30.8.08

A vingança dos presos não serve à sociedade

Linchamentos: o que precisamos é de uma justiça atuante e não de pedras na mão.


É de conhecimento geral o destino que, nas prisões brasileiras, é reservado àqueles que cometeram certos crimes infamantes. Criminosos que molestaram sexualmente crianças ou assassinaram sua progenitora estão, amiúde, condenados à morte pelos colegas de prisão. A sociedade chega a dizer que os citados crimes são intoleráveis na “ética dos presos”. Mas tal conclusão deriva de um total desconhecimento do que seja ética e dos reais motivos dessas execuções.

Ética não pode ser igualada a um código de vingança. Uma decisão ética é fruto de criteriosa reflexão acerca de como devemos orientar nosso comportamento diante dos outros e da sociedade. Ética é a busca de compatibilizar liberdades, reconhecer igualdades, tolerar diferenças e, por vezes, de impor limites ao agir nosso e alheio. Mas limites razoáveis, proporcionais, reciprocamente válidos.

O que esses presos fazem, assassinando seus colegas de crime, é apenas uma forma de dar vazão a sua violência característica e ao remorso que, eventualmente, manifestam pelo desgosto que, eles mesmos, causaram às suas famílias.

Seriam esses indivíduos os mais indicados para protegerem a integridade sexual das crianças e das mães de nossa sociedade? Mas - e aí está todo o drama - alguns dirão: “Pelo menos eles dão uma resposta à altura do mal que aqueles criminosos fizeram; se dependesse da lei, não lhes aconteceria nada.” Porém o que é a lei? Em tese, numa democracia, a lei deve refletir o consenso dos cidadãos acerca de como a vida individual e coletiva deve ser regulada. Nossas leis não nos foram dadas por Deus ou pela Natureza. Se desejarmos mudá-las, podemos. Portanto, se não estamos satisfeitos com a resposta que a lei dá a certos crimes, que nos organizemos para mudá-la. Pode levar tempo e o resultado não ser bem o esperado. Mas ainda é melhor do que transferir a atividade de responder a certos comportamentos criminosos a outros criminosos, cuja condição moral os desqualifica para a tarefa.

Os chamados “códigos de ética dos presos” nada mais são que a violência vingativa do ambiente carcerário somada à complacência cúmplice de uma parte da sociedade, que prefere delegar tarefas morais aos criminosos a agir como participativos cidadãos.


Fonte: SELL, S. C. Comportamento social e anti-social humano. Florianópolis: Ijuris, 2006.

5.8.08

Chique é ser tapada

Após sair da prisão, Paris Hilton preenche seu vazio existencial...
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Pesquisa recente nos EUA informa que a maioria das mulheres jovens de lá preferem ser famosas a serem inteligentes. É o império da ignorância fotografada. Equação em que uma Paris Hilton equivale a 100 mil mulheres cientistas e uma Britney não vale menos do que 1000 Clarices Lispector + 400 Nélidas Pinõn, de lambugem...

As meninas americanas não são burras ao não ligarem para a inteligência: atualmente o tal do QI não leva ninguém a lugar quase nenhum (só a míseras bolsas de estudo em cursos de pós-graduação). Você não terá melhores empregos se for mais inteligente, mas sim se for famoso entre as pessoas certas, se tiver "contatos".



Hoje chamam essa arte de formar patototinhas (contatos), que preferirão você e sua ignorância a outro candidato mais capacitado, de "inteligência emocional" (se for assim, as meninas norte-americanas não estão preferindo a fama à inteligência, mas repudiando a inteligência tradicional em favor da emocional...).

Já se disse que antes se tinha que fazer algo surpreendente para ser famoso, hoje, ao contrário, se você for famoso tudo (absolutamente tudo) que você fizer (escovar os dentes, transar, casar, tropeçar, comprar, trair, coçar) vai ser tido como algo surpreeeendeeente!!!!. "Vocês viram ela coçando micoses no You Tube? Foi deemaaiis, hilário mesmo!"

E como se faz com todo jogador, após ter marcado o gol que todos vimos mil vezes na TV, a celebridade vai ter o direito de dizer como ela se sentiu escovando os dentes, como ela se sentiu parindo a criança, como ela se sentiu quando a bola entrou e essas coisas.

Dica da semana: fique famosa e deixe a inteligência para essa raça estúpida que, como as baratas, ainda permenece infestando à Terra.

14.6.08

Descontos sexuais: o lado não polêmico da inconstitucionalidade cotidiana

Em 1997, o Grupo de Teatro Olodum, movido pela idéia de que os negros têm menos acesso à cultura, resolveu dar um desconto inusual: eles pagariam apenas 50% do valor do ingresso na peça Cabaré da raça. Um preço para brancos, outro, menor, para negros. Sob a acusação de atentar contra o Princípio da Igualdade (art. 5o. caput da CF), o Olodum cedeu, estendendo o desconto a todos os freqüentadores. Devido a essa atitude preventiva dos produtores do espetáculo, o Judiciário não chegou a se posicionar sobre o caso. Seria ilustrativo vê-lo fazendo, pois o princípio isonômico não é apenas um dos nossos fundamentos constitucionais: ele é a base do nosso sistema de direitos. Tal é o que entende, por exemplo, Celso Ribeiro Bastos quando salienta que o fato de o citado princípio estar localizado não num dos incisos, mas no próprio caput do artigo 5o da Constituição, o centro nevrálgico de nossas garantias e direitos, indica sua precedência axiológica em face dos demais princípios.
A igualdade deveria ser, então, o fundamento de nossa ordem jurídico-social. Não obstante, muitos fatos nos levam a crer que o princípio isonômico é sub-aproveitado enquanto corretivo de desigualdades que, por sua cotidianidade e aparência simpática, proliferam-se incólumes a questionamentos judiciais. Dar descontos e entradas livres a mulheres em bares e boates, presumir-lhes uma consumação mais baixa do que a masculina, utilizar a estratégia do “mulheres free” para atrair homens para casas noturnas, ofende o princípio isonômico? Qual a diferença em dar desconto por critérios raciais e dar descontos por critérios de sexo ou gênero?
Talvez a diferença não seja de essência, mas de costume. Com efeito, o critério racial se nos apresenta como exótico, importado de países como os EUA e suas políticas de cotas, enquanto as nuances questionáveis das desigualações por gênero mostram-se corriqueiras e simpáticas demais – de inspiração cavalheirística – para ousarmos questionar seus eventuais problemas. Resistiria esse pretenso cavalheirismo a uma análise constitucional das desigualdades aceitáveis? Analisemos. Dar descontos a negros, mas não a brancos, em espetáculos parece clara e consensualmente afrontar a ordem das desigualdades aceitáveis num Estado de direito. Basta lembrar que fazer o inverso, cobrar mais caro dos negros, seria uma atitude certamente tida como criminosamente racista.


Mas as coisas não são tão simples quanto aparentam. Uma medida desigualitária será classificada como atentatória à isonomia mais pela motivação que a inspira do que pela diferenciação que efetivamente opera. Não são, certamente, motivações reprováveis que alimentam a criação de regimes diferenciados – cotas, descontos, vagas preferenciais - quando o objetivo de tais diferenciações é que, por meio delas, aqueles que são costumeiramente discriminados aproximem-se em possibilidades dos socialmente privilegiados. Cobrar menos impostos dos pobres, dar vagas preferenciais a idosos e a deficientes em estacionamentos, subsidiar a habitação e a alimentação dos miseráveis são exemplos de regimes desigualitários, mas não contrários à isonomia, já que seu objetivo final é, justamente, corrigir desigualdades factuais, distribuindo os bônus públicos de forma preferencial aos mais necessitados. A equação das diferenciações aceitáveis por nossa Constituição passa pela lógica de que a desigualação no antecedente (no regime diferenciador) deve provocar maior igualdade no conseqüente (no objetivo da diferenciação).


Portanto, tratamentos desiguais só serão tolerados se tiverem por objetivo e conseqüência diminuir a distância inicialmente verificada entre as pessoas na sociedade. Esse é o motivo porque deficientes físicos podem ser contratados a partir de regimes especiais pela Administração Pública (art. 37, VIII, da CF). Toda diferença de tratamento deve servir para diminuir as diferenças sociais e jamais para perpetuá-las.As polêmicas medidas de ação afirmativa, como as cotas para negros em universidades, seguem a mesma idéia de realização não ortodoxa do princípio da igualdade: desiguala-se brancos e negros no ingresso à universidade para que brancos e negros igualem-se mais facilmente em termos do número de egressos do nível superior. Se as cotas realmente funcionarão para corrigir as desigualdades raciais brasileiras, é questão polêmica e por nós já debatida exaustivamente em outro lugar , aqui o que interessa é salientar que a motivação igualitária das cotas as isentam de se constituírem em afronta ao princípio isonômico.


Em sua intenção, as cotas pretendem materializar o objetivo constitucional da igualdade sonhada, mas ainda inexistente, entre negros e brancos. Na prática, as cotas, talvez, só sirvam para acirrar preconceitos raciais, mas, em tese, a desigualação que promovem é teleologicamente compatível com nossa ordem constitucional .


Entendido o norte interpretativo das desigualações possíveis, voltemos a polêmica de se fere ou não nosso ordenamento jurídico diferenciar positivamente as mulheres no ingresso a casas noturnas.A igualdade entre homens e mulheres em nossa ordem constitucional poderia perfeitamente derivar do caput do artigo 5o: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...”, mas o legislador quis ser enfático e, já no primeiro inciso do citado artigo, complementou: “Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações nos termos dessa Constituição.”


A expressão “nos termos dessa Constituição” tem sido entendida como significando que a desigualação entre homens e mulheres só poderia ser feita pela própria Carta Magna, que de fato o faz. A Constituição promove discriminações em favor das mulheres em três casos: licença-gestação superior à licença-paternidade (art. 7o, incisos XVIII e XIX); proteção específica ao trabalho da mulher (art. 7o, XX) e prazo mais curto para aposentadoria por tempo de serviço feminino (arts. 40 e 202, e suas especificações). Autores como Eliane Maciel salientam que tais casos são excepcionais, com fundamentação própria, e não podem servir como motivos de criação de novas diferenciações analógicas, já que é princípio básico de hermenêutica jurídica que as exceções devem ser interpretadas de modo estrito. Se assim for, a concessão de descontos privilegiadores às mulheres em casas noturnas afronta o princípio geral de igualdade constitucional e não se enquadra em nenhuma das exceções constitucionalmente elencadas.


Mas não é tão simples assim. Poderia haver, via ampliação teleológica, outros casos de diferenciação aceitáveis entre os sexos? Sim, lembremos que a norma da igualdade no artigo 5o caput e inciso primeiro possuem a natureza não de regra jurídica estrito senso - como aquelas que dizem clara e objetivamente o que deve ser feito - mas de princípios, isto é, de vetores de inspiração a criação e interpretação de normas infraconstitucionais. Uma regra jurídica costuma ter a estrutura do artigo: a licença-gestação será de 120 dias (art. 7o, XVIII, da CF). Quando uma regra jurídica não é clara, podemos criticar a técnica do legislador.


Mas há normas jurídicas que não podem ser claras, pois não se destinam a orientações pontuais, mas são princípios que devem ser efetivados da melhor maneira dentro das possibilidades sociais. Um princípio constitucional não manda que se faça X, manda que X seja levado em consideração da forma mais ampla possível, desde que compatível com outros princípios igualmente constitucionais. Portanto a expressão “nos termos da Constituição” não é limitadora de outras diferenciações entre homens e mulheres, mas apenas de diferenciações que não tenham por objetivo final tornar mais igualitária a situação entre os dois sexos.


Assim, o fato de não estar previsto na Constituição Federal, não torna de per si inconstitucional o desconto dado às mulheres em casa noturnas. O que o tornaria inconstitucional é se tal desconto não pudesse ser razoavelmente justificável dentro de uma teleologia da igualdade.


Já houve tempo em que se alegava que os citados princípios constitucionais dirigiam-se apenas ao Estado e ao legislador, mas não aos particulares, já que estes possuiriam maior grau de autonomia. Assim, um espetáculo público não poderia conceder descontos a mulheres, apenas por serem mulheres, mas uma empresa privada, sim. Mas, modernamente, como salienta Canotilho essa interpretação está superada. O princípio da igualdade vincula a todos: legislador, juízes, administradores públicos, empresas e pessoas físicas. A autonomia da vontade particular é, lembremos, residual, imperando apenas nos termos em que o ordenamento constitucional, guardião dos interesses sensíveis do Estado e da sociedade, permite. Assim, não há como justificar pelo direito de liberdade individual práticas que o ordenamento jurídico repudie.


Resta saber é se os chamados descontos de natureza sexual incluem-se em tais práticas constitucionalmente repudiadas. Quem paga a conta dos descontos dados às mulheres? As casas noturnas? Certamente que não. Na composição dos custos do estabelecimento, esses descontos são transferidos para os clientes integralmente pagantes: os homens. As casas noturnas oneram um sexo em benefício do outro. Repete-se aqui a regra geral dos subsídios: se alguém os recebe, outro alguém tem sua conta majorada. Certamente, muitos homens poderiam estar dispostos a subsidiar as mulheres em termos de ingressos e descontos. Mas pode-se presumir em grau absoluto tal disposição, transferindo-se a conta de um consumidor (mulher) a outro (homem)?Os donos de casas noturnas poderiam alegar, então, que homens dão efetivamente mais gastos aos seus estabelecimentos. E que assim, não se estaria desigualando os sexos por mera conveniência, mas por fundamentos razoáveis: quem dá mais gasto, deve pagar mais. Se tal argumento correspondesse à verdade dos fatos, não haveria por que censurar o desconto dado às mulheres: elas dão menos ônus ao estabelecimento e, por isso – e não por serem mulheres – fazem jus a um bônus. O problema é que o maior gasto dado pelos homens é presumido. O Código de Defesa do Consumidor diz que quem consome tem o direito de saber, concretamente, o que está comprando, de pagar apenas pelo que usa, proibindo-se vendas casadas e coisas do gênero. Mulheres pagam menos consumação porque, por exemplo, bebem menos. Isso pode geralmente ser assim, mas o homem abstêmio deve ser forçado a arcar com a conta da mulher alcoólatra? Pela presunção das casas noturna, sim. De fato o grande mote dos descontos preferenciais a mulheres é que as casas noturnas as utilizam como chamarizes de clientes homens. Esse é o objetivo básico da desigualação feita nos preços cobrados de homens e mulheres. Tal objetivo é compatível com nossa ordem constitucional? Certamente que não. A pretexto de conceder gentilezas às mulheres, perpetua-se a idéia de que estas podem ser utilizadas como objetos promocionais, subsidiadas, via descontos e tratamentos preferenciais, para atraírem clientes homens. Ora, quando a Constituição admite certas distinções entre homens e mulheres é sempre no sentido de aumentar a cidadania subjugada que a condição feminina historicamente amarga, e nunca para conceder regalias simpáticas, mas de cunho perpetuador da objetificação feminina.


Se há, e muitas há, mulheres que ganham menos que homens, que se criem descontos por faixa de renda; se há, e como há, mulheres que bebem menos que homens, definam-se melhor os critérios de consumação. Agora dar descontos preferenciais às mulheres porque estas atraem homens para as casas noturnas é mais do que ferir a ordem constitucional posta, é atentar contra a dignidade feminina.


O Olodum objetivava simplesmente facilitar o acesso de negros à cultura, dando-lhes descontos preferenciais. Nossos pruridos constitucionais imediatamente se manifestaram. Parecia uma afronta clara, claríssima, à isonomia. Mas, a rigor, não era. Era uma questão constitucionalmente polêmica, já que a intenção (o telos) da desigualação operada era a promoção final de uma maior igualdade entre as raças. Já o tratamento desigualitário favorescente às mulheres dados pelas casas noturnas não pode, como vimos, apelar a nenhuma causa nobre de maior igualação final entre os sexos. Desiguala-se para auferir lucros e ponto. Desamparada por um objetivo constitucionalmente razoável, tal distinção deveria provocar em nós uma espécie de repulsa constitucional. Mas não provoca. E enquanto condenamos a excepcionalidade de medidas como a do Olodum, aceitamos, passivos, as desigualdades cotidianas.




Bibliografia


BASTOS, celso Ribeiro. Princípio da igualdade. In: BASTOS, Celso R. e MARTINS, Ives Granda. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1989.CANOTILHO, José J. G. Direito Constitucional. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2004.DWORKIN, Ronald. Los derechos em serio. Barcelona: Ariel Derecho, 1989.MACIEL, Eliane C. B. de Almeida. A igualdade entre os sexos na Constituição de 1988. Disponível em http://www.senado.gov.br/conleg/artigos/especiais/AigualdadeEntreosSexos/ . Acesso em 21 de agosto de 2006.MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: Malheiros, 1997.SELL, Sandro César. Ação afirmativa e democracia racial: uma introdução ao debate no Brasil. Florianópolis: Funjab/UFSC, 1992.SELL, Sandro César. Comportamento social e anti-social humano. Florianópolis: Ijuris, 2006.SELL, Sandro César. Existem raças humanas? Disponível em http://sandrosell.blogspot.com/SINGER, Peter. A Companion to ethics. Balckwell Companion to Philosophy. Oxford: Blackwell Publications, 1995. Professor Sandro Sell

13.6.08

Maioridade penal: um debate legítimo

Sobre a legislação penal, apesar de sua crônica incapacidade de barrar o avanço da criminalidade, concentra-se, em momentos traumáticos, como o do assassinato do menino João Hélio, no Rio de Janeiro, o debate sobre o fim da violência que nos assalta cotidianamente. Para alguns, bastaria aumentar a severidade punitiva do Estado e chegaríamos a um nível de civilidade comparável ao dos países que, pelo menos em nosso imaginário, são tranqüilos para se viver. Necessário dizer que os países em que a criminalidade apresenta, de fato, taxas suportáveis de violência possuem uma série de características sócio-culturais muito diversas da brasileira, mas não tão diversas quando se trata do tratamento legislativo à criminalidade. Que ninguém se iluda, os sistemas penais nos diversos países ocidentais só variam em detalhes, no mais vivem debaixo das mesmas críticas sobre seu custo, ineficiência e discriminação (os presídios norte-americanos, por exemplo, possuem taxas de encarceramento proporcionalmente avantajadas para latinos e negros e bastante rarefeitas para os brancos). Há países com penas severas e crime à solta tanto quanto há países com leis moderadas e crimes sob controle. Entre os especialistas há inclusive um consenso: o papel da lei na contenção do crime é fundamental, mas insuficiente, ou seja, não se faz um país não violento apenas pela ação de legisladores e juízes.

O debate sobre possíveis modificações da lei penal funciona, entretanto, como uma espécie de atalho mental quando se trata de buscar soluções para a violência. Assim que acontece um crime bárbaro, cujas vítimas não sejam os habituais miseráveis, pensa-se logo sobre que lei pode-se acusar pelo infortúnio. A lei penal é nesses casos um cúmplice necessário da ação criminosa trágica. “Se a lei fosse assim e não assado isso não teria acontecido!”, brada sempre alguém. Ao respeitável choro da família enlutada segue-se uma série de debates marcados pela passionalidade populista de setores da imprensa e da política. Sob o grito redentor do “Vamos pôr um fim nisso”, produzem-se ilusões, acusam-se como se comparsas do crime sofrido fossem todos os que ousam pedir calma e racionalidade. Mais uma vez vem “esse pessoal dos direitos humanos ajudar os bandidos”.

Mas mesmo o pessoal que pede calma e racionalidade não consegue nelas se manter por muito tempo. Logo se tornam passionais também. Tomam sua posição como sinônimo de pensamento esclarecido e não querem escutar mais nada. São contra toda e qualquer alteração na lei. Se no dia-a-dia se definem como um grupo crítico ao sistema legal posto, nesses dias de debate acalorado apegam-se a ele com um dogmatismo ferrenho. Querem que a lei congele, atribuem o status de cláusula pétrea, por duvidosa extensão, a tudo o que lhes interessa manter. Como procuradores da Justiça na Terra, negam-se a permitir possíveis “estragos” que “em suas leis” possam vir a fazer o povo e seus representantes.

No caso da discussão sobre a maioridade penal é isso que ocorre. Por que 18 anos e não 20? Pelo mesmo motivo que 18 e não 16: porque se decidiu assim e pronto. É certo que a ONU já defendeu que essa é uma boa idade para marcar o início da responsabilização penal; é certo também que a maior parte dos países a adota, mas, mesmo assim, ela é muito mais uma convenção do que o resultado do consenso entre especialistas. Fixar a idade penal mínima é fixar um momento em que, para efeitos da lei, passa-se a considerar que alguém já tem capacidade de entender o caráter ilícito de seus atos e de se determinar por esse entendimento.

Quando um ser humano de desenvolvimento mental normal em nossa sociedade passa a compreender que matar, estuprar e arrastar os outros pelo cinto de segurança através das ruas não é correto? Veja-se que não é exigido que esse ser humano saiba o que é um homicídio qualificado, que saiba que para formar uma quadrilha é preciso mais de três comparsas, não precisa saber o que é motivo torpe ou resultado preterdoloso; só precisa reconhecer que de suas ações violentas podem vir a desgraça alheia. Na maior parte de nós esse entendimento não demora tanto assim para se formar. Muitos especialistas dizem que 12 anos são suficientes; na Inglaterra, bastam 10, e em alguns estados dos EUA pode-se descer ainda mais na idade exigida para julgar criminalmente alguém. As variações são de fato espantosas, sobretudo dadas suas conseqüências práticas. O menino de 12 anos que mata barbaramente outro no Brasil só poderá ser ajudado/orientado pelo Estado – nunca punido – enquanto seu colega de infância inglês poderia amargar nove anos em instituições correcionais e depois, ainda, ser obrigado a cumprir o resto de sua pena num presídio comum. Dado o enorme dissenso entre os especialistas, idades de 12, 16, 18 ou 20 anos parecem ser números destinados a organizar a aplicação da lei e não para se adequar a capacidade penal efetiva das pessoas.

Se a idade de 18 é assim, então, tão arbitrária, por que não se pode rediscuti-la? Arbitrária também era a idade de 21 anos para a determinação da capacidade civil absoluta; notou-se que era inadequada aos novos tempos e se a mudou. Arbitrária também era a idade de 18 anos para poder votar em alguém no Brasil, alguns acharam que os tempos eram outros e baixou-se para 16 anos. Isso significa que há o reconhecimento de que os jovens de hoje podem mais cedo fechar contratos civis, sem a assistência de seus pais, podem decidir sobre inúmeras coisas que antes lhes eram vedadas, podem também votar nos homens que fazem as leis penais, só não podem mesmo é responder por elas.

Num ponto os que são contrários a baixar a maioridade penal estão certos: não haverá diminuição na criminalidade. Trata-se do argumento da ineficácia da lei penal severa. Tal argumento deve ser tomado a sério porque muitos pensam que se o “menor” correr o risco de ser severamente punido, ele não mais entrará no crime. Ledo engano: quem entra no mundo do crime no Brasil sabe que a morte lhe espreita. O adolescente envolvido com o crime não empunha a arma porque espera ser tratado pela lógica benevolente do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA). Apenas se ele não morreu em tiroteios ou se não tomou uma “surra” dos seus captores, numa prática policialesca muito comum de substituição ilegal do seu encaminhamento “inócuo” diante da Justiça, ele poderá vislumbrar o encontro com um juiz “legalista” que diga: “A febem não cumpre o Estatuto, prefiro deixa-lo solto”. Mas essa é a exceção, a maior parte dos operadores da lei já se rendeu à lógica do possível: “A lei diz A, mas “sou obrigado a fazer B”; é só assim que se entende que horríveis depósitos humanos, seja sob a forma de presídios ou instituições “sócio-educativas” continuem em funcionamento.

O adolescente que comete crimes no Brasil não está numa situação confortável - claro que não. Ironicamente há a crença que no Brasil nada funciona conforme a lei, mas se acredita que a lei do Eca é de fato aplicável em toda a sua brandura. As cenas deprimentes dos pátios das ‘”febens”, do massacre da candelária, ou violência cotidiana contra crianças não parecem abalar nossa crença de que aqui menor é tratado bem demais. “Se fosse na Inglaterra, se fosse nos EUA esses menores iam ver”, vociferam alguns, esquecendo que se fosse nesses países, antes de conhecer um policial ou um juiz, o menor teria conhecido uma dúzia de professores e um par de pais com emprego; ou seja, grande parte da menoridade que vai para prisão em países desenvolvidos vai não por falta de oportunidades mínimas de existência, mas por falta de tê-las aproveitado – e nisso há uma sutil diferença com o caso brasileiro, no qual não se sabe se o que adentra o cárcere é a resultante humana da maldade individual ou o descaso social que a ajudou a formar.

Um segundo argumento respeitável dos que se opõe à baixa da menoridade penal é o que sustenta que o sistema que não serve para os presos maiores menos ainda servirá aos infratores menores. Trata-se novamente de um argumento que diz respeito à ineficácia da medida que visa à redução da idade penal. Mas esse é um argumento tecnológico, e não de princípio. O problema de argumentos que apelam para a eficácia é que eles podem ser lidos também de maneira inversa. Se não vamos baixar a idade de responsabilização penal porque o sistema carcerário destinado aos maiores de 18 anos não funciona por que então não se prolongar a idade penal mínima para 30 anos? Por que o garoto de 17 não dever ser submetido a um sistema de recuperação inócuo e um de 18 anos pode? Por que não se levantam coerentemente, os contra a baixa da maioridade, contra a violência ineficaz, então, cometida contra os de 18, 19 ou 20 anos? Difícil entender.

O fato é que o tratamento por meio de medidas sócio-educativas ou a tão difundida ressocialização só excepcionalmente funcionam, mesmo em instituições exemplares. Funcionam para alguns tipos de personalidade, infelizmente não para os portadores de transtornos associados à psicopatia ou sociopatia, justamente as pessoas mais propensas a barbarizar a vida alheia sem sentirem remorsos por isso. Para pessoas assim, como também para aquelas que poderiam, mas não querem ou não vêem sentido numa vida não criminosa, a internação tem um outro objetivo: a contenção de seu potencial de violência, a proteção da sociedade. Por incrível que pareça muito dos contrários a baixa da maioridade penal não concordam que a proteção social possa ser uma motivação legítima, acreditam que todo direito é direito individual (do acusado) e que todo direito coletivo, de proteção social etc. é desculpa para maltratar os cativos.

Uma outra função que o encarceramento pode ter é o de satisfazer a ânsia de justiça das vítimas. Assim encarcerar o garoto de 17 anos que cometeu o crime bárbaro é uma satisfação que o Estado dá à família da vítima. Juristas “técnicos” rebatem esse argumento dizendo que o crime tem por vítima imediata o Estado e não o indivíduo concreto. Isso mesmo: numa lógica da incoerência casuísta, eles agora desconfiam da justiça para o indivíduo (vítima): vítima é o Estado e suas razões. Mas, não custa lembrar, houve um tempo em que a justiça era feita pelo próprio ofendido, como isso levava a exageros vingativos, o Estado encarregou-se da tarefa, para fazê-la de forma equilibrada e proporcional é verdade, mas, acima de tudo, para fazê-la. Quem perde o filho assassinado quer uma resposta que não beire ao deboche, tudo bem que ela seja equilibrada, não vingativa, mas que mostre ao autor do crime e seus possíveis seguidores que não valeu a pena o ato de barbárie. Sem isso, o sistema oficial perde a legitimidade e a vontade que dá em cada família enlutada é armar-se, para que tal não ocorra novamente (imagine a tragédia que seria!). O Estado tem que mostrar que é capaz garantir à sociedade que quem violenta os outros se dá mal. Não é difícil entender.

Dizer que não vale a pena baixar a maioridade porque o adolescente delinqüe pouco, também é um argumento tecnológico. Talvez alguns juristas tenham esquecido, mas não se responsabilizam pessoas criminalmente no atacado, apenas individualmente. Na essência da responsabilização criminal, não interessa saber se apenas um indivíduo em milhares comete tal ou qual tipo de crime, o que a lei tem é que achar uma resposta proporcional e ajustada aquele – ainda que único – ser concreto que cometeu o delito. Não se justifica o vácuo da lei pela raridade da conduta. Se fosse assim, seria despropositado que o Brasil tenha uma pena severa contra terroristas (quantos brasileiros temos sob tal rubrica?). E depois os números no Brasil não são tão delicados assim em prol dos menores. Se eles cometem apenas 5% dos crimes violentos contra pessoa em São Paulo, já produzem um número de vítimas em termos absolutos (há certa maldade em falar de vítimas de morte em porcentagens) surpreendente: só no último trimestre de 2006, matou-se, dolosamente, 1512 pessoas, tentou-se matar outras 1500 e se lesionou intencionalmente outras 50 mil. Dez, cinco ou mesmo um por cento disso deve ainda gerar uma quantidade de sofrimento difícil de diluir em estatísticas.

O que falta em ambos os lados do “a favor ou contra a diminuição da maioridade” é a capacidade de defendê-la para além dos argumentos tecnológicos, partindo para argumentos de princípios. Aos que se negam a baixá-la que digam o que há no garoto de 18 que negam veemente haver no de 17, além da convenção da lei, é claro. Já os que são a favor devem sê-lo por não verem essa diferença, por acharem que ela pode ser reavaliada, e não porque pensam que com isso salvarão a sociedade da barbárie adolescente. Enfim responsabilizar o garoto porque ele tem condições de ser responsabilizado, e não porque uma vez responsabilizado o mundo será salvo.

Assim, se baixar maioridade penal não serve para diminuir a criminalidade, se não serve para recuperar os presos, pode servir pelo menos para livrar temporariamente a sociedade de indivíduos nocivos, ainda que menores de 18 anos. É claro que isso pode ser atingido também aumentando o tempo de internamento dos menores infratores, passando, por exemplo, dos três anos de internamento para cinco, ou um pouco mais, sem tirá-los da proteção do ECA. O que não é possível é que em apenas três anos, esteja ou não recuperado, envergonhe-se ou vanglorie-se de ter barbarizado a vida de alguém, o autor de crimes brutais possa sair por aí dizendo: “minha ficha tá limpa.”
É claro que quando se fala em aumentar o tempo de internamento pela sistemática do ECA, ou de baixar a maioridade penal, é fundamental, não generalizar a ação. Tais medidas só são admissíveis quando a violência da conduta praticada pelo adolescente for contra pessoas, e não contra coisas e, muito menos, em se tratando de crimes envolvendo entorpecentes, como o de tráfico. Se vamos tornar a vida de adolescentes infratores mais difícil é porque o valor que por vezes ameaçam – a vida alheia – vale tanto quanto a deles próprios - e é bom que não precisem chegar aos 18 anos para serem lembrados disso.

Sandro Cesar Sell

3.6.08

Edukators: a banalização do mal

O filme Edukators, os educadores (2004), de Hans Weingartner, dá uma nova versão à velha questão ética acerca dos limites ao acúmulo de bens supérfluos num mundo de escassez. Pode-se possuir bens ilimitadamente desde que o meio empregado na sua obtenção seja legítimo? O fato de haver outras pessoas que não possuem sequer o mínimo existencial não deve ser considerado um problema moral do grande acumulador, mas apenas um resultado mecânico das regras do sistema? E mais: quais os meios legítimos de enriquecimento: Trabalho? Talento? Sorte? Herança? Se o enriquecimento resultar de tais meios pode-se ser dono de tudo e ainda merecer aplausos por isso? Ou as regras do jogo de acumulação capitalista não passam de maneiras de ocultar a ganância desmedida e criminosa de alguns?
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Edukators não pretende responder essas questões, mas apresenta uma versão vívida e apaixonada de todas elas. No filme, Jule, uma jovem garçonete, vive arrasada por ter que arcar com uma conta de quase 100 mil euros, em favor do ricaço Hardenberg, cuja Mercedes ela, involuntariamente, destruiu num banal acidente de trânsito. Para ele, a conta representa muito pouco; para ela, a dívida a impede de pagar o aluguel da casa em que mora, de se divertir, ou de atingir seu sonho de ser professora. Ela precisa de oito anos de trabalho duro para saldar a dívida contraída em cinco segundos de distração. Pelas regras do jogo, Jule deve transferir dinheiro sacrificando seu essencial para garantir o supérfluo de sua “vítima”. Há justiça nisso?Hardenberg tem a lei a seu favor: Dirigia calmamente à frente de Jule, que não o viu frear e por isso entrou na traseira da Mercedes. Tudo bem, o tribunal reconheceu que ela foi a causadora. Mas a causadora de quê? De um acidente de carros? Não, se fosse isso, ela até que poderia arcar com as despesas. Ela causou foi um acidente em uma Mercedes! Não entendeu a diferença? Então, parabéns: você não teve o azar de Jule.
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A questão primeira que se coloca é: quem paga o custo-ostentação daquele que decide comprar um carro, digamos, 10 vezes mais caro do que a média dos que circulam nas estradas? Eu? Você? Jule?A decisão de comprar a Mercedes foi só de Hardenberg, mas os custos de sua compra oneram direta ou indiretamente muitos outros. É sabido que quando o número de automóveis de luxo que circula numa cidade cresce, o valor que os demais precisam desembolsar para segurarem seus próprios e humildes carros, em face de prejuízos contra terceiros, também aumenta.
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Enquanto Hardenberg curte sua jóia sobre rodas, os demais, sem curti-la, transformam em pagamento às seguradoras o temor que têm de estarem no lugar de Jule. Por que ela não fora obrigada apenas a ressarcir um carro normal (avaliado pela média dos automóveis em circulação)? Por que ela teve que indenizar “aquele” carro? Porque o sistema em que ela vive pressupõe uma igualdade abstrata entre todos os envolvidos num acidente, qualquer um poderia ser o dono daquela Mercedes, então bateu, levou. Na prática, isso representa um acréscimo à liberdade dos mais ricos: estes podem ter menos prudência ao dirigir, porque seus seguros são bons e o custo comparativo do veículo alheio é irrisório, enquanto os mais pobres assustam-se só com a possibilidade de, em dia de chuva e neblina, terem pela frente a máquina dos sonhos de Hardenberg.
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Jule está nessa situação quando descobre que seu namorado (Peter) e seu amigo (Jan) são os edukators: jovens que invadem a casa de milionários, enquanto estes estão ausentes, desarrumam os móveis e deixam bilhetes como: “Você tem dinheiro demais” ou “Seus dias de fartura estão com os dias contados”. Com isso eles pretendem abalar a noção de segurança dos muito ricos, mostrando que sua ostentação está sob vigilância. Sabendo disso, Jule insiste que Jan visite com ela a casa de Hardenberg na condição de edukators. Relutante, Jan acaba cedendo. Resultado: ela esquece o celular na casa do ricaço. Quando voltam para pegá-lo, Hardenberg os encontra e reconhece Jule. O que fazer? Com a ajuda de Peter, seqüestram o dono da casa. Tudo o que os três edukators queriam era se livrar da polícia, mas como? Matar o ricaço, nem pensar. Eles não são assassinos. Nem tampouco querem pedir resgate, como se fossem criminosos seqüestradores.
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O que fazer? Levam-no para uma casa de campo onde esperam por alguma idéia que os tire da enrascada. Ter que passar dias com aquele sujeito deve ser asqueroso. Mas, ao contrário, e aí está uma situação que nossos edukators não contavam: o malvado Hardenberg se mostra gentil e compreensivo. Joga cartas, conversa e até fuma maconha com seus seqüestradores. É que na sua Mercedes, ou na sua mansão, Hardenberg representava o próprio mal, a versão sobre pernas da raça de exploradores dos mais pobres. Mas ali, abatido e gentil ele parecia uma pessoa comum. Isso coloca os edukators em situação semelhante à vivenciada pela filósofa Hannah Arendt diante de Eichmann. Quando este, que fora um dos arquitetos do extermínio em massa dos judeus, foi à julgamento, esperava-se que o tribunal revelasse um monstro, um facínora, mas o que foi revelado? Uma pessoa terrivelmente comum, um funcionariozinho banal e obstinado, que gostava de cumprir bem o seu serviço, fosse carimbando papéis ou eliminado pessoas. Era triste descobrir que o malvado Eichmann não era sequer um demônio, mas apenas um maldito cumpridor de regras, um burocrata da morte, que não agia por um ódio visceral aos judeus, mas com indiferença.
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Tanto Arendt, diante de Eichmann, quanto os edukators diante de Hardenberg descobriram que o problema não era simplesmente de maldade, mas de indiferença em relação à prática do mal. Hardenberg não parecia odiar os mais pobres, ele simplesmente não se importava com eles. É assim que quando Jule pergunta se ele sabia o que a dívida do carro representava para a vida dela, ele respondeu com honesta convicção: “Eu de fato nem dei importância a isso. Entreguei o caso ao meu advogado e só”.Em outros momentos, o personagem do seqüestrado representa uma defesa eloqüente dos axiomas do jogo capitalista, de exploração sem culpa. Estes axiomas são: 1. Todos têm as mesmas oportunidades; 2. alguns aproveitam tais oportunidades melhor do que outros, fazendo melhor uso de sua inteligência, capacidade de trabalho e senso de oportunidade; 3. Esse uso diferenciado de oportunidades iguais gera a desigualdade em favor dos mais talentosos; 4. Mas também beneficia os demais, porque é recompensando regiamente os mais talentosos que se os mantêm motivados a criarem coisas, como tecnologia, medicamentos ou automóveis Mercedes que, em tese, servirão a todos; 5. Os mais pobres são, sobretudo, vítimas de si mesmos, por não serem competitivos à altura do jogo capitalista; 6. Não há culpados nem inocentes, apenas ganhadores e perdedores, como em qualquer outro jogo. A transcrição do diálogo abaixo, entre os edukators e Hardenberg, é esclarecedora:

Jule: Chá?
Hardenberg: Obrigado.
Jan: Quanto é que você ganha por ano?
Hardenberg: 200 mil euros, mais ou menos.
Jule: 3,4 milhões, segundo a revista...
Jan: Não se sente culpado? Destruir a vida dela por um carro que você pode trocar a cada mês? Por quê?
Hardenberg: Admito, eu deveria ter prestado mais atenção aos demais envolvidos... Eu estava estressado, lamento muito.
Jule: Quantas horas por dia você trabalha?
Hardenberg: Treze, quatorze horas, até mais.
Jule: E o que você faz com tanto dinheiro? Acumula coisas? Coisas grandes e caras? Carros, iates, mansões... um monte de coisas para poder dizer “eu sou o macho alfa”...Eu não vejo outra razão. Você não tem nem tempo para curtir o seu iate. E por que você sempre quer mais?
Hardenberg. Vivemos numa democracia. Não devo explicações sobre os meus bens, eu paguei por eles.
Jan: Errado. Vivemos numa ditadura capitalista.
Hardenberg. É mesmo?
Jan: Você roubou tudo o que possui.
Hardenberg. Eu posso bancar muito mais coisas porque trabalho mais, eu tive as idéias certas na hora certa, além disso eu não sou o único que aproveitou as chances... e na vida todos têm chances iguais, a verdade é essa.
Jule: Ele daria um ótimo político, não é? No sudeste da Ásia um monte de gente trabalha até 14 horas por dia e eles não têm mansões, ganham 30 euros por mês... também podem ter boas idéias, mas eles não podem nem pagar o ônibus para irem à cidade vizinha.
Hardenberg: Desculpe por eu não ter nascido na Ásia
Jule: Mas ainda pode tornar suportável a vida lá. O Primeiro Mundo perdoaria a dívida do Terceiro Mundo, é só 0,01% do nosso PIB!
Hardenberg: Seria o colapso do sistema financeiro mundial.
Jule: Quer que eles fiquem pobres para poder ter controle sobre eles, forçá-los a vender os seus produtos a preços ridículos...
Hardenberg: Como é que você sabe?
Jan: Resposta simples: você não cancelou a dívida da Jule.
Hardenberg: Isso é absurdo!
Jan: Não, é a regra básica do sistema: chupar todos até o bagaço. Pra que não possam mais reagir.
Hardenberg. Não é assim... Claro que precisamos melhorar as coisas...mas o sistema não vai mudar.
Jan: Por que não?
Hardenberg: Porque é da natureza humana querer ser mais que os demais... todo grupo logo elege um líder e a maioria só fica feliz quando compra uma coisa nova.
Jan: Feliz? Acha que eles são felizes, Hardenberg? Abra os olhos. Sai do carro da sua empresa e ande nas ruas. Eles parecem felizes ou mais assustados? Veja sua sala de estar, todos estão grudados naquela TV, ouvindo zumbis chiques falando de uma felicidade perdida. Dirija pela cidade. Verá a imundice, a superpopulação. As massas em lojas de departamentos subindo e descendo escadas-rolantes feito robôs... Ninguém conhece ninguém. Acham que a felicidade está a seu alcance, mas ela é inalcançável. Porque você a roubou e sabe muito bem disso.... Mas tenho uma notícia para você, executivo: o sistema superaqueceu: somos só os precursores, a sua era está para acabar. Enquanto você surfa na tecnologia os outros sentem ódio. Como as crianças das favelas vendo filmes de ação americanos. Isso é só o começo, nós vamos ver. Há mais casos de insanidade, serial killers, almas destruídas, violência gratuita. Não pode sedar todos eles com games e shoppings... e os antidepressivos não vão funcionar para sempre... o povo tá cheio desse seu sistema maldito e hipócrita.
Hardenberg: Tá bom. Admito que há alguma verdade no que disse, mas sou o bode expiatório errado. Eu jogo o jogo. Mas não fui eu que fiz as regras desse jogo.Peter: Não importa quem inventou a arma, só quem puxa o gatilho.
Jule: Não é tão simples e você não pode se eximir.

No diálogo, Hardenberg representa não só jogador capitalista, mas o sujeito que acredita nas regras do jogo: trabalhou, aproveitou oportunidades, triunfou e agora tem o direito de curtir. E representando a alma mercantil do capitalismo, ele não é contra nada: revoluções, contracultura, oposições, desde que seus símbolos, roupas e armas possam ser vendidos em shoppings centers. Em momento sentimental, ele até relembra que também já sonhou com um mundo diferente: “Há 30 anos, devo confessar que teríamos adorado pegar um magnata como eu, e hoje estou aqui... É curioso. Não pretendo bajular vocês, não acho certo o que estão fazendo comigo, mas o seu idealismo tem o meu respeito.”
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Da mesma forma que as grandes gravadoras contratam artistas de rap para “afrontar” a sociedade, que grifes internacionais colocam pobres na passarela, para mostrar que a moda têm sensibilidade social, ou que o Fantástico mostra o quanto de charme há nas meninas da favela, Hardenberg respeita o idealismo que anima as críticas a seu modo de vida. Prova cabal de que, sob o capitalismo, não há ideal que não tenha lugar, desde que se dispa de todo radicalismo (de sua raiz, de sua essência) e transforme-se numa versão inofensiva, boutiquizada e estetizada, para ajudar a diversificar as vitrines e os gostos.
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Mas o que fazer com Hardenberg? É lícito matar o tirano? Eis uma pergunta clássica no mundo da ética. Maquiavel apresentava uma solução utilitarista à questão: matar o tirano pode ser uma boa solução se for essa a condição de manutenção da paz do Estado e da segurança de seu povo. Portanto, matar apenas na medida em que os benefícios superem os malefícios da legitimação da prática do assassínio de tiranos. Isso talvez valesse à época de Maquiavel, em que monarcas, sentados em tronos, de fato governavam. Mas, no sistema capitalista atual, quem é o tirano? Se Hardenberg for morto há algum abalo ao sistema? Não. Assim como o sistema se mantém intacto se forem mortos Bill Gates, Antônio Ermírio de Moraes ou George Bush.
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Como ensinou Foucault, a característica básica do poder na modernidade é que ele saiu do palco: ele não está mais no trono, onde poderia ser facilmente alvejado, mas capilarizado, distribuído por praticamente todos os lugares e pessoas da sociedade. O filósofo francês Felix Guatarri chegava a dizer que até nosso inconsciente havia se tornado uma espécie de terminal de computador capitalista, somos programados para sentirmos e processamos informações no ritmo do mercado. No capitalismo, o poder é em rede: derrube-se um líder e a rede se refaz com uma rapidez espantosa. Isso porque, de certa forma, somos todos Hardenbergs, Gattes ou Bushs, podemos até variar um pouquinho no estilo, mas no essencial estamos todos capacitados a assumir o lugar do tirano.
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Então o que fazer? Difícil saber. No filme, os garotos optaram por devolver seu prisioneiro ao lar. E este, em sinal de agradecimento, não só promete não comunicar o fato a polícia, como perdoa a dívida de Jule. Parece que a educação na marra funcionara, Hardenberg caíra em si, deixaria de ser o porco capitalista em que a vida – sempre sem culpa pessoal - o convertera. No filme chega-se até a imaginar um inexistente abraço entre ele e Jule, seguido de um aperto na mão dos rapazes. Todos apresentam aquela cara de quem aprendeu uma grande lição.
Os edukators entram no carro e o ricaço na mansão. Silêncio e reflexão.Na manhã seguinte, já com a “cabeça no lugar”, o executivo volta à velha rotina mental. A polícia bate à porta dos edukators que, sabiamente descrentes na bondade humana, já haviam deixado o país. Na parede do prédio em que moravam um recado a Hardenberg, não um xingamento, não uma afronta, apenas um bilhete profético e constatador: “Certas pessoas nunca mudam”. Bilhete sem ódio, sem revanchismo, apenas com indiferença. E é dessa forma que os edukators mostram que aprenderam sua mais dura lição, a mesma de Hannah Arendt: o mal na atualidade não é nem grandioso, nem sequer dado a perversidades, é apenas daninho, ordinário, repetitivo e quase sem culpa.


Ficha Técnica do FilmeTítulo Original: Die Fetten Jahre Sind Vorbei Gênero: DramaTempo de Duração: 126 minutosAno de Lançamento (Alemanha): 2004Site Oficial: www.theedukators.comEstúdio: Y3 Film / arte / Coop 99 / Südwestdeutscher Rundfunk Distribuição: Celluloid Dreams / IFC Films / LumièreDireção: Hans Weingartner Roteiro: Katharina Held e Hans Weintgartner Produção: Antonin Svoboda e Hans Weintgartner Música: Andreas Wodraschke Fotografia: Daniela Knapp e Matthias SchellenbergEdição: Dirk Oetelshoven e Andreas WodraschkeElencoDaniel Brühl (Jan)Julia Jentsch (Jule)Stipe Erceg (Peter)Burghart Klaubner (Hardenberg)Claudio Caolo (Paolo)Laura SchmidtSebastian Butz Petra Zieser Peer Martiny
Sandro Cesar Sell

24.5.08

Em um momento de necessidade

A propósito, você sabe como se faz foie-gras?



- A entrada? O chef recomendou foie-gras. Eu já falei com a importadora e eles não têm o Château Montus Cuvee Prestige da safra que você recomendou, querido. Eu sei que o sommelier insistiu, peça pra ele ligar pra lá e ver o que pode ser encontrado a tempo. Meu amor, o seu assessor pode esperar mais uns minutos, não vai morrer por causa disso e esse jantar está me deixando maluca. Quem é que nós vamos colocar ao lado do Senador? A Júlia? De jeito nenhum, ela é muito inconveniente... Não, eu não vou contratar um cerimonial, não confio nessa gente pra uma noite tão importante. É o futuro da nossa filha que está em jogo.

Lourdes quase não escutava a enxurrada de palavras da patroa, absorta que estava em seu drama particular. Assim que Dona Luciana desligou o telefone, falou entristecida:

- Dona Luciana, tenho que ir embora hoje para Jequié. Papai morreu ontem, mamãe está de cama. O Joílson me deixou semana passada e recebi uma ordem de despejo...
- Lourdes, você é uma ingrata! Não acredito que você vai me deixar na mão logo agora, que estou em um momento de necessidade!




[Esse conto é do Paulo César Nascimento, amigo de longa data e autor premiado, inclusive na Europa. Seu Sutis indecências e outros encantamentos é obra-prima, mas não dessas que, pela grana envolvida e prestígio dos editores, estão na lista dos mais vendidos (e lá permanecerão até que a grana se supere em outra biografia de um ex-BBB). A obra de Paulo, não é de boutique, mas coisa de antiquário ou de brechó. É uma daquelas felizes raridades, quase incógnitas, que o leitor incrédulo acha, folheia ao acaso, compra pelo preço e, assim que lê, culpa-se só pelo vacilo que quase o levou a não comprá-lo.]

17.5.08

A praga da hipocrisia brasileira


Protesto "asqueroso" contra a visita de Bush ao Brasil. O que seria de nós se não fosse o guarda...

O Brasil é o país com o menor biquíni do mundo, mas é também o lugar onde – pasmem! – ainda se discute se o topless é ou não conduta criminosa. A questão é relevante. Quem ainda não teve sua moral assaltada na praia pela exibição de um desses pares de indecência corpórea? Quem ainda não foi vítima de uma quadrilha de jovens siliconadas que provocaram um arrastão de olhares, enquanto tudo o que queríamos era nosso sagrado lugar ao sol? Quem nos defenderá dessas moças exibidas? “Senhor Deus dos desgraçados, dizei-me Vós, Senhor Deus, se eu deliro ou se é verdade tanto horror perante os céus...”
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Enquanto a moça está praticamente nua na parte de baixo, alguns policiais, promotores e juízes estão assustados com a nudez da parte de cima. Se os mesmos seios estivessem à mostra publicamente na função tradicional da mulher – amamentar a criança – esses indivíduos os achariam lindos, seriam capazes até de chorar de emoção. Então, leitora exibida, quando for fazer topless, leve na bolsa de praia uma criança emprestada, para todos os efeitos, seus seios estão ali para alimento e não para exposição lasciva. Garanto que o irritado policial, neste caso, até carregará sua cadeira de praia. Uma segunda alternativa: ao ser flagrada pelo guardião da moral, simule um auto-exame de mama. Diga que é um trabalho social lá da faculdade: mostrar às outras mulheres como se previne o câncer. O policial, neste caso, não só carregará a cadeira, como enterrará seu guarda-sol. O problema, como você notou, não é o fato de os seios estarem nus na praia, e sim o fato de não estarem fazendo nada de útil naquele momento...
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Conta-se que um dos “anões do orçamento” (aqueles deputados que nos roubavam - coisa do passado, é claro!), levantou-se num teatro, vaiando os atores da peça porque apareciam nus. Na visão dele, isso sim era imoralidade. Onde já se viu mostrar-se pelado num espetáculo, só para adultos, às 22 horas da noite! De fato, para isso não há desculpa. Roubar o dinheiro público, tudo bem, é um esporte nacional de elite, assim como o pólo e as corridas de cavalo. É quase um costume jurídico, aquela prática reiterada – ainda que contra a lei – que é amplamente praticada e com a opinio jures necessitatis (a convicção íntima de que se deve fazê-la). Mas tirar a roupa num espetáculo, isso já é abuso de direito, é ato obsceno. Cadê o delegado?!
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O Brasil é um país contra o aborto. Até mesmo no caso do feto anencefálico (feto sem cérebro), a maioria moral quer forçar as grávidas de fetos, que jamais sobreviverão ao parto, a carregá-los durante nove meses na barriga, apenas para satisfazer as convicções dos carolas de plantão. Cadê o direito à liberdade de crença? Se a sua religião diz que ali há uma alma, tudo bem, eu respeito, carregue sua gravidez anencefálica até o fim. Mas não me force a fazer o mesmo apenas para respeitar sua visão religiosa de ser humano. Isso é violência, é imposição de credo, inadmissível num Estado laico. Estado o quê? Desculpem, agora eu me passei, essa mania de ler a Constituição anda me confundindo as idéias... Estado laico... ridículo... Se fosse só no caso de aborto anencefálico, tudo bem. Mas este país tão contra o aborto (nos discursos) é também, segundo vários estudos, aquele que mais pratica abortos no mundo. Desde que seja para “limpar a honra” da família, cuja filha engravidou fora do tempo, vale à pena falar com o médico amigo. Como pai, ele entenderá o sofrimento vivido e como aquela gravidez atrapalhará os estudos e a ida a Disney da mocinha de futuro. Aos pobres, que não tem médico de família, restam as agulhas de tricô e a morte, caso alguma complicação haja no aborto amador, já que se procurarem um hospital, o delegado é quem preencherá o prontuário. É fácil às elites serem contra o aborto no Brasil: se precisarem, elas o obterão de forma discreta e clinicamente impecável.
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A tragédia legal brasileira é justamente essa: só os pobres consultam a lei antes de fazer algo. Os ricos consultam seu bolso. Como disse o milionário americano ao seu advogado: “Eu não estou lhe perguntando o que a lei me deixa fazer. Estou lhe mandando ajeitar as coisas na lei para que eu possa fazer o que eu quero.” Claro, patrão. Só mais uma pergunta: a lei que o senhor quer é mal passada ou ao ponto? O Brasil é também contrário à pena de morte. A maioria da população se diz contra. Acreditam que a pena de morte é ineficaz para baixar a criminalidade (e de fato é). Dizem também que demora muito esse tal de corredor da morte (mas para isso, se eu bem conheço o Brasil, ligeirinho se inventaria uma esdrúxula antecipação de tutela...), dizem, por fim, que ela é desumana. De fato, somos um país humaníssimo! Não sei como a ONU ainda não nos adotou como modelo de humanidade para o mundo... Mas, quando a polícia mata atrás do camburão – sem direito à defesa, que dirá ao devido processo legal -, quando a polícia invade um Carandiru e mata 111 e outras ações de “assepsia social”, a maior parte da população, consultada pelos jornais, acredita que são ações corretas do Estado contra a criminalidade. Em suma, somos contra a pena de morte norte-americana, com essa estranha mania de deixar o acusado se defender, mas somos favoráveis a essa pena de morte liminar, administrativa, auto-executável pelo policial. Camburão da morte, tudo bem, mas corredor da morte, isso de fato é desumano.
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As contradições poderiam se alongar ao infinito. Essa hipocrisia atávica aqui reinante já foi atribuída à nossa herança latina. O historiador Carlos Fuentes lembra que enquanto na América colonizada pelos ingleses era tudo preto no branco, na América luso-hispânica era tudo no cinza. Os cowboys do velho oeste matavam índios, enforcavam bruxas e se achavam o máximo por isso. Os puritanos anglo-saxões podiam ser bandidos, mas não eram hipócritas. Matavam a cobra e exibiam o pau: “Matamos esses selvagens; enforcamos esses negros; cumprimos nosso dever”. Já nas terras latinas, matamos tantos índios quanto, surramos e assassinamos escravos negros aos milhares, mas, - que grande ajuda! - sempre tivemos muito complexo de ter feito essas coisas. A Igreja, o trono espanhol e o português tinham dúvidas sobre o que fazer com os “selvagens” (muitos os defendiam), o que fazer com os escravos e suas religiões (quem sabe liberá-los). Na prática, fomos um dos últimos países do mundo a libertar os escravos e – ah, como é típico de nós – o primeiro a se autoproclamar uma democracia racial e a dizer que não tínhamos qualquer tipo de preconceito!
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Ah, se todos fossem iguais a você, Brasil. Não existiria a verdade, verdade que ninguém vê, mas como se falaria bonito...

14.5.08

Paixão e razão

Max Weber: O Protestantismo conseguiu refrear a paixão pelo ouro, não por proibi-la (opção católica), mas ao submetê-la a uma idéia racional de missão: ser bem sucedido na Terra e moderado nos gastos seria agora uma prova de que o crente estava cumprindo o chamado (a vocação) de Deus. Não sem motivo, Weber assinalou que os países protestantes estavam entre os mais ricos.



O cavalo e seu cocheiro

Como possível guia da existência, os seres humanos possuem o atributo da razão, essa capacidade de orientar sua conduta de forma planejada, calculada e compreensivelmente adequada aos fins a que se propõem.

A posse da razão nos sugere a idéia de que, com prudência e discernimento, podemos controlar as situações em que nos encontramos, garantindo que delas surjam às melhores resultantes possíveis.

Na imagem platônica, a razão é o experiente cocheiro a guiar o xucro cavalo dos impulsos imediatistas. Por isso é que se pode dizer que uma vida racionalmente guiada é uma vida protegida daquela parte do infortúnio humano cuja causa só podemos atribuir a nós próprios. Nesse sentido, a razão é uma defesa contra o acaso preguiçoso, daqueles que se dizem vítimas das circunstâncias quando o que lhes trouxe a ruína foi uma simples falta de planejamento e autocontrole.

Quem ainda não foi exortado a “ser racional”?, a agir “com racionalidade?”. É claro que o fato de precisarmos ser mandados a agir dessa forma já indica que o uso da razão não é tão natural quanto se supõe. Pela freqüência com que complicamos nossa existência podemos até supor que a razão é de utilização apenas excepcional em nossas vidas. No cotidiano, os impulsos mais imediatos tendem a prevalecer sobre os planejamentos racionais, o cavalo comanda o cocheiro. É assim que, em febres de consumismo, as pessoas levam para casa o que não conseguirão pagar; embriagam-se e dirigem, confiando na imagem do santo que penduraram no espelho do carro; têm relações sexuais sem proteção, acreditando que “o que tiver que ser será”. Ao mesmo tempo, falta-lhes força para seguir planos racionalmente traçados: concluir o curso de línguas, manter a dieta ou ser mais paciente. Parece que, ao final das contas, a razão serve mesmo é para fazer os indivíduos sentirem-se culpados por não conseguirem ser aquilo que, em momentos de extrema calmaria do cavalo, o cocheiro lhes propôs.

A razão fracassa com tanta freqüência porque não é nosso único guia. O ser humano é um ser passional tanto quanto é um ser racional. Se a razão pretende nos conduzir para as melhores resultantes de vida possíveis, as paixões nos arrastam para caminhos que a própria razão desconhece. Por paixões estamos aqui nos referindo aos diversos tipos de obstinações (seja de pensamento, sentimento ou conduta) que nos atraem para algo, com uma pressa, maneira ou intensidade desautorizada pela razão. A paixão é, sobretudo, produtora de parcialidade, exagera na atenção que concede a um único ponto deixando os outros a descoberto, motivo pelo qual ela é tão freqüentemente associada a uma espécie de vício. Se a complexidade é a lei da vida, concentrar-se em demasia no objeto da paixão é viver de forma desequilibrada e perigosa. Sim, perigosa, porque em desaparecendo esse objeto de paixão, desaparecerá também o sentido da existência do apaixonado.

Ébrios sem bebida, dependentes sem droga, amantes sem amados, consumistas sem dinheiro, exemplos de vida em desespero.

Com um destaque todo especial ao efeito equilibrador da razão sobre a vida de cada um, os moralistas sociais sempre temeram as paixões, por acreditarem que elas são os grandes destruidores do homem enquanto ser colaborativo da sociedade. Teme-se que, sob o império da paixão, o trabalhador deixe de ser obediente ao patrão; o casto, de ser obediente aos seus votos; e o soldado, de ser obediente à pátria, pois que o apaixonado só reconhece um senhor, seu objeto passional. Daí o ancestral controle social das fontes habituais das paixões: sexo, drogas e poder. Esses três elementos não têm autorização para circularem livremente, mas apenas quando imersos em rituais que mostrem a excepcionalidade de seu emprego.

É assim que o sexo deve ser feito às escondidas, de preferência a noite, sendo considerado grosseiro perguntar as quantas anda a vida sexual alheia ou exibir suas peripécias de alcova. E duas pessoas correriam maior risco de serem vítimas de revolta popular se estivessem em uma praça praticando sexo do que se estivessem perigosamente duelando entre si. Pois o duelo não é tão contagioso quanto o sexo. O controle sobre o sexo é o reflexo do medo social de que ele seja reconhecido como tão bom que ocupe tempo demasiado das pessoas, que, então deixariam de trabalhar, estudar e contribuir socialmente. A mesma interdição que hoje sofrem as drogas, sofreu a prática da masturbação: prazeres que não trazem benefícios sociais e são de fácil contágio fazem tremer as bases da sociedade. A imagem de que todo drogado é um delinqüente em potencial se equivale, em simplismo, à imagem feita antigamente do adolescente masturbador como um degenerado. Prazeres poderosos só sob o controle social ou em momentos aceitos de quebra das regras sociais: só há carnaval porque há uma quarta-feira-de-cinzas, já previamente estipulada.


Doentes de paixão

Entre os gregos, as paixões foram vistas como algo de que se sofria, um padecimento moral e físico. É assim que se compreende que da mesma palavra grega, “phatos”, haja derivado os vocábulos passional e patologia. Paixão não se tem; paixão se sofre. Em termos religiosos, a paixão era uma espécie de possessão divina, uma forma de os jocosos deuses do Olimpo perturbarem a vida dos pobres mortais. Quem nunca soube da vida toda certinha de alguém que ao defrontar-se com uma enorme paixão caiu como um castelo de cartas? E que esse mesmo alguém, anos mais tarde, refere-se ao período em que se “libertou” daquela paixão, como o período em que se “curou”? Enquanto ele estava “doente”, nenhum dos apelos de seus amigos à razão eram suficientes. A paixão seria como um daqueles vírus sem vacina ou remédio: ao contrai-lo tudo o que se pode fazer é esperar o fim natural de seu ciclo, pois que o uso da razão em seu combate é inócuo.

O cristianismo herdou essa má vontade grega para com as paixões. Passou a considerá-las vícios de caráter, associando-as a pecados, num rol que ia da luxúria à gula. Para o cristão, uma vida racional seria aquela que, mediante a eliminação das paixões, levasse o homem a Deus. Jesus havia dado a fórmula do cálculo de uma vida racional por excelência: “De que adianta ao homem ganhar o mundo e perder a sua alma?” Aquele que acreditava em Deus e não extirpava suas paixões fazia o pior negócio do mundo: trocaria a eternidade bem-aventurada, por uns poucos anos de sucesso entre humanos. Daí, o mestre do Evangelho poder dizer com grande convicção “Perdoai-vos, eles não sabem o que fazem”. De fato, só quem não conhecesse as regras do novo jogo (que era, sobretudo, a de um cálculo de rendimentos celestes), ou fosse um completo estúpido, cederia às paixões, comprometendo os dividendos eternos de uma vida regrada.

Com relação à paixão relacionada ao sexo e ao amor, a posição cristã foi incisiva. Os santos eram castos, ou assim se tornavam ao serem convertidos, como no caso de Santo Agostinho. Melhor seria que se imitassem os santos, mas como isso não era possível (sobretudo em termos demográficos), um matrimônio estável era a solução. Se as paixões amorosas se caracterizam pela inconstância, pela troca do objeto de afeto, devido ao esgotamento das forças ou da frustração das inflacionadas expectativas dos amantes, o casamento cristão era o inverso dessa tendência: indissolúvel, exclusivista e cercado de inúmeros deveres que arrefeceriam qualquer paixão exacerbada. Se na Idade Antiga e Média, o casar-se por amor ou desejo recíproco já não era a regra, o casamento aos moldes cristãos estava aí para garantir que, quando tal ocorresse, esse “acidente” seria logo corrigido pelo dever da moderação sexual, da procriação em larga escala e pela necessidade de vigiar não apenas ações e palavras, mas o próprio pensamento. O casamento cristão é, sobretudo, uma tecnologia antipaixão.

Embora não seja um autor clerical, o grande filósofo do cotidiano Michel de Montaigne compartilhava essa idéia de casamento como o avesso de paixões. Nos seus Ensaios, de 1580, Dizia ele: “Não sei de matrimônios que mais cedo falhem e desmoronem do que os realizados à base da beleza e dos desejos amorosos; existem fundamentos mais sólidos e constantes e atilada prudência; o arroubo impaciente de nada vale... Um bom casamento, caso haja, deve recusar a companhia das condições do amor e ater-se às da amizade.

Caça a donzela

Enquanto no mercado oficial das condutas, a paixão tinha circulação proibida, no mercado paralelo valia qualquer coisa para possui-la. É assim, que em plena Idade Média, vemos o “ressurgimento” da paixão, na sua versão galante. Na medida em que casamento cristão exortava a renúncia, a fidelidade, a indissolubilidade, o cavaleiro medieval tornava-se o símbolo da paixão enquanto arte. Sua astúcia em cortejar damas proibidas, arriscando a vida por amores inconseqüentes, era uma virtude pagã na mesma medida em que era um vício cristão. Nas cortes, a hipocrisia foi a fórmula para lidar com essa dualidade: cerimônias de casamento cada vez mais pomposas, com a multiplicação das testemunhas do solene ato, disfarçavam a circulação cada vez mais corrente da infidelidade elevada à categoria de arte.

Séculos mais tarde, indignados com o racionalidade rígida do Iluminismo, membros do movimento romântico converteram a paixão no próprio sentido da vida. Alguns acreditam que só se vive bem quando se vive de forma apaixonada. Há, então, a criação de uma estética do sofrimento passional. As paixões nos levam à ruína, é verdade, mas a paixão, em particular a paixão amorosa, nos leva a um sofrimento que redime. A aventura de seguir seus caminhos tortuosos, o risco de ser devorado pelos dragões que a protegem, a convicção de que viver bem é descobrir uma paixão pela qual vale a pena viver ou morrer, tudo isso daria à mísera existência humana uma experiência de grandiosidade. Sob o desespero da razão, a paixão amorosa tornava-se, assim, a forma sublime do sofrimento humano, em síntese: o único que valia a pena.

Isso fica evidente nos exageros românticos de Álvares de Azevedo (1831-1852), no poema Amor:

Amemos!
Quero de amor
Viver no teu coração!
Sofrer e amar essa dor
Que desmaia de paixão!

Na tu'alma, em teus encantos
E na tua palidez
E nos teus ardentes prantos Suspirar de languidez!

Quero em teus lábio beber
Os teus amores do céu,
Quero em teu seio morrer
No enlevo do seio teu! Quero viver d'esperança,
Quero tremer e sentir!
Na tua cheirosa trança Quero sonhar e dormir!

Vem, anjo, minha donzela, Minha'alma, meu coração!
Que noite, que noite bela! Como é doce a viração!

E entre os suspiros do vento
Da noite ao mole frescor,
Quero viver um momento,
Morrer contigo de amor!

Paixão e lucro
E as outras paixões, pela glória pessoal, pela riqueza, pelo poder? No geral, continuavam a receber a qualificação de condutas viciosas, indesejáveis, vis, o oposto da razão. Mas não por muito tempo. Numa verdadeira mudança de paradigma, começou a surgir por volta do século XVII um termo tido como o motivador por excelência da conduta humana: o interesse próprio. Formado por um amálgama de razão (de perseguir algo de forma planejada) com paixão (de querer algo obstinadamente), os interesses seriam logo louvados como o guia mais sensato da existência humana. O problema não estava, então, nas paixões, mas na forma irracional de guiá-las. Aceitou-se, então, que as paixões davam o impulso necessário ao progresso da vida humana (Hegel achava que uma vida sem paixão era uma vida imobilizada), mas justamente por serem de natureza impulsiva, as paixões tendiam a sugerir caminhos ruinosos para a sua obtenção, e era por isso que precisavam ser guiadas pela razão: deixe que a paixão lhe dê o objeto de afeto (dinheiro, mulheres, glória), mas transfira à razão o modo de conquistá-los e, só assim, a fortuna lhe será estável.

Em suma: nós não podemos ser guiados apenas pela razão (pois somos passionais), mas também não podemos ser guiados sem ela: descubra sua combinação ideal de paixão e razão (de interesse) e seja bem-sucedido.


Max Weber
Max Weber, na sua obra mais famosa (A Ética protestante e o espírito do capitalismo) enxergou no capitalista moderno essa junção venturosa de paixão e razão, de interesse, que o levava a acumular riquezas de forma segura e a gasta-la de forma excessivamente prudente. O capitalista queria mais e mais, só que não como seu antecessor, o aventureiro do ouro, o pirata arruaceiro, o desbravador delinqüente. Se estes conquistavam de forma espetacular e esporádica (pilhagens, pirataria, caça a tesouros), e gastavam de forma mais espetacular ainda (banquetes, bebedeiras e luxúria), o capitalista racional conquistava com método (investimentos contínuos, calculados) e gastava com excessiva discrição e prudência, já que ostentar - sobretudo entre os protestantes (os novos ricos da modernidade), seria prova cabal de um afastamento de Deus e de uma queda nas paixões, no mal sentido do termo.

O homem como ele é

O conceito de interesse nasceu da constatação, sobretudo a partir de Maquiavel (séc. XVI), de que o homem é um ser mesquinho, egoísta, passional e que sempre o será. Por mais que a Igreja exortasse a humanidade a ser boa, não haveria jeito, o homem jamais superaria sua natureza. Ele era como aquele escorpião, da fábula do lago, que após implorar que o sapo o atravessasse no rio caudaloso - sob a promessa de que não o envenenaria -, ainda no meio do trajeto pica o gentil anfíbio, que, moribundo balbucia a seu passageiro: “Grande lucro! Agora eu morrerei envenenado e você afogado”. Ao que o escorpião teria resignadamente respondido: “Sinto muito, meu amigo, mas não posso trair minha natureza”.

Por mais que o homem procurasse imitar Cristo em sua pureza (exortação católica), ele fracassaria: o veneno das paixões lhe é sempre superior. Se o cristianismo queria algo da humanidade teria que se render a essa constatação, como fez o protestantismo com a questão do lucro: ao invés de proibi-lo (como fez o catolicismo com a usura), apenas o regrou. Não havia como deixar o escorpião humano menos venenoso, apenas como moderar a intensidade de sua picada.

Um vício, como o do lucro, só pode ser controlado por outro vício, como o do trabalho obstinado. Um vício, como a gula, só pode ser controlado por outro: o do narcisismo com a própria boa-forma. O vício do beato religioso, que só quer se interessar pelas coisas extra-mundanas, só pode ser controlado pelo vício da caridade, que o força a descer nos infernos humanos (cadeias, hospitais, favelas). E assim sucessivamente.

O homem-escorpião da fábula não podia ser controlado apenas pela razão, mas talvez se o sapo o tivesse convencido de que logo ali, na margem oposta, esperavam por ele lindas odaliscas escorpianas, quem sabe, ele, com olhos frebris num vício maior, pusesse em suspenso sua má natureza, e não picasse o pobre sapo.

13.5.08

O padre voador


"Não, meu filho,
não é verdade: padres não voam..."


Que esse padre teve uma idéia de jerico, isso parece óbvio, sobretudo se entendermos por tal idéia aquela que a gente já teve - lá pelos 10 anos, é verdade - mas que, a tempo, se rendeu a força dos fatos: se fosse possível voar fácil assim (com balõezinhos!), nossos primos mais velhos já teriam tentado. Se não tentaram, é porque a idéia era de jerico mesmo. Assim, nos resignamos a soltar pipa. Primos tem lá sua utilidade, pelo menos no que tange a nos livrar do ridículo...

O padre não tinha mulher; talvez não tivesse primos que lhe ensinassem a dureza das coisas terrenas... aí, sem âncora, pra decolar da casinha é só um pulinho.

Bem verdade é que não se pode exigir lá muita razoabilidade de moços solteiros que vêem pecado por tudo quanto é lado.

Padres não são mesmo sujeitos muito versados na realidade das coisas, - ou não seriam padres. Eles vêem cada coisa: santo de barro que chora, virgens que têm filhos, filhos que são pais de si mesmos, mortos que voltam, vida sem sexo, sexo sem camisinha... É, não dá para exigir pés no chão desses rapazes...

Há um quê de noviça rebelde em cada um desses moços de saia e crucifixo.

Mas não foi falta de aviso.

Em Ofício datado de alguns milênios, o Supremo Patrão dele, advertiu: “És pó!...” Não meu filho, ele não disse poeira, e muito menos “poeira cósmica”...

Jesus passou por situação semelhante a do aeropadre. Na terceira tentação do demônio a Cristo, quase tivemos um vôo: “Por que não te jogas daqui de cima?” – desafiou o coisa-ruim, com sua habitual malícia -, “se És divino, Deus te sustentará.” Mas Jesus, que não era padre nem nada, saiu-se com sua tradicional retórica: “Não tentarás o Senhor teu Deus”. Se jogou? Não. Foi ao 1,99 comprar balões de aniversário? Não! Lembrou-se daqueles versinhos dos antigos: “boa romaria faz quem na sua casa fica em paz” e encerrou o papo com o tentador das trevas. E se tal resposta não lhe permitiu uma vida longa, pelo menos lhe permitiu morrer bem pregado ao chão... (e longe do mar!)

Assim, da baixeza de minha ignorância, eu me pergunto: Se Jesus, que era Deus, achou que esse negócio de voar era uma tentação arriscada (e olha que Ele já tinha planado no mar), como é que um seu subordinado qualquer, lotado numa filial do interior do Paraná, achou que podia?!

Soberba!

Um pecado para mil perdões – um para cada balão.
Mas esteja certo de uma coisa, Padre: eu pequei. E como pequei... mas, agora, por causa de sua aventura, não tenho mais pra quem contar. Jamais voltarei a me sentir leve, puro, rarefeito, nas nuvens: PADRE EGOÍSTA!

1.5.08

Me esgana que eu gosto!


Deixa que eu chuto
Não chega a ser novidade aquilo que as estatísticas criminais vêm demonstrando: delitos violentos, com ataques diretos à vida ou integridade física de pessoas, é comportamento predominantemente masculino. Mais de 95% dos homicídios, por exemplo, são realizados por homens. É claro que os assassinatos cometidos por mulheres podem ter seus números mal contados, diluídos na própria dissimulação que o sexo fisicamente mais frágil faz uso para obter seus propósitos delituosos: veneno antes que revólver; deixar de socorrer antes de provocar o ferimento, pedir um favor arriscado antes de empurrar do barranco. É a tal da lei da Amelinha: fazer o homem gemer sem sentir dor (ou sentindo apenas quando já não há o que fazer...).

Homens agridem à vista, mulheres em suaves prestações...

Se assim for, existem mais mulheres “bandidas” do que dizem as estatísticas. Mas, com dissimulação e tudo, o número ainda seria francamente favorável (?) ao time dos meninos. Seja o assunto futebol ou violência sanguinária, a última palavra pertence ao macho, é a regra do deixa que eu chuto.

Mas qual seria a razão de tanto barbarismo dos barbados? Por que metemos os pés e, às vezes, a pá pelas mãos? Por que nos matamos uns aos outros (sim, a vítima preferida dos homens é outro homem), enquanto elas se conformam em criticar a roupa ou a plástica da mocréia ao lado, ou o desempenho sexual e o fracasso econômico do marido amansado?
(Nós matamos o corpo, elas destroem a alma...)


Seriam os animais homens?
As teses derivadas da biologia lembram uma verdade evidente: nossa espécie tem mais tempo de animalidade do que de humanidade. Somos bichos em quase tudo (lembre que, para grande parte das pessoas, felicidade tem a ver, sobretudo – e antes de tudo - com boa comida, parceria sexual atrativa e disponível, território exclusivo e ausência de dor. Como não é difícil notar, quando o assunto é felicidade, pessoas, gatos, cachorros, macacos e coelhos se entendem. Consenso geral no reino da bicharada.
(Vai uma bananinha aí?)

O fato de sermos bichos torna possível entender a maior agressividade masculina apelando para a natureza diferenciada de nossos corpos. Os machos - de quase todas as espécies – são fisicamente maiores e mais fortes do que suas fêmeas. E como a seleção natural não costuma poupar diferenças inúteis, a Mãe Natureza, apesar de ser mulher, espera do macho uma maior dose de grosseria para vencer obstáculos (por exemplo: disputar entre muitos pretendentes a única fêmea disponível), manter metas (como preservar em paz um território, para que a fêmea possa educar seus filhotes), fiscalizar o equilíbrio natural (não deixando que uma espécie cresça desproporcionalmente aos recursos ambientais, por ausência de predadores), e assim por diante. Temos uma missão de força!
(Meninas, apressem o jantar que o papai tem que ir caçar...)

Além de mais fortes, os machos têm doses cavalares daquele hormoniozinho que é acusado de fazer tanto a festa da humanidade, quanto sua desgraça: a testosterona. Vários estudos mostram que ratinhos que recebem doses extras desse hormônio, ou aqueles bombados de academia (travecos masculinizados) que aumentam artificialmente sua concentração, tornam-se mais irritadiços e agressivos.
(“Somando meus 40 de bíceps, meus 3 de neurônios, os 120 cavalos do meu carro, mais a mesada do papai para eu passar o dia longe dele, fico entre os 10-Mais no ranking dos gostosos do El Divino Club!” E dá-lhe loira nos pés...).

Contra as armas biológicas

Muitos criticam qualquer tese dessa natureza, alegando que isso é uma “verdade perigosa”, pois poderia dar azo a inocentar, por exemplo, estupradores sob a alegação de excesso de testosterona. Mas isso é o mesmo que dizer que o fato de as mulheres ficarem mais irritadiças na TPM, ou mais suscetíveis na menopausa, as isentará de suas possíveis agressões. Uma explicação (uma descoberta de fatores intervenientes num resultado) não equivale, necessariamente, a uma justificação (aceitação social do comportamento).
("Tá estressado? Vá se adestrar!")

Em arremate, numa explicação biológica, a Natureza tornou o macho (inclusive o da nossa espécie) potencialmente mais agressivo. Coisa que não é muito problemática (é até vantajosa) na selva. Lá matar e estuprar são charme, é requisito para se tornar o macho-alfa. Mas entre os civilizados humanos e seus códigos penais, isso passou a ser chamado de crime e a ordem é: machos controlem seus impulsos! Assim, o macho-alfa de ontem, que circulava na selva como ídolo, acabará hoje, com muita probabilidade, atrás das grades, porque deu vazão socialmente inadequada aos seus impulsos ancestrais...
(Vitória dos machos delicados! Enquanto os machões estão algemados os machinhos fazem a festa, com muito jeito, perfume, e comida japonesa, é claro)!


Soldadinho de chumbo

Outro fator que levaria à maior agressividade masculina seria o estímulo social à belicosidade dos varões. Moçoilas raramente servem como soldados, não se precisando, então, incentivá-las desde pequenas a construírem um imaginário pessoal de guerreiras. Enquanto elas ganhavam bonecas, meninos ganhavam espadas e escudos; enquanto elas brincavam de casinha com suas mães, meninos se rolavam em lutinhas no tapete da sala com seus pais; enquanto meninas assistiam ao clipe da Barbie Girl, meninos estavam destruindo algum inimigo no Mortal Combate...
(Mais tarde enquanto elas procurarão um espelho que lhes permita ver a calda, eles só precisarão de um que permita o enquadramento dos músculos superiores, já que o resto de interesse eles vêem de cima... Esse Freud sabia mesmo das coisas.!).

A sociedade precisa formar o futuro guerreiro, por isso se tolera muito menos o homossexualismo masculino do que o feminino (repare que a mulher pode desistir de ser lésbica, casar e ter filhos, pode brincar de homossexual enquanto fantasia de casal, mas para o homem que experimenta, não haverá volta: não existe ex-...
(Uma vez flamengo, ronaldinho até morrer...).

Então prova!

Ninguém é homem em definitivo: deve-se provar todo dia a masculinidade. “Vai ser homem”, diz o papai ao filho medroso; “Se tu és homem, repete!”, diz o valentão de punho cerrado; “Quando deitamos, ele só quis conversar, ah, tá na cara, que ele não gosta da fruta, né amigaaa!”, conclui a piriguete da vez. No mundo masculino é assim: você é bicha até que prove o contrário...
(“Tá, tá, tá, eu vou com você na porra da montanha-russa...”)

Agressividade de gênero

Alguns sugerem que as mulheres não são menos agressivas. Elas são simplesmente menos corpóreas em sua agressão. Estudos em escolas, com crianças de 7 a 14 anos, mostraram o seguinte: meninos resolvem suas diferenças entre si, preferencialmente, de forma individual e física: “vou te pegar na hora da saída”. Os outros garotos torcem, mas não se metem na briga dos outros. Depois de trocarem socos e pontapés, os duelistas fazem as pazes e não guardam mágoas. Já as meninas, quanta diferença! Cada menina brigada (“de mal”) tenta arrebanhar a solidariedade das outras para o seu lado, tentando excluir a rival dos grupos (“se você falar com ela, não é mais minha amiga”) e, isso mesmo, difamando a coleguinha inimiga (“não sei quem viu ela no banheiro fazendo não sei o que com alguém”).
(Fofoqueiras!)

Homem quebra a cara do outro, mulher quebra a imagem da outra. Por isso que briga de mulher é tão divertida: é um show de baixaria trash, muito palavrão, muita referência a “vagabundagem da outra” – a gente fica sabendo de cada coisa! - e muitas tentativas de deixar a rival seminua (ah, pena que o rapaz da cerveja chega sempre depois da polícia...). No final, foi muito barulho e poucas conseqüências: duas ridículas descabeladas, arranhadas, rasgadas, e xingando a alegada vaquice da outra... Mas o pior virá depois, a rede de amigas de cada lado produzirá dossiês sobre a rival, e, não raro, fará chegar indícios comprometedores ao namorado, marido ou chefe da outra. É o terrorismo de reputação.
(Dia das mães: amor, vamos lavar roupa suja fora hoje....)

Arte da guerra

É que elas não aprenderam a arte da luta honrada do samurai, do cavaleiro medieval, do guerreio tupinambá. A batalha deve ser uma arte discreta e circunscrita a determinada arena. Aquele que perde deve ser honrado para que aquele que o venceu tenha sua vitória valorizada (ou seria como contar vantagem por ter furado a fila dos deficientes visuais no banco). Em geral isso significa que, entre homens, o que vence vai para o hospital e o que perde vai para o cemitério... mas ambos com muita classe.

Por isso, a Maria da Penha que me perdoe, mas violência física é conosco (e, por isso, temos que ser enjaulados, como bichos brabos, de vez em quando), mas violência moral e psicológica, como prevê a lei, ah, por favor, nisso a vítima somos nós, os homens. João da Penha nelas! Mas não precisa encarcerar não, que a gente depende delas, só dá um sustinho, caríssima autoridade, diz a ela que se não parar de encher a paciência da gente, o cartão Renner dela vai ser suspenso, ou que ela será proibida de usar salto por sessenta dias. Já vai ser mais que suficiente. Depois libera, porque a vida masculina perde todo o sentindo quando essas falantes criaturinhas encrenqueiras não estão por perto...
(Já tô indo, amor... não via mesmo a hora de saber detalhes sobre o tratamento da coluna de sua mãe...)

22.4.08

Complexo de Gentalha



Seu Madruga: o mexicano que é a nossa cara.
.
Já tô colonizado. Minha mente é terra alheia, penso sobre o que se pensa. Sobre o que todo mundo tá pensando no momento: Isabella. Como morreu e por que foi morta. Quem matou e outros detalhes - sobretudo os detalhes. "Eles já saíram de casa?" "Os depoimentos, como foram?" É obssessão nacional, a gente liga a TV e é isso, a gente pega o radinho e só dá ela, a gente desliga tudo e o cérebro oferece reprises e mais reprises...

O caso pegou com a força do refrão de música ruim: piri-piriguete, segura-o-tchã, hoje-é-festa-lá-no-meu-apê, eu-vou-fazer-um-leilão...

Logo logo, alguém vai dizer que foi ao túmulo dela, rezou e uma cura impossível foi feita. A notícia chegará ao Vaticano e sua central de produção de santos. Se tudo der certo, em menos de dois anos teremos mais um feriado.

A menina jamais poderia prever que sua desgraça, até então particular, deixaria as redações dos jornais felicíssimas, a população que já é meio retardada, em surto agudo de histeria, e serviria para dar novo e mórbido brilho às conversas cotidianas. Desde a morte do Airton Senna não se via um climão desses... Valei-me, Nossa Senhora de Lourdes!

Não é que a tragédia da menina não seja comovente... É só que possui atenção desproporcional às centenas de tragédias parecidas que não se comenta, porque as isabellas, nesses outros casos, se chamam Jucemara da Silva, Djenifer de Souza, Raimunda Pereira...

Na queda, Isabella morreu de politarumatismo...
E nós de falta de alguma coisa que a ciência ainda não conseguiu definir. Talvez de falta de equilíbrio, talvez de excesso passional, talvez de síndrome de seu madruga, de teletubisse aguda, ou de verminose neuronal, sei lá.

Só sei que, depois desse episódio, passei a temer os meus vizinhos. Sabe lá se eles não tão doidos para dizer ao delegado que há gritos por aqui...

21.4.08

Jornalismo à moda de Veja


CASO ISABELLA

POLÍCIA DESCOBRE QUEM ERA A TERCEIRA PESSOA NA CENA DO CRIME:

LULA

Segundo uma fonte não identificada revelou, o Presidente havia ido à casa dos Nardoni, minutos antes do crime, para distribuir dossiês contra a suposta canonização de José Serra. Um delegado da Polícia Federal, que não quis se idenficar, afirmou que escutas telefônicas ligam o Presidente aos fatos do edifício London. "É mais sério do que imaginávamos", disse a autoridade que, em trinta anos de polícia, ainda se espantou com o conteúdo interceptado: "Nunca vi algo parecido. É estarrecedor! Estou chocado."

Não são apenas policiais que estão estarrecidos. Um juiz de São Paulo, que preferiu ficar no anonimato, diz que há elementos suficientes para levar o Presidente à júri popular. "O Presidente não está acima da lei, ainda mais num crime bárbaro como esse", desabafou o ilustre magistrado, que se diz traído pelo Presidente: "A gente votou nele e ele mata a menina! Isso, posso afirmar enquanto especialista, não é atribuição do cargo, é incompatível com a legalidade!"
F.H.C., perito da Polícia Técnica que, para não atrapalhar o curso das investigações, pediu que não fosse identificado, afirmou que as marcas na menina são compatíveis com uma mão com dedura incompleta, situação que reforça a tese da participação do Presidente no crime. "Pessoalmente, não vejo possibilidade de defesa ao Presidente", concluiu o perito, que tem PhD em Havard.

Ainda é cedo para emitir um julgamento sobre a culpa do Chefe da Nação, mas para o bem da verdade, Lula deveria renunciar, ser preso, torturado, indenizar para só então se explicar. Somente assim, se restabeleceria a verdade republicana


Cleber Bambam Mainardi

Colaboraram na reportagem: Didi e Dedé, além de outros dois ex-integrantes dos Trapalhões, que pediram para não ser identificados.