Certamente que chama mais a atenção um beijo entre dois homens (ou duas mulheres) do que entre um homem e um a mulher. Lembre-se que para Maggiore o ato de caráter sexual há de causar repugnância no público para haver ato obsceno. E se os freqüentadores do shopping houvessem sentido a tal repugnância? Haveria ato obsceno? Que tipo penal é esse que depende do que dele os outros pensam?

Quando uma conduta encontra-se situada na zona cinzenta do sistema penal, caberá ao intérprete ressituá-la em um dos extremos do continuum: não crime - zona cinzenta - crime. Acusadores vão tentar mostrar o crime da conduta; defensores farão o contrário. Como nosso sistema é in dubio pro reu, o trabalho dos que defendem a não existência de crime, nestas hipóteses, haveria de ser sempre mais fácil. Mas dificilmente é assim. Uma conduta situada em zona cinzenta, não podendo ser enquadrada unicamente a partir de critérios jurídicos, será enquadrada pelos critérios da moralidade estabelecida. In dúbio pro mores. O topless seria, talvez, ato obsceno numa piscina pública no interior catarinense, mas não o seria na Praia Mole, em Florianópolis. É justo punir a moça que exibe seus seios em Chapecó e tomar como exercício regular de direito a mesma conduta realizada na Capital? Nos dois casos há mais presunções do que conhecimento efetivo sobre a tolerabilidade social de tal conduta. Nem todas as pessoas de Chapecó se chocariam com os seios à mostra; nem todas as pessoas de Florianópolis seriam a isso indiferentes. Na ausência de sondagens seguras sobre a quantas anda a moralidade regional, tudo dependeria da cabeça do julgador, - que freqüentemente é pessoa estranha aos costumes locais. A segurança da lei é, então, substituída pelo risco de uma opinião pessoal.

Clarear zonas cinzentas pelo recurso à moral ocorre também em outras situações, quando a falta de certezas jurídicas é substituída por uma perigosa certeza moral. Imaginemos um indivíduo que, testando seu novo automóvel, em alta velocidade, atropela e mata um pedestre na faixa de segurança. A dúvida, neste hipotético caso, não é se houve crime. Parece claro que sim. A zona cinzenta paira aqui sobre a intenção do agente. Ele jura que se tratou de ato culposo. Foi imprudente, reconhece. Mas o promotor e a família da vítima discordam. Acham que ele, ao dirigir daquela forma numa via pública, assumiu o risco de produzir mortes e querem o seu enquadramento por homicídio doloso. Enquanto cada uma das partes tenta convencer o juiz de tratar-se de crime com ou sem intenção, imaginemos que surge uma notícia até então não sabida. Ele não estava sozinho no carro. Havia mais alguém, que se evadiu antes da chegada da polícia. A dúvida é sobre quem era o/a acompanhante. Advogado e promotor ficam imaginando quem eles gostariam que fosse, a bem de suas respectivas teses. E surgem dois cenários.

Cenário 1. Na imaginação do advogado de defesa, ideal é que o acompanhante fosse o filho do acusado, de dez anos, para quem o pai queria mostrar o desempenho do novo carro. Cenário simpático. É possível até imaginar o resto da história. O carro novo, o filho empolgado dizendo: “Acelera, pai!”. O pai, sem se dar conta da imprudência, atende o esperançoso desafio da criança, e o azar! Infelictas facto! Foi agradar o filho e desagradou a sociedade! Por imprudência acelerou, por desgraça atropelou. Não houve dolo (intenção criminosa), apenas culpa (ausência de cautela).

Cenário 2. Na imaginação do promotor, bom seria se o acompanhante não fosse o filho, mas a amante do condutor, mulher casada, que se evadiu para evitar vexame. “Mulher à-toa, casal ordinário!”. Aqui também se pode imaginar o resto da história: lascivamente, a fêmea infiel pede: “Acelera aí, amor”, e ele, pensando que o mundo se restringia ao bordel em que se convertera sua vida, pouco se importa com os outros. “Que se danem!” Primeiro ele, primeiro ela. Os dois e suas aventuras exigem prioridade. Não há faixa que os detenha. Os outros? Os outros é que se acautelem!

Agora responda: em qual dos dois cenários há maior probabilidade que o homicídio seja tido como doloso? Bingo! Mas, veja bem, o fato de estar acompanhado de um filho, da avó, de um travesti, da amante ou de um fugitivo nada tem a ver com a questão sob julgamento, que é a de se a ação foi ou não dolosa. Pode ter sido dolosa com o filho e culposa com a amante. Mas, na zona cinzenta, a moral é chamada a ajudar no convencimento e é muito mais fácil encontrar o que reprovar criminalmente quando moralmente a conduta é deplorável.

É que o Direito é isso mesmo: convencimento. Convencer com base na lei. Convencer com base nos princípios jurídicos. Reunir evidências, provas e vestígios. Mas na zona cinzenta a prova é dúbia, o direito é nebuloso, os princípios são amplos demais. Não há o que fazer. Então, chama-se a moral para deslindar a questão. E chega ela com sua tacanha divisão de tudo em definitivamente certo e definitivamente errado. Momento de festa nas mentes simplistas. O réu será julgado pelo acompanhante que levava e não pela intenção que teve – nebulosa demais para se saber qual era. O direito passa aqui de custus legis (fiscal da lei) para custus mores (fiscal dos costumes). Feliz do safado bem acompanhado; lamentável a situação do honesto mal acompanhado. Dize-me com quem andas e eu te direi teu destino penal.

Bibliografia

DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
FRANCO, Alberto Silva, SILVA JUNIOR, José, BETANHO, Luiz Carlos et al. Código penal e sua interpretação jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. São Paulo: Editora Saraiva, 1992.
GRISPIGNI, F. Diritto Penale Italiano. Roma: Ed. UTET, 1949.
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1958.
____. & FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1980.
MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale.Bologna: Nicola Zanichelli Ed., 1955.
MUÑOS, Francisco Conde. Teoria Geral do delito.Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1988.
SELL, Sandro César. Comportamento social e anti-social humano. Florianópolis: Ijuris, 2006.
____. A etiqueta do crime: considerações sobre o labelling approach. Disponível em: http://sandrosell.blogspot.com/
____. Zaffaroni: um mestre para o nosso tempo. Disponível em: http://sandrosell.blogspot.com/
SILVA, De Plácido e.Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1980.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Crmiminologia-Aproximación desde un margen. Bogotá: Ed. Temis, 1988.



Exercícios
1). Em 1994, um advogado entrou com uma ação popular contra a transformação da praia de Abricó (zona oeste do Rio de Janeiro) em reduto de naturismo. O advogado alega que andar nu na praia – ainda que esta seja sinalizada como destinada a esta prática – constitui crime de ato obsceno, e que, além disso, tal possibilidade privatiza um espaço público, já que destina uma praia ao uso de naturistas, afastando dela pessoas mais recatadas. Tanto no TJ-RJ quanto no STJ os naturistas venceram a disputa. O Relator no STJ, Ministro Teori Albino Zavascki disse: “(...) não a reprovo (a prática naturista) desde que constrita a determinados locais. Exatamente nisto está em se conferir àquela minoria o direito de igualdade naquilo que entendem razoável e lídimo, permitindo-se a coexistência pacífica entre a maioria e a minoria.” Suponhamos agora que aquele nosso naturista do texto (que toma banho nu em seu quintal, sem intenção lasciva) sinalize adequadamente que seu quintal está sujeito a práticas naturistas, devendo dele serem desviados olhares que se chocam com tal ocorrência. Argumente se há ou não crime em ambos os casos, o do naturista em casa e dos naturistas na praia.

Algumas informações:

Do Código Penal.
Art. 233. Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público. Pena – detenção, de três meses a um ano e multa.
Do Código Penal Comentado por Celso Delmanto (texto adaptado).
Objeto jurídico (bem que o direito pretende proteger): o pudor público.
Tipo subjetivo: crime doloso, exigindo a vontade livre de praticar o ato obsceno, consciente da publicidade do local e de estar ofendendo o pudor.
Do Vocabulário jurídico de Plácido e Silva:
Pudor público: É o decoro público ou sentimento coletivo a respeito da honestidade e decência dos atos, que se fundam na moral e nos bons costumes. Ofender o pudor público, assim, é praticar atos que ofendam os bons costumes e a moral pública.
Do Dicionário Houaiss:
Obscenidade.s.f. (1702 cf. NumVoc) 1 qualidade do que é obsceno 2 caráter do que, no domínio da sexualidade, fere o pudor 3 caráter do que, por sua inconveniência, não está de acordo com as regras do decoro; caráter do que é chocante 4 ato ou dito obsceno.
Pudor. s.m. (1540 cf. JBarV) 1 sentimento de vergonha, timidez, mal-estar, causado por qualquer coisa capaz de ferir a decência, a modéstia, a inocência 2 sentimento e atitude desenvolvidos por uma educação rígida calcada em conceitos culturais, ger. de base religiosa, que impedem que certas partes do corpo sejam expostas com naturalidade, sem constrangimento [A amplitude e a distribuição dessas partes variam de acordo com as culturas.] 3 vergonha, constrangimento, de base ger. cultural, para falar a respeito ou praticar determinados atos ligados à área da sexualidade, das funções fisiológicas, dos sentimentos íntimos, da afetividade etc.; recato, decência, pudicícia, pundonor 4 sentimento de vergonha com respeito a atos que ferem as qualidades de caráter de um indivíduo, como a decência, a honestidade, a honra etc.; pejo  ETIM lat. pùdor,óris 'vergonha, pejo'; ver pud-  SIN/VAR ver antonímia de indecência  ANT cinismo; ver tb. sinonímia de indecência .


2) Pesquise e responda:

a) o que é segurança jurídica.
b) o que é dogmática jurídica.

sandrosell@ig.com.br

7.8.06

O Direito como modo de vida

Professor Sandro Sell


O Direito enquanto modo de vida

Quando um novo aluno chega ao mundo do Direito, costuma ficar impressionado com a multiplicidade dos temas abrangidos pelo saber jurídico: do cheque pré-datado, que ele emitiu ontem, aos dilemas da clonagem de seres humanos, narrados, quem sabe, no filme a que assistiu no último domingo. De repente, o “calouro” do Direito percebe que a partir de questões de seu interesse (como a segurança de seu carro no estacionamento da faculdade) ou de sua curiosidade (como uma possível obrigatoriedade da presença de alunos negros em sua turma), o mundo jurídico, que recém lhe abriu às portas, vai formando um cotidiano de polêmica conseqüente.

Se estiver atento, o novel acadêmico cedo notará que, para ser membro legítimo da comunidade jurídica, terá de se disciplinar na capacidade de oferecer justificativas para as suas tomadas de posição. Inicia-se, então, o longo caminho do rompimento com o discurso leviano (“eu acho”) ou autoritário (“é assim!”), que autorizam o indivíduo a dizer simplesmente qual a sua posição, sem a necessidade de demonstrar sua compatibilidade com a lei, com os princípios de justiça ou com as regras do bem pensar. Não, ele logo tomará ciência de que se embrenhar pelas carreiras jurídicas é, antes de tudo, tornar-se um profissional do convencimento justificado, o oposto da imagem deturpada do advogado como um pedante sofista a esconder sob um palavreado erudito seu desejo de fazer prevalecer o absurdo sobre a lógica, o interesse mesquinho sobre a ética e a técnica fria sobre os princípios sensíveis de justiça. .

Quem quiser fazer do Direito não uma simples profissão, mas uma maneira de sentir e portar-se diante da vida e dos conflitos humanos, deverá entender que o saber jurídico possui singularidades para seu aprendizado e exercício. Desde o primeiro dia de aula, deve ficar claro que o Direito requer habilidade prática, reflexão esclarecida e atitude eticamente combativa. Na ausência de tais requisitos, o Direito sai desmoralizado (e como tem saído!) após cada demonstração de incompetência técnica, de dogmatismo preconceituoso ou do patrocínio ganancioso da opressão por parte daqueles que mais o deveriam honrar.

Quem desenvolveu a habilidade de operar as normas e princípios do Direito tornou-se um potencial operador jurídico; o que desenvolveu a capacidade de pensar o Direito de forma esclarecida e conseqüente, - refletindo-o, criticando-o e sugerindo aperfeiçoamentos, - tornou-se um intelectual do mundo jurídico. Mas só quem conseguiu conciliar a habilidade prática do operador jurídico com a amplitude de pensamento do intelectual do Direito pode ser dito um verdadeiro jurista. E se, deixando de lado seus próprios interesses mais imediatos, ele colocou sua condição de jurista a serviço da luta em prol da liberdade, do combate ao oportunismo e às desigualdades aviltantes, tornou-se um procurador da dignidade humana, um missionário do mundo jurídico.

Se os egressos das faculdades de Direito não possuírem competência técnico-operacional para resolverem questões jurídicas práticas, reduzindo-se a serem críticos do “sistema”, poderiam, sem perdas, ser substituídos por filósofos ou sociólogos, - com mais tradição e método no ofício da crítica conseqüente. Mas se tais egressos, lado inverso, se conformassem ao mero domínio do saber técnico-forense, poderia o Direito ser substituído por sistemas decisórios padronizados, informatizados, em uma verdadeira engenharia jurídica, - por certo menos ambígua, mas, com certeza, fria diante das particularidades de cada conflito humano convertido em demanda judicial. Simultaneamente críticos e operacionais é o que devem ser os novos operadores jurídicos.

Mas conhecer as leis em profundidade, bem encaminhar processos e ser capaz de apontar as limitações do mundo jurídico não é tudo. Um bacharel competente, inteligente e desonesto pode fazer o mesmo. É preciso mais. Caso os operadores jurídicos não vivenciarem uma atitude ética, que os faça dignos de serem guardiões da lei e proponentes de seu aperfeiçoamento, correm o risco de se tornarem pessoas socialmente perigosas, reduzidas a catadoras e produtoras de falhas legais, com as quais pretendem patrocinar a conduta nociva dos que insistem em fugir das regras de boa convivência social.

Deve-se, pois, juntar saber técnico, postura investigativa e atitude ética para estar à altura do Direito. Menos que isso é subaproveitá-lo, gerando o clima propício às piadas que, infalivelmente, caracterizam os operadores jurídicos como espertalhões, desonestos e desnecessários.

Um profissional do Direito só está pronto de fato quando sua simples presença intimida as fraudes e os abusos, cria ânimo colaborativo para a resolução de conflitos e, acima de tudo, enche de esperanças os que clamam por justiça. Por isso, diante do conhecimento e da vida, espera-se que o novo membro desta honrosa comunidade desenvolva a chamada atitude jurídica, cujos principais pontos estão listados abaixo:

1. Tenha boa vontade para escutar a defesa das idéias de que discorda e sabedoria para aprender algo com elas. É improvável que a outra parte esteja absolutamente errada e você absolutamente certo. O mundo humano é menos feito de certezas do que de diferentes versões para os mesmos fatos.

2. Não se precipite ao opinar. Permita-se a reflexão. A opinião refletida diferencia a pessoa superior do autômato, que responde com a rapidez de quem apenas copia os preconceitos do seu meio social. É preferível calar-se a opinar com leviandade.

3. Evite comentar publicamente temas de processos cujos autos você desconhece. Dos processos famosos, em que a causa se encontra muito longe de nós, ordinariamente, só temos acesso às versões da imprensa, que costumam ser parciais e interessadas em desfechos espetaculares, em função dos quais fatos bizarros e de pouca importância processual ganham uma importância indevida, ofuscando a essência da questão. Um processo judicial, por mais que entre suas partes haja “celebridades”, não pode seguir a lógica do espetáculo. A justiça requer sobriedade na mesma proporção em que a vingança pública reivindica destempero.

4. De vez em quando, dedique-se ao saudável exercício de teatralizar a defesa de posições contrárias às suas. Em geral você se surpreenderá com o grande número de bons argumentos que encontrará para defendê-las. Tal expediente, além de expandir seu repertório argumentativo, o livrará da contraproducente e criticável postura de “causa ganha”.

5. Além da formação prático-intelectual, procure uma identificação emocional e estética com o Direito. Assista a filmes e leia romances cuja trama envolva situações da vida jurídica. Aprenda com romancistas, diretores e atores não apenas a emocionar o público com os dramas humanos convertidos em peças processuais, mas, acima de tudo, procure sentir o Direito pulsando em você como uma vontade de fazer prevalecer a justiça contra os abusos de qualquer natureza.

6. Leia os clássicos do Direito. Clássicas são aquelas obras que por representarem modelos exemplares de entendimento e argumentação marcam não só uma época, mas adquirem validade indeterminada. Quem lê os clássicos se alimenta nas mais puras fontes do saber humano, amplia seu pensamento e nunca mais será o mesmo: os clássicos nos reconstroem para melhor, enquanto seres pensantes. Clássicos jurídicos “internacionais, como Kelsen (Teoria pura do Direito), Ihering (A luta pelo Direito), Bobbio (Teoria do ordenamento jurídico), Zaffaroni (Em busca das penas perdidas), Fuller (O caso dos exploradores de caverna), ou “nacionais”, como Carlos Maximiliano (Hermenêutica e aplicação do Direito), Sampaio Ferraz (Introdução ao estudo do Direito), Bandeira de Mello (O conteúdo jurídico do princípio da igualdade) e muitos outros pagam em benefícios duradouros a dificuldade que sua leitura traz. São difíceis? Em geral são, e é por isso que representam um desafio para poucos, somente para os que querem uma formação jurídica consistente e imorredoura. Aqueles que se formam apenas com base em “resumos” conseguirão exatamente o que procuram: uma mente resumida.

7. Leia os clássicos da literatura universal. Um operador do Direito que só conheça o próprio Direito mostra um precário entendimento da área em que atua. O Direito não é técnica, mas um modo humano de equacionar conflitos igualmente humanos. Como entender a essência de tais conflitos? Aprendendo com aqueles que os expuseram como ninguém. Quanto de direito se há de aprender lendo o Mercador de Veneza? Como mergulhar melhor no inferno passional a que pode levar o ciúme senão lendo Otelo? Mas não só Shakespeare nos apresenta com maestria a natureza humana. Crime e castigo (de Dostoievski), Angústia (de Graciliano Ramos) ou O Estrangeiro (de Albert Camus), entre centenas de outros, também nos levam a ter que encarar os seres-humanos em sua conflitiva inteireza. Lê-los é ampliar-se em entendimento e sensibilidade. O profissional do Direito que só lê livros “técnicos” corre o risco de passar longe dos reais interesses dos seus clientes - quando não de seus próprios.

8. Em qualquer circunstância, faça valer a presunção de inocência de quem está sendo acusado. O direito de explicar-se em um processo legal e razoavelmente conduzido foi uma das maiores lições de confiança em si mesma que a humanidade se concedeu. Aparências, indícios, provas e mesmo evidências são traiçoeiras e não podem, de per si, anular a mais humana de todas as características: a capacidade de escutar a verdade alheia e a partir dela, eventualmente, mudar de opinião.

9. Servindo como testemunha, advogado, juiz, promotor, policial ou como formador de opinião, lute para que não haja condenações errôneas. Equívocos em condenações – morais ou jurídicas - têm sido comuns e provocam abalos, freqüentemente irreparáveis, na vida psíquica e social da vítima, além de arranharem profundamente as instituições encarregadas de administrar a justiça.

10. Defenda o direito de todos ao exercer os seus. Como ensinou Rudolf Von Ihering, quando alguém exerce um direito não o faz apenas para si. Enquanto realiza sua luta privada pelo direito que julga lhe pertencer, reafirma, para todos, não só a existência do direito específico que pleiteia, como também vivifica a idéia de direito em geral, pondo limites à sua usurpação.

11. Tenha consciência de que o que torna uma causa relevante, a ponto de justificar uma demanda, não é seu valor econômico. Pode-se brigar por um milhão e fazê-lo por mera impertinência ou por dez centavos para conservar a auto-integridade cidadã. Não confunda o valor monetário da causa com o seu valor moral.

12. Contribua para o aumento do senso de justiça das pessoas à sua volta, já que nossa única garantia contra os tiranos é uma população a eles avessa.

13. Tenha uma atitude de não servilismo intelectual, ético e profissional ao exercer suas funções. Atitudes servis desvalorizam a classe profissional e seus integrantes. Mas não caia no extremo da arrogância: apenas os mitológicos seres imortais e os ridículos podem, legitimamente, considerarem-se acima dos demais.

Se pelo menos parte dos novos acadêmicos abraçarem o Direito nessa digna inteireza, tornando-o seu modo de vida, a sociedade há de colher inúmeras vantagens no que agora teme: o crescimento acelerado da oferta de vagas nos cursos jurídicos.

Bibliografia

COUTURE, E. Os mandamentos do advogado. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 2002.
INNERARITY, D. A Filosofia como uma das belas artes. Lisboa: Teorema, 2005.
IHERING, R. V. A luta pelo Direito. São Paulo: Martin Claret, 2000.
SELL, S. C. Comportamento social e anti-social humano. Florianópolis: Ijuris, 2006.

6.8.06

É o crime o objeto de estudo da Criminologia?

Professor Sandro Sell

Um campo de saber precisa ter um objeto preciso de investigação. Por óbvio, o da Criminologia haveria de ser o crime. Mas neste caso o óbvio esbarra na dispersão semântica do conceito apontado. O que é crime para o direito penal nem sempre é considerado crime pela sociedade e vice-versa. Caso a Criminologia adotasse, sem mais, o conceito criminal do Direito, a sociedade poderia acusá-la de não se importar com suas demandas, apegando-se ao formalismo jurídico e, com isso, deixando escapar a realidade. Ao revés, caso resolvesse tomar como objeto de investigação aquilo que a sociedade toma como sendo crime, o Direito poderia considerar a Criminologia inútil por não respeitar os limites legais das definições de condutas enquanto criminosas. Inútil esticar. O cobertor que representa o conceito de crime parece curto demais para dois repousantes tão espaçosos quanto o Direito e a sociedade.

Para os que defendem que a Criminologia é um saber auxiliar do Direito, seria razoável tomar o conceito jurídico de crime como objeto comum de estudo para as duas disciplinas. Assim como, no direito civil, o acessório segue o principal, a definição criminológica de crime deveria se conformar em espelhar definição penal. E as pessoas comuns, antes de dizerem de uma conduta “Isto é um crime”, deveriam consultar o Código Penal, a fim de evitar impropriedades. No entanto, para a decepção do ímpeto imperialista dos juristas, os demais saberes, via de regra, não se constituem para servir ao Direito; ao contrário, com muito mais freqüência é o Direito que exerce essa função de auxiliar. Afinal, o Direito regulamenta o jogo social, mas não é o próprio jogo. Pensar nas demais ciências enquanto meras auxiliares do Direito é tão esdrúxulo quanto pensar que os atletas de futebol treinam e jogam para auxiliar o juiz da partida. Portanto, a Criminologia não precisa submeter-se, tout court, ao Direito; devendo levar as questões jurídicas em consideração apenas à medida que essas sejam de interesse criminológico e não o inverso.

No direito penal, o crime é definido, geralmente, como uma conduta típica (ou seja, descrita em lei como passível de pena), antijurídica (isto é, não justificável pelas circunstâncias) e culpável (quando a pessoa que desrespeita a lei penal é imputável e tinha a possibilidade de agir conforme a norma). Assim a conduta de matar alguém só é crime porque está prevista em lei como proibida (art. 121 do CP). Mas essa simples previsão não basta para afirmarmos, com certeza, que tal morte foi criminosa. Ela pode ter sido plenamente justificada pelas circunstâncias, se constituindo em legítima defesa, por exemplo. Além disso, para completarmos a investigação sobre a possível ocorrência de um crime, haveríamos de saber se aquele que matou era imputável (maior de 18 anos, com capacidade normal de discernimento e coisas do gênero). Só após tais análises, o operador jurídico poderá afirmar: “Sim, essa morte foi um crime”; antes, não. O crime em Direito não é, pois, um fato natural, algo que ocorre e pronto, saltando aos olhos do investigador. Não, em Direito o crime é o resultado de uma construção normativa: é crime o que o Direito diz que é crime e, apenas, na medida em que não crie exceções desclassificadoras de delito.

O criterioso conceito jurídico de crime pode parecer decepcionante aos acusadores de plantão, mas constitui uma inafastável garantia aos cidadãos. Ele surgiu como um freio a uma eventual sanha persecutória do Estado que, na atualidade, monopoliza o direito social de punir violações legais. Com efeito, a partir da modernidade, sobretudo, dos indivíduos foi confiscada a possibilidade de se vingarem daqueles que os ofendem. Fazer justiça com as próprias mãos tornou-se crime. O Estado assumiu o que Max Weber chamou de monopólio da violência legítima: só ele pode aplicar penalidades aos criminosos. No entanto, para a tranqüilidade dos cidadãos, o Estado não é livre para aplicá-las como e quando quiser. Ao contrário, só poderá fazê-lo dentro de estritas regras de direito, cujo objetivo primeiro é evitar abusos e arbitrariedades. É por tal razão que a definição de alguém enquanto criminoso é precedida de tantas cautelas. Pela mesma razão, os Estados de direito repudiam a chamada analogia in malam partem, aquela em que se pune uma conduta não prevista em lei como crime por se assemelhar a uma outra efetivamente prevista. Como dizem os penalistas: nullum crimen, nulla poena sine praevia lege.

O fato de o conceito jurídico de crime procurar corresponder a necessidades tanto da técnica jurídica quanto do Estado de direito, não significa que sua aplicação será técnica e precisa. Na prática há mais condutas criminosas do que o sistema penal possui possibilidade de combater. Assim, haverá uma seleção político-ideológica de certos crimes que a sociedade elege como merecedores de combate em detrimento de outros que parecem merecer tolerância. Como em geral os crimes tolerados são aqueles realizados por pessoas com mais recursos (crimes de sonegação fiscal, corrupção, peculato, banqueiros do jogo de bicho, agiotas) e os mais enfaticamente perseguidos são os realizados habitualmente por pessoas mais pobres (furtos, roubos, porte ilegal de armas), a impressão que dá é que os pobres delinqüem mais do que os não pobres. Mas isso resulta do fato de o sistema de persecução penal ser arbitrariamente seletivo: seu dever era perseguir tudo o que está definido como crime, mas como isso paralisaria a sociedade (com suas múltiplas criminalidades), escolhem-se os mais pobres para satisfazer o apetite do aparato de repressão penal. É por isso que os críticos do modelo vigente ironizam dizendo que para que uma conduta seja crime em Direito, ela há de ser não apenas típica, antijurídica e culpável, mas, sobretudo, cometida por uma pessoa de baixa renda. As estatísticas sobre a pobreza dos encarcerados, lamentavelmente, reforçam a visão desses críticos.

Pensemos num indivíduo jovem, pobre e negro – o estereótipo social do criminoso – que entra numa loja de um shopping e furta um chocolate, cujo valor é de um real. Com a ajuda da zelosa sociedade de bem, ele será detido, mostrado à imprensa e entregue ao sistema penal, no qual será tratado com desprezo e arrogância. Quem manda ser bandido! Mas naquele mesmo dia, como em muitos e muitos outros, o bom pai de família, proprietário da loja furtada, deixou de recolher o imposto devido, por achar que já pagava demais. A cada 100 reais de venda não declarada, ele embolsava em torno de 20 reais de dinheiro público. No dia que o bandido lhe furtou o chocolate, ele havia deixado de declarar a venda de pelo menos dois mil reais. Com isso ele se apropriou, criminosamente, de 400 reais de dinheiro público. Haverá imprensa a mostrar-lhe a cara envergonhada? Haverá policiais e algemas em seu estabelecimento? Haverá promotor a discursar ferozmente contra ele? Provavelmente estarão muito ocupados com o garoto do chocolate para darem atenção a esses crimes irrisórios.

Suponhamos mais. Um aluno de Direito que surpreende um pivete tentando furtar o CD player de seu automóvel. A polícia chega e apreende o garoto. No carro do estudante, dezenas de CDs pirateados – ou seja, uma série de crimes! - que, somado o que deixou de pagar de direitos autorais, superariam o próprio valor do aparelho cujo furto foi tentado. Por quê esse estudante não teme que o policial queira lhe incriminar por estar negociando mercadoria ilícita? Porque ele sabe que o sistema, não podendo perseguir todos os crimes, perseguirá preferencialmente o crime que é cometido pelos mais pobres. Por que tal preferência? Porque os mais pobres não reclamam de abuso de autoridade, não são acompanhados de advogados e seus estratagemas emperrantes da investigação policial. E porque prender os mais pobres dá a impressão de “missão cumprida”, enquanto que prender os mais ricos, além de ser um risco à carreira, pode parecer um sintoma de inveja. In dúbio pro mísero.

Mas há mais. Dirão alguns que piratear CDs é muito diferente de furtar chocolates. Nem tudo que é crime para a lei é crime para a sociedade. Não fornecer a nota fiscal devida, fotocopiar grande parte das obras de autores em “xerox” de universidades, baixar clandestinamente músicas da internet, apostar no “jogo do bicho”, entre outras condutas, são criminosas para o Estado, mas, em geral, bem aceitas pela sociedade. Ao revés, a prostituição e o incesto são condutas freqüentemente repudiadas pela sociedade, sem que sejam crimes em sentido jurídico. Essa dissonância entre o que a sociedade considera crime e o que o Direito assim classifica ajuda a explicar o caráter seletivo da persecução penal. O agente da lei quer ter seu trabalho reconhecido pela comunidade que o sustenta, então acaba por dar preferência persecutória, dentre os crimes em sentido jurídico, àqueles que são também crimes em sentido social. Em outras palavras, para ser combatida não basta que uma conduta seja criminosa, necessário que seja também uma transgressão aos valores sensíveis da sociedade.

Talvez pudéssemos, então, trocar o conceito jurídico de crime pelo conceito sociológico de transgressão, enquanto objeto de estudo da Criminologia. Destarte, transgressões são as condutas cuja realização perturbam a consciência do homem médio, não diretamente envolvido com a questão, a ponto de este se sentir no direito de nelas intervir, aceitar ou mesmo reivindicar que intervenções punitivas sejam feitas. Assim, mesmo que o adultério no Brasil tenha perdido a sua classificação de conduta criminosa para o Direito, ele continua sendo dito como transgressivo em determinadas localidades do Brasil, a ponto, inclusive, de se constituir em motivo absolutório de certos assassinos de esposas adúlteras. Ao contrário, a prática do jogo do bicho, embora ato contravencional para o Direito, é tida como não transgressiva. Isso significa que as pessoas típicas de nossa sociedade não se sentem autorizadas a agredirem aqueles que jogam no bicho.

Crime ou transgressão, qual o objeto da Criminologia? Pelos exemplos acima, já deve ter ficado claro que qualquer um deles, isoladamente, não permite o estudo da totalidade das condutas que se poderia esperar de uma ciência como a Criminologia. Deixar de estudar certos crimes juridicamente definidos pela razão de não possuírem importância social seria um atentado ao próprio nome deste campo de saber. Mas deixar de estudar determinadas práticas repudiadas pela sociedade, enquanto transgressivas, porque o Direito lhes nega a condição de criminosas, é igualmente deixar de se ocupar com fatos que parecem intimamente de sua competência. A solução seria ter como objeto da Criminologia tanto um como o outro. Assim, definiremos o seu objeto estudo da seguinte forma:

A Criminologia estuda o crime (entendido enquanto conduta criminalmente prevista em lei e repudiada pelo Direito) e as transgressões, entendidas como as condutas, previstas ou não em lei, capazes de gerar tal grau de abalo no indivíduo médio da sociedade que ele se sinta autorizado a puni-las, aceite ou mesmo reivindique que outros ou alguma instituição o faça.

Quanto mais houver congruência entre o conceito de crime e o conceito de transgressão em uma dada sociedade, mas legítimo será seu sistema de punição criminal, assim como haverá alta taxa de legalidade em sua aplicação. Legalidade diz respeito à compatibilidade entre a lei e a punição; enquanto legitimidade associa-se à aceitação popular da punição empregada. Quando o Estado pune banqueiros do jogo do bicho, por exemplo, muitas pessoas alegam que isso é bobagem, que tal ação em nada melhorará a sociedade. Já quando o Estado pune um estupro contra criança, haverá uma sensação coletiva de que justiça foi feita. Embora as duas punições tenham sido legais, só a segunda foi legítima.

Para melhor visualizar:

Se uma conduta é definida como criminosa e transgressiva, a punição criminal a ela será tida como legal e legítima. Exemplo: punir assaltantes violentos.

Se uma conduta é definida como criminosa, mas não transgressiva, a punição penal a ela será tida como legal, mas não legítima. Exemplo: punir jovens por copiarem ilegalmente filmes na internet.

Se uma conduta é definida como transgressiva, mas não criminosa, a punição penal a ela será ilegal, mas não ilegítima. Exemplo: punir a prostituição.

Se uma conduta não é definida nem como criminosa, nem como transgressiva, a punição penal a ela será ilegal e ilegítima.

Um fato comum entre o crime e a transgressão, como objeto da Criminologia, é que ambos não existem enquanto realidades independentes. Para ser crime algo há de contrariar a lei; para ser transgressão, há de contrariar a sociedade. São, então, o Direito e a sociedade que definem as condutas que serão objeto da Criminologia. Poderíamos parafrasear o brocardo latino dizendo: não há crime sem lei anterior que o defina, nem transgressão sem prévia definição social. Portanto, o objeto de estudo da Criminologia variará não apenas com a mudança nas leis, como com a mudança nos costumes sociais.




Exercícios:

1. Por que o conceito de crime não consegue abarcar a totalidade do objeto de estudo da Criminologia?
2. O conceito jurídico de crime é bastante complexo. A que funções poderiam corresponder tal complexidade?
3. O que significa dizer que o Estado detém o monopólio da violência legítima?
4. Por que se diz que o sistema penal é bastante seletivo? Como diante dessa seletividade explicar o brocardo dura lex sed lex?
5. Quais as diferenças entre crime e transgressão?
6. Toda punição estatal de um crime efetivamente verificado é legítima? Explique.
7. Leia o artigo 229 do Código Penal Brasileiro: “Manter, por conta própria ou de terceiro, casa de prostituição ou lugar destinado a encontros para fim libidinoso, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente. Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.” O trecho "destinado a encontros para fins libidinosos" parece adequar-se perfeitamente a definição de motel. Por que, então, motéis, nesta acepção são tolerados?
8. Pesquise em um dicionário qual a origem da palavra crime.