14.6.08

Descontos sexuais: o lado não polêmico da inconstitucionalidade cotidiana

Em 1997, o Grupo de Teatro Olodum, movido pela idéia de que os negros têm menos acesso à cultura, resolveu dar um desconto inusual: eles pagariam apenas 50% do valor do ingresso na peça Cabaré da raça. Um preço para brancos, outro, menor, para negros. Sob a acusação de atentar contra o Princípio da Igualdade (art. 5o. caput da CF), o Olodum cedeu, estendendo o desconto a todos os freqüentadores. Devido a essa atitude preventiva dos produtores do espetáculo, o Judiciário não chegou a se posicionar sobre o caso. Seria ilustrativo vê-lo fazendo, pois o princípio isonômico não é apenas um dos nossos fundamentos constitucionais: ele é a base do nosso sistema de direitos. Tal é o que entende, por exemplo, Celso Ribeiro Bastos quando salienta que o fato de o citado princípio estar localizado não num dos incisos, mas no próprio caput do artigo 5o da Constituição, o centro nevrálgico de nossas garantias e direitos, indica sua precedência axiológica em face dos demais princípios.
A igualdade deveria ser, então, o fundamento de nossa ordem jurídico-social. Não obstante, muitos fatos nos levam a crer que o princípio isonômico é sub-aproveitado enquanto corretivo de desigualdades que, por sua cotidianidade e aparência simpática, proliferam-se incólumes a questionamentos judiciais. Dar descontos e entradas livres a mulheres em bares e boates, presumir-lhes uma consumação mais baixa do que a masculina, utilizar a estratégia do “mulheres free” para atrair homens para casas noturnas, ofende o princípio isonômico? Qual a diferença em dar desconto por critérios raciais e dar descontos por critérios de sexo ou gênero?
Talvez a diferença não seja de essência, mas de costume. Com efeito, o critério racial se nos apresenta como exótico, importado de países como os EUA e suas políticas de cotas, enquanto as nuances questionáveis das desigualações por gênero mostram-se corriqueiras e simpáticas demais – de inspiração cavalheirística – para ousarmos questionar seus eventuais problemas. Resistiria esse pretenso cavalheirismo a uma análise constitucional das desigualdades aceitáveis? Analisemos. Dar descontos a negros, mas não a brancos, em espetáculos parece clara e consensualmente afrontar a ordem das desigualdades aceitáveis num Estado de direito. Basta lembrar que fazer o inverso, cobrar mais caro dos negros, seria uma atitude certamente tida como criminosamente racista.


Mas as coisas não são tão simples quanto aparentam. Uma medida desigualitária será classificada como atentatória à isonomia mais pela motivação que a inspira do que pela diferenciação que efetivamente opera. Não são, certamente, motivações reprováveis que alimentam a criação de regimes diferenciados – cotas, descontos, vagas preferenciais - quando o objetivo de tais diferenciações é que, por meio delas, aqueles que são costumeiramente discriminados aproximem-se em possibilidades dos socialmente privilegiados. Cobrar menos impostos dos pobres, dar vagas preferenciais a idosos e a deficientes em estacionamentos, subsidiar a habitação e a alimentação dos miseráveis são exemplos de regimes desigualitários, mas não contrários à isonomia, já que seu objetivo final é, justamente, corrigir desigualdades factuais, distribuindo os bônus públicos de forma preferencial aos mais necessitados. A equação das diferenciações aceitáveis por nossa Constituição passa pela lógica de que a desigualação no antecedente (no regime diferenciador) deve provocar maior igualdade no conseqüente (no objetivo da diferenciação).


Portanto, tratamentos desiguais só serão tolerados se tiverem por objetivo e conseqüência diminuir a distância inicialmente verificada entre as pessoas na sociedade. Esse é o motivo porque deficientes físicos podem ser contratados a partir de regimes especiais pela Administração Pública (art. 37, VIII, da CF). Toda diferença de tratamento deve servir para diminuir as diferenças sociais e jamais para perpetuá-las.As polêmicas medidas de ação afirmativa, como as cotas para negros em universidades, seguem a mesma idéia de realização não ortodoxa do princípio da igualdade: desiguala-se brancos e negros no ingresso à universidade para que brancos e negros igualem-se mais facilmente em termos do número de egressos do nível superior. Se as cotas realmente funcionarão para corrigir as desigualdades raciais brasileiras, é questão polêmica e por nós já debatida exaustivamente em outro lugar , aqui o que interessa é salientar que a motivação igualitária das cotas as isentam de se constituírem em afronta ao princípio isonômico.


Em sua intenção, as cotas pretendem materializar o objetivo constitucional da igualdade sonhada, mas ainda inexistente, entre negros e brancos. Na prática, as cotas, talvez, só sirvam para acirrar preconceitos raciais, mas, em tese, a desigualação que promovem é teleologicamente compatível com nossa ordem constitucional .


Entendido o norte interpretativo das desigualações possíveis, voltemos a polêmica de se fere ou não nosso ordenamento jurídico diferenciar positivamente as mulheres no ingresso a casas noturnas.A igualdade entre homens e mulheres em nossa ordem constitucional poderia perfeitamente derivar do caput do artigo 5o: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...”, mas o legislador quis ser enfático e, já no primeiro inciso do citado artigo, complementou: “Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações nos termos dessa Constituição.”


A expressão “nos termos dessa Constituição” tem sido entendida como significando que a desigualação entre homens e mulheres só poderia ser feita pela própria Carta Magna, que de fato o faz. A Constituição promove discriminações em favor das mulheres em três casos: licença-gestação superior à licença-paternidade (art. 7o, incisos XVIII e XIX); proteção específica ao trabalho da mulher (art. 7o, XX) e prazo mais curto para aposentadoria por tempo de serviço feminino (arts. 40 e 202, e suas especificações). Autores como Eliane Maciel salientam que tais casos são excepcionais, com fundamentação própria, e não podem servir como motivos de criação de novas diferenciações analógicas, já que é princípio básico de hermenêutica jurídica que as exceções devem ser interpretadas de modo estrito. Se assim for, a concessão de descontos privilegiadores às mulheres em casas noturnas afronta o princípio geral de igualdade constitucional e não se enquadra em nenhuma das exceções constitucionalmente elencadas.


Mas não é tão simples assim. Poderia haver, via ampliação teleológica, outros casos de diferenciação aceitáveis entre os sexos? Sim, lembremos que a norma da igualdade no artigo 5o caput e inciso primeiro possuem a natureza não de regra jurídica estrito senso - como aquelas que dizem clara e objetivamente o que deve ser feito - mas de princípios, isto é, de vetores de inspiração a criação e interpretação de normas infraconstitucionais. Uma regra jurídica costuma ter a estrutura do artigo: a licença-gestação será de 120 dias (art. 7o, XVIII, da CF). Quando uma regra jurídica não é clara, podemos criticar a técnica do legislador.


Mas há normas jurídicas que não podem ser claras, pois não se destinam a orientações pontuais, mas são princípios que devem ser efetivados da melhor maneira dentro das possibilidades sociais. Um princípio constitucional não manda que se faça X, manda que X seja levado em consideração da forma mais ampla possível, desde que compatível com outros princípios igualmente constitucionais. Portanto a expressão “nos termos da Constituição” não é limitadora de outras diferenciações entre homens e mulheres, mas apenas de diferenciações que não tenham por objetivo final tornar mais igualitária a situação entre os dois sexos.


Assim, o fato de não estar previsto na Constituição Federal, não torna de per si inconstitucional o desconto dado às mulheres em casa noturnas. O que o tornaria inconstitucional é se tal desconto não pudesse ser razoavelmente justificável dentro de uma teleologia da igualdade.


Já houve tempo em que se alegava que os citados princípios constitucionais dirigiam-se apenas ao Estado e ao legislador, mas não aos particulares, já que estes possuiriam maior grau de autonomia. Assim, um espetáculo público não poderia conceder descontos a mulheres, apenas por serem mulheres, mas uma empresa privada, sim. Mas, modernamente, como salienta Canotilho essa interpretação está superada. O princípio da igualdade vincula a todos: legislador, juízes, administradores públicos, empresas e pessoas físicas. A autonomia da vontade particular é, lembremos, residual, imperando apenas nos termos em que o ordenamento constitucional, guardião dos interesses sensíveis do Estado e da sociedade, permite. Assim, não há como justificar pelo direito de liberdade individual práticas que o ordenamento jurídico repudie.


Resta saber é se os chamados descontos de natureza sexual incluem-se em tais práticas constitucionalmente repudiadas. Quem paga a conta dos descontos dados às mulheres? As casas noturnas? Certamente que não. Na composição dos custos do estabelecimento, esses descontos são transferidos para os clientes integralmente pagantes: os homens. As casas noturnas oneram um sexo em benefício do outro. Repete-se aqui a regra geral dos subsídios: se alguém os recebe, outro alguém tem sua conta majorada. Certamente, muitos homens poderiam estar dispostos a subsidiar as mulheres em termos de ingressos e descontos. Mas pode-se presumir em grau absoluto tal disposição, transferindo-se a conta de um consumidor (mulher) a outro (homem)?Os donos de casas noturnas poderiam alegar, então, que homens dão efetivamente mais gastos aos seus estabelecimentos. E que assim, não se estaria desigualando os sexos por mera conveniência, mas por fundamentos razoáveis: quem dá mais gasto, deve pagar mais. Se tal argumento correspondesse à verdade dos fatos, não haveria por que censurar o desconto dado às mulheres: elas dão menos ônus ao estabelecimento e, por isso – e não por serem mulheres – fazem jus a um bônus. O problema é que o maior gasto dado pelos homens é presumido. O Código de Defesa do Consumidor diz que quem consome tem o direito de saber, concretamente, o que está comprando, de pagar apenas pelo que usa, proibindo-se vendas casadas e coisas do gênero. Mulheres pagam menos consumação porque, por exemplo, bebem menos. Isso pode geralmente ser assim, mas o homem abstêmio deve ser forçado a arcar com a conta da mulher alcoólatra? Pela presunção das casas noturna, sim. De fato o grande mote dos descontos preferenciais a mulheres é que as casas noturnas as utilizam como chamarizes de clientes homens. Esse é o objetivo básico da desigualação feita nos preços cobrados de homens e mulheres. Tal objetivo é compatível com nossa ordem constitucional? Certamente que não. A pretexto de conceder gentilezas às mulheres, perpetua-se a idéia de que estas podem ser utilizadas como objetos promocionais, subsidiadas, via descontos e tratamentos preferenciais, para atraírem clientes homens. Ora, quando a Constituição admite certas distinções entre homens e mulheres é sempre no sentido de aumentar a cidadania subjugada que a condição feminina historicamente amarga, e nunca para conceder regalias simpáticas, mas de cunho perpetuador da objetificação feminina.


Se há, e muitas há, mulheres que ganham menos que homens, que se criem descontos por faixa de renda; se há, e como há, mulheres que bebem menos que homens, definam-se melhor os critérios de consumação. Agora dar descontos preferenciais às mulheres porque estas atraem homens para as casas noturnas é mais do que ferir a ordem constitucional posta, é atentar contra a dignidade feminina.


O Olodum objetivava simplesmente facilitar o acesso de negros à cultura, dando-lhes descontos preferenciais. Nossos pruridos constitucionais imediatamente se manifestaram. Parecia uma afronta clara, claríssima, à isonomia. Mas, a rigor, não era. Era uma questão constitucionalmente polêmica, já que a intenção (o telos) da desigualação operada era a promoção final de uma maior igualdade entre as raças. Já o tratamento desigualitário favorescente às mulheres dados pelas casas noturnas não pode, como vimos, apelar a nenhuma causa nobre de maior igualação final entre os sexos. Desiguala-se para auferir lucros e ponto. Desamparada por um objetivo constitucionalmente razoável, tal distinção deveria provocar em nós uma espécie de repulsa constitucional. Mas não provoca. E enquanto condenamos a excepcionalidade de medidas como a do Olodum, aceitamos, passivos, as desigualdades cotidianas.




Bibliografia


BASTOS, celso Ribeiro. Princípio da igualdade. In: BASTOS, Celso R. e MARTINS, Ives Granda. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1989.CANOTILHO, José J. G. Direito Constitucional. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2004.DWORKIN, Ronald. Los derechos em serio. Barcelona: Ariel Derecho, 1989.MACIEL, Eliane C. B. de Almeida. A igualdade entre os sexos na Constituição de 1988. Disponível em http://www.senado.gov.br/conleg/artigos/especiais/AigualdadeEntreosSexos/ . Acesso em 21 de agosto de 2006.MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: Malheiros, 1997.SELL, Sandro César. Ação afirmativa e democracia racial: uma introdução ao debate no Brasil. Florianópolis: Funjab/UFSC, 1992.SELL, Sandro César. Comportamento social e anti-social humano. Florianópolis: Ijuris, 2006.SELL, Sandro César. Existem raças humanas? Disponível em http://sandrosell.blogspot.com/SINGER, Peter. A Companion to ethics. Balckwell Companion to Philosophy. Oxford: Blackwell Publications, 1995. Professor Sandro Sell

13.6.08

Maioridade penal: um debate legítimo

Sobre a legislação penal, apesar de sua crônica incapacidade de barrar o avanço da criminalidade, concentra-se, em momentos traumáticos, como o do assassinato do menino João Hélio, no Rio de Janeiro, o debate sobre o fim da violência que nos assalta cotidianamente. Para alguns, bastaria aumentar a severidade punitiva do Estado e chegaríamos a um nível de civilidade comparável ao dos países que, pelo menos em nosso imaginário, são tranqüilos para se viver. Necessário dizer que os países em que a criminalidade apresenta, de fato, taxas suportáveis de violência possuem uma série de características sócio-culturais muito diversas da brasileira, mas não tão diversas quando se trata do tratamento legislativo à criminalidade. Que ninguém se iluda, os sistemas penais nos diversos países ocidentais só variam em detalhes, no mais vivem debaixo das mesmas críticas sobre seu custo, ineficiência e discriminação (os presídios norte-americanos, por exemplo, possuem taxas de encarceramento proporcionalmente avantajadas para latinos e negros e bastante rarefeitas para os brancos). Há países com penas severas e crime à solta tanto quanto há países com leis moderadas e crimes sob controle. Entre os especialistas há inclusive um consenso: o papel da lei na contenção do crime é fundamental, mas insuficiente, ou seja, não se faz um país não violento apenas pela ação de legisladores e juízes.

O debate sobre possíveis modificações da lei penal funciona, entretanto, como uma espécie de atalho mental quando se trata de buscar soluções para a violência. Assim que acontece um crime bárbaro, cujas vítimas não sejam os habituais miseráveis, pensa-se logo sobre que lei pode-se acusar pelo infortúnio. A lei penal é nesses casos um cúmplice necessário da ação criminosa trágica. “Se a lei fosse assim e não assado isso não teria acontecido!”, brada sempre alguém. Ao respeitável choro da família enlutada segue-se uma série de debates marcados pela passionalidade populista de setores da imprensa e da política. Sob o grito redentor do “Vamos pôr um fim nisso”, produzem-se ilusões, acusam-se como se comparsas do crime sofrido fossem todos os que ousam pedir calma e racionalidade. Mais uma vez vem “esse pessoal dos direitos humanos ajudar os bandidos”.

Mas mesmo o pessoal que pede calma e racionalidade não consegue nelas se manter por muito tempo. Logo se tornam passionais também. Tomam sua posição como sinônimo de pensamento esclarecido e não querem escutar mais nada. São contra toda e qualquer alteração na lei. Se no dia-a-dia se definem como um grupo crítico ao sistema legal posto, nesses dias de debate acalorado apegam-se a ele com um dogmatismo ferrenho. Querem que a lei congele, atribuem o status de cláusula pétrea, por duvidosa extensão, a tudo o que lhes interessa manter. Como procuradores da Justiça na Terra, negam-se a permitir possíveis “estragos” que “em suas leis” possam vir a fazer o povo e seus representantes.

No caso da discussão sobre a maioridade penal é isso que ocorre. Por que 18 anos e não 20? Pelo mesmo motivo que 18 e não 16: porque se decidiu assim e pronto. É certo que a ONU já defendeu que essa é uma boa idade para marcar o início da responsabilização penal; é certo também que a maior parte dos países a adota, mas, mesmo assim, ela é muito mais uma convenção do que o resultado do consenso entre especialistas. Fixar a idade penal mínima é fixar um momento em que, para efeitos da lei, passa-se a considerar que alguém já tem capacidade de entender o caráter ilícito de seus atos e de se determinar por esse entendimento.

Quando um ser humano de desenvolvimento mental normal em nossa sociedade passa a compreender que matar, estuprar e arrastar os outros pelo cinto de segurança através das ruas não é correto? Veja-se que não é exigido que esse ser humano saiba o que é um homicídio qualificado, que saiba que para formar uma quadrilha é preciso mais de três comparsas, não precisa saber o que é motivo torpe ou resultado preterdoloso; só precisa reconhecer que de suas ações violentas podem vir a desgraça alheia. Na maior parte de nós esse entendimento não demora tanto assim para se formar. Muitos especialistas dizem que 12 anos são suficientes; na Inglaterra, bastam 10, e em alguns estados dos EUA pode-se descer ainda mais na idade exigida para julgar criminalmente alguém. As variações são de fato espantosas, sobretudo dadas suas conseqüências práticas. O menino de 12 anos que mata barbaramente outro no Brasil só poderá ser ajudado/orientado pelo Estado – nunca punido – enquanto seu colega de infância inglês poderia amargar nove anos em instituições correcionais e depois, ainda, ser obrigado a cumprir o resto de sua pena num presídio comum. Dado o enorme dissenso entre os especialistas, idades de 12, 16, 18 ou 20 anos parecem ser números destinados a organizar a aplicação da lei e não para se adequar a capacidade penal efetiva das pessoas.

Se a idade de 18 é assim, então, tão arbitrária, por que não se pode rediscuti-la? Arbitrária também era a idade de 21 anos para a determinação da capacidade civil absoluta; notou-se que era inadequada aos novos tempos e se a mudou. Arbitrária também era a idade de 18 anos para poder votar em alguém no Brasil, alguns acharam que os tempos eram outros e baixou-se para 16 anos. Isso significa que há o reconhecimento de que os jovens de hoje podem mais cedo fechar contratos civis, sem a assistência de seus pais, podem decidir sobre inúmeras coisas que antes lhes eram vedadas, podem também votar nos homens que fazem as leis penais, só não podem mesmo é responder por elas.

Num ponto os que são contrários a baixar a maioridade penal estão certos: não haverá diminuição na criminalidade. Trata-se do argumento da ineficácia da lei penal severa. Tal argumento deve ser tomado a sério porque muitos pensam que se o “menor” correr o risco de ser severamente punido, ele não mais entrará no crime. Ledo engano: quem entra no mundo do crime no Brasil sabe que a morte lhe espreita. O adolescente envolvido com o crime não empunha a arma porque espera ser tratado pela lógica benevolente do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA). Apenas se ele não morreu em tiroteios ou se não tomou uma “surra” dos seus captores, numa prática policialesca muito comum de substituição ilegal do seu encaminhamento “inócuo” diante da Justiça, ele poderá vislumbrar o encontro com um juiz “legalista” que diga: “A febem não cumpre o Estatuto, prefiro deixa-lo solto”. Mas essa é a exceção, a maior parte dos operadores da lei já se rendeu à lógica do possível: “A lei diz A, mas “sou obrigado a fazer B”; é só assim que se entende que horríveis depósitos humanos, seja sob a forma de presídios ou instituições “sócio-educativas” continuem em funcionamento.

O adolescente que comete crimes no Brasil não está numa situação confortável - claro que não. Ironicamente há a crença que no Brasil nada funciona conforme a lei, mas se acredita que a lei do Eca é de fato aplicável em toda a sua brandura. As cenas deprimentes dos pátios das ‘”febens”, do massacre da candelária, ou violência cotidiana contra crianças não parecem abalar nossa crença de que aqui menor é tratado bem demais. “Se fosse na Inglaterra, se fosse nos EUA esses menores iam ver”, vociferam alguns, esquecendo que se fosse nesses países, antes de conhecer um policial ou um juiz, o menor teria conhecido uma dúzia de professores e um par de pais com emprego; ou seja, grande parte da menoridade que vai para prisão em países desenvolvidos vai não por falta de oportunidades mínimas de existência, mas por falta de tê-las aproveitado – e nisso há uma sutil diferença com o caso brasileiro, no qual não se sabe se o que adentra o cárcere é a resultante humana da maldade individual ou o descaso social que a ajudou a formar.

Um segundo argumento respeitável dos que se opõe à baixa da menoridade penal é o que sustenta que o sistema que não serve para os presos maiores menos ainda servirá aos infratores menores. Trata-se novamente de um argumento que diz respeito à ineficácia da medida que visa à redução da idade penal. Mas esse é um argumento tecnológico, e não de princípio. O problema de argumentos que apelam para a eficácia é que eles podem ser lidos também de maneira inversa. Se não vamos baixar a idade de responsabilização penal porque o sistema carcerário destinado aos maiores de 18 anos não funciona por que então não se prolongar a idade penal mínima para 30 anos? Por que o garoto de 17 não dever ser submetido a um sistema de recuperação inócuo e um de 18 anos pode? Por que não se levantam coerentemente, os contra a baixa da maioridade, contra a violência ineficaz, então, cometida contra os de 18, 19 ou 20 anos? Difícil entender.

O fato é que o tratamento por meio de medidas sócio-educativas ou a tão difundida ressocialização só excepcionalmente funcionam, mesmo em instituições exemplares. Funcionam para alguns tipos de personalidade, infelizmente não para os portadores de transtornos associados à psicopatia ou sociopatia, justamente as pessoas mais propensas a barbarizar a vida alheia sem sentirem remorsos por isso. Para pessoas assim, como também para aquelas que poderiam, mas não querem ou não vêem sentido numa vida não criminosa, a internação tem um outro objetivo: a contenção de seu potencial de violência, a proteção da sociedade. Por incrível que pareça muito dos contrários a baixa da maioridade penal não concordam que a proteção social possa ser uma motivação legítima, acreditam que todo direito é direito individual (do acusado) e que todo direito coletivo, de proteção social etc. é desculpa para maltratar os cativos.

Uma outra função que o encarceramento pode ter é o de satisfazer a ânsia de justiça das vítimas. Assim encarcerar o garoto de 17 anos que cometeu o crime bárbaro é uma satisfação que o Estado dá à família da vítima. Juristas “técnicos” rebatem esse argumento dizendo que o crime tem por vítima imediata o Estado e não o indivíduo concreto. Isso mesmo: numa lógica da incoerência casuísta, eles agora desconfiam da justiça para o indivíduo (vítima): vítima é o Estado e suas razões. Mas, não custa lembrar, houve um tempo em que a justiça era feita pelo próprio ofendido, como isso levava a exageros vingativos, o Estado encarregou-se da tarefa, para fazê-la de forma equilibrada e proporcional é verdade, mas, acima de tudo, para fazê-la. Quem perde o filho assassinado quer uma resposta que não beire ao deboche, tudo bem que ela seja equilibrada, não vingativa, mas que mostre ao autor do crime e seus possíveis seguidores que não valeu a pena o ato de barbárie. Sem isso, o sistema oficial perde a legitimidade e a vontade que dá em cada família enlutada é armar-se, para que tal não ocorra novamente (imagine a tragédia que seria!). O Estado tem que mostrar que é capaz garantir à sociedade que quem violenta os outros se dá mal. Não é difícil entender.

Dizer que não vale a pena baixar a maioridade porque o adolescente delinqüe pouco, também é um argumento tecnológico. Talvez alguns juristas tenham esquecido, mas não se responsabilizam pessoas criminalmente no atacado, apenas individualmente. Na essência da responsabilização criminal, não interessa saber se apenas um indivíduo em milhares comete tal ou qual tipo de crime, o que a lei tem é que achar uma resposta proporcional e ajustada aquele – ainda que único – ser concreto que cometeu o delito. Não se justifica o vácuo da lei pela raridade da conduta. Se fosse assim, seria despropositado que o Brasil tenha uma pena severa contra terroristas (quantos brasileiros temos sob tal rubrica?). E depois os números no Brasil não são tão delicados assim em prol dos menores. Se eles cometem apenas 5% dos crimes violentos contra pessoa em São Paulo, já produzem um número de vítimas em termos absolutos (há certa maldade em falar de vítimas de morte em porcentagens) surpreendente: só no último trimestre de 2006, matou-se, dolosamente, 1512 pessoas, tentou-se matar outras 1500 e se lesionou intencionalmente outras 50 mil. Dez, cinco ou mesmo um por cento disso deve ainda gerar uma quantidade de sofrimento difícil de diluir em estatísticas.

O que falta em ambos os lados do “a favor ou contra a diminuição da maioridade” é a capacidade de defendê-la para além dos argumentos tecnológicos, partindo para argumentos de princípios. Aos que se negam a baixá-la que digam o que há no garoto de 18 que negam veemente haver no de 17, além da convenção da lei, é claro. Já os que são a favor devem sê-lo por não verem essa diferença, por acharem que ela pode ser reavaliada, e não porque pensam que com isso salvarão a sociedade da barbárie adolescente. Enfim responsabilizar o garoto porque ele tem condições de ser responsabilizado, e não porque uma vez responsabilizado o mundo será salvo.

Assim, se baixar maioridade penal não serve para diminuir a criminalidade, se não serve para recuperar os presos, pode servir pelo menos para livrar temporariamente a sociedade de indivíduos nocivos, ainda que menores de 18 anos. É claro que isso pode ser atingido também aumentando o tempo de internamento dos menores infratores, passando, por exemplo, dos três anos de internamento para cinco, ou um pouco mais, sem tirá-los da proteção do ECA. O que não é possível é que em apenas três anos, esteja ou não recuperado, envergonhe-se ou vanglorie-se de ter barbarizado a vida de alguém, o autor de crimes brutais possa sair por aí dizendo: “minha ficha tá limpa.”
É claro que quando se fala em aumentar o tempo de internamento pela sistemática do ECA, ou de baixar a maioridade penal, é fundamental, não generalizar a ação. Tais medidas só são admissíveis quando a violência da conduta praticada pelo adolescente for contra pessoas, e não contra coisas e, muito menos, em se tratando de crimes envolvendo entorpecentes, como o de tráfico. Se vamos tornar a vida de adolescentes infratores mais difícil é porque o valor que por vezes ameaçam – a vida alheia – vale tanto quanto a deles próprios - e é bom que não precisem chegar aos 18 anos para serem lembrados disso.

Sandro Cesar Sell

3.6.08

Edukators: a banalização do mal

O filme Edukators, os educadores (2004), de Hans Weingartner, dá uma nova versão à velha questão ética acerca dos limites ao acúmulo de bens supérfluos num mundo de escassez. Pode-se possuir bens ilimitadamente desde que o meio empregado na sua obtenção seja legítimo? O fato de haver outras pessoas que não possuem sequer o mínimo existencial não deve ser considerado um problema moral do grande acumulador, mas apenas um resultado mecânico das regras do sistema? E mais: quais os meios legítimos de enriquecimento: Trabalho? Talento? Sorte? Herança? Se o enriquecimento resultar de tais meios pode-se ser dono de tudo e ainda merecer aplausos por isso? Ou as regras do jogo de acumulação capitalista não passam de maneiras de ocultar a ganância desmedida e criminosa de alguns?
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Edukators não pretende responder essas questões, mas apresenta uma versão vívida e apaixonada de todas elas. No filme, Jule, uma jovem garçonete, vive arrasada por ter que arcar com uma conta de quase 100 mil euros, em favor do ricaço Hardenberg, cuja Mercedes ela, involuntariamente, destruiu num banal acidente de trânsito. Para ele, a conta representa muito pouco; para ela, a dívida a impede de pagar o aluguel da casa em que mora, de se divertir, ou de atingir seu sonho de ser professora. Ela precisa de oito anos de trabalho duro para saldar a dívida contraída em cinco segundos de distração. Pelas regras do jogo, Jule deve transferir dinheiro sacrificando seu essencial para garantir o supérfluo de sua “vítima”. Há justiça nisso?Hardenberg tem a lei a seu favor: Dirigia calmamente à frente de Jule, que não o viu frear e por isso entrou na traseira da Mercedes. Tudo bem, o tribunal reconheceu que ela foi a causadora. Mas a causadora de quê? De um acidente de carros? Não, se fosse isso, ela até que poderia arcar com as despesas. Ela causou foi um acidente em uma Mercedes! Não entendeu a diferença? Então, parabéns: você não teve o azar de Jule.
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A questão primeira que se coloca é: quem paga o custo-ostentação daquele que decide comprar um carro, digamos, 10 vezes mais caro do que a média dos que circulam nas estradas? Eu? Você? Jule?A decisão de comprar a Mercedes foi só de Hardenberg, mas os custos de sua compra oneram direta ou indiretamente muitos outros. É sabido que quando o número de automóveis de luxo que circula numa cidade cresce, o valor que os demais precisam desembolsar para segurarem seus próprios e humildes carros, em face de prejuízos contra terceiros, também aumenta.
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Enquanto Hardenberg curte sua jóia sobre rodas, os demais, sem curti-la, transformam em pagamento às seguradoras o temor que têm de estarem no lugar de Jule. Por que ela não fora obrigada apenas a ressarcir um carro normal (avaliado pela média dos automóveis em circulação)? Por que ela teve que indenizar “aquele” carro? Porque o sistema em que ela vive pressupõe uma igualdade abstrata entre todos os envolvidos num acidente, qualquer um poderia ser o dono daquela Mercedes, então bateu, levou. Na prática, isso representa um acréscimo à liberdade dos mais ricos: estes podem ter menos prudência ao dirigir, porque seus seguros são bons e o custo comparativo do veículo alheio é irrisório, enquanto os mais pobres assustam-se só com a possibilidade de, em dia de chuva e neblina, terem pela frente a máquina dos sonhos de Hardenberg.
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Jule está nessa situação quando descobre que seu namorado (Peter) e seu amigo (Jan) são os edukators: jovens que invadem a casa de milionários, enquanto estes estão ausentes, desarrumam os móveis e deixam bilhetes como: “Você tem dinheiro demais” ou “Seus dias de fartura estão com os dias contados”. Com isso eles pretendem abalar a noção de segurança dos muito ricos, mostrando que sua ostentação está sob vigilância. Sabendo disso, Jule insiste que Jan visite com ela a casa de Hardenberg na condição de edukators. Relutante, Jan acaba cedendo. Resultado: ela esquece o celular na casa do ricaço. Quando voltam para pegá-lo, Hardenberg os encontra e reconhece Jule. O que fazer? Com a ajuda de Peter, seqüestram o dono da casa. Tudo o que os três edukators queriam era se livrar da polícia, mas como? Matar o ricaço, nem pensar. Eles não são assassinos. Nem tampouco querem pedir resgate, como se fossem criminosos seqüestradores.
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O que fazer? Levam-no para uma casa de campo onde esperam por alguma idéia que os tire da enrascada. Ter que passar dias com aquele sujeito deve ser asqueroso. Mas, ao contrário, e aí está uma situação que nossos edukators não contavam: o malvado Hardenberg se mostra gentil e compreensivo. Joga cartas, conversa e até fuma maconha com seus seqüestradores. É que na sua Mercedes, ou na sua mansão, Hardenberg representava o próprio mal, a versão sobre pernas da raça de exploradores dos mais pobres. Mas ali, abatido e gentil ele parecia uma pessoa comum. Isso coloca os edukators em situação semelhante à vivenciada pela filósofa Hannah Arendt diante de Eichmann. Quando este, que fora um dos arquitetos do extermínio em massa dos judeus, foi à julgamento, esperava-se que o tribunal revelasse um monstro, um facínora, mas o que foi revelado? Uma pessoa terrivelmente comum, um funcionariozinho banal e obstinado, que gostava de cumprir bem o seu serviço, fosse carimbando papéis ou eliminado pessoas. Era triste descobrir que o malvado Eichmann não era sequer um demônio, mas apenas um maldito cumpridor de regras, um burocrata da morte, que não agia por um ódio visceral aos judeus, mas com indiferença.
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Tanto Arendt, diante de Eichmann, quanto os edukators diante de Hardenberg descobriram que o problema não era simplesmente de maldade, mas de indiferença em relação à prática do mal. Hardenberg não parecia odiar os mais pobres, ele simplesmente não se importava com eles. É assim que quando Jule pergunta se ele sabia o que a dívida do carro representava para a vida dela, ele respondeu com honesta convicção: “Eu de fato nem dei importância a isso. Entreguei o caso ao meu advogado e só”.Em outros momentos, o personagem do seqüestrado representa uma defesa eloqüente dos axiomas do jogo capitalista, de exploração sem culpa. Estes axiomas são: 1. Todos têm as mesmas oportunidades; 2. alguns aproveitam tais oportunidades melhor do que outros, fazendo melhor uso de sua inteligência, capacidade de trabalho e senso de oportunidade; 3. Esse uso diferenciado de oportunidades iguais gera a desigualdade em favor dos mais talentosos; 4. Mas também beneficia os demais, porque é recompensando regiamente os mais talentosos que se os mantêm motivados a criarem coisas, como tecnologia, medicamentos ou automóveis Mercedes que, em tese, servirão a todos; 5. Os mais pobres são, sobretudo, vítimas de si mesmos, por não serem competitivos à altura do jogo capitalista; 6. Não há culpados nem inocentes, apenas ganhadores e perdedores, como em qualquer outro jogo. A transcrição do diálogo abaixo, entre os edukators e Hardenberg, é esclarecedora:

Jule: Chá?
Hardenberg: Obrigado.
Jan: Quanto é que você ganha por ano?
Hardenberg: 200 mil euros, mais ou menos.
Jule: 3,4 milhões, segundo a revista...
Jan: Não se sente culpado? Destruir a vida dela por um carro que você pode trocar a cada mês? Por quê?
Hardenberg: Admito, eu deveria ter prestado mais atenção aos demais envolvidos... Eu estava estressado, lamento muito.
Jule: Quantas horas por dia você trabalha?
Hardenberg: Treze, quatorze horas, até mais.
Jule: E o que você faz com tanto dinheiro? Acumula coisas? Coisas grandes e caras? Carros, iates, mansões... um monte de coisas para poder dizer “eu sou o macho alfa”...Eu não vejo outra razão. Você não tem nem tempo para curtir o seu iate. E por que você sempre quer mais?
Hardenberg. Vivemos numa democracia. Não devo explicações sobre os meus bens, eu paguei por eles.
Jan: Errado. Vivemos numa ditadura capitalista.
Hardenberg. É mesmo?
Jan: Você roubou tudo o que possui.
Hardenberg. Eu posso bancar muito mais coisas porque trabalho mais, eu tive as idéias certas na hora certa, além disso eu não sou o único que aproveitou as chances... e na vida todos têm chances iguais, a verdade é essa.
Jule: Ele daria um ótimo político, não é? No sudeste da Ásia um monte de gente trabalha até 14 horas por dia e eles não têm mansões, ganham 30 euros por mês... também podem ter boas idéias, mas eles não podem nem pagar o ônibus para irem à cidade vizinha.
Hardenberg: Desculpe por eu não ter nascido na Ásia
Jule: Mas ainda pode tornar suportável a vida lá. O Primeiro Mundo perdoaria a dívida do Terceiro Mundo, é só 0,01% do nosso PIB!
Hardenberg: Seria o colapso do sistema financeiro mundial.
Jule: Quer que eles fiquem pobres para poder ter controle sobre eles, forçá-los a vender os seus produtos a preços ridículos...
Hardenberg: Como é que você sabe?
Jan: Resposta simples: você não cancelou a dívida da Jule.
Hardenberg: Isso é absurdo!
Jan: Não, é a regra básica do sistema: chupar todos até o bagaço. Pra que não possam mais reagir.
Hardenberg. Não é assim... Claro que precisamos melhorar as coisas...mas o sistema não vai mudar.
Jan: Por que não?
Hardenberg: Porque é da natureza humana querer ser mais que os demais... todo grupo logo elege um líder e a maioria só fica feliz quando compra uma coisa nova.
Jan: Feliz? Acha que eles são felizes, Hardenberg? Abra os olhos. Sai do carro da sua empresa e ande nas ruas. Eles parecem felizes ou mais assustados? Veja sua sala de estar, todos estão grudados naquela TV, ouvindo zumbis chiques falando de uma felicidade perdida. Dirija pela cidade. Verá a imundice, a superpopulação. As massas em lojas de departamentos subindo e descendo escadas-rolantes feito robôs... Ninguém conhece ninguém. Acham que a felicidade está a seu alcance, mas ela é inalcançável. Porque você a roubou e sabe muito bem disso.... Mas tenho uma notícia para você, executivo: o sistema superaqueceu: somos só os precursores, a sua era está para acabar. Enquanto você surfa na tecnologia os outros sentem ódio. Como as crianças das favelas vendo filmes de ação americanos. Isso é só o começo, nós vamos ver. Há mais casos de insanidade, serial killers, almas destruídas, violência gratuita. Não pode sedar todos eles com games e shoppings... e os antidepressivos não vão funcionar para sempre... o povo tá cheio desse seu sistema maldito e hipócrita.
Hardenberg: Tá bom. Admito que há alguma verdade no que disse, mas sou o bode expiatório errado. Eu jogo o jogo. Mas não fui eu que fiz as regras desse jogo.Peter: Não importa quem inventou a arma, só quem puxa o gatilho.
Jule: Não é tão simples e você não pode se eximir.

No diálogo, Hardenberg representa não só jogador capitalista, mas o sujeito que acredita nas regras do jogo: trabalhou, aproveitou oportunidades, triunfou e agora tem o direito de curtir. E representando a alma mercantil do capitalismo, ele não é contra nada: revoluções, contracultura, oposições, desde que seus símbolos, roupas e armas possam ser vendidos em shoppings centers. Em momento sentimental, ele até relembra que também já sonhou com um mundo diferente: “Há 30 anos, devo confessar que teríamos adorado pegar um magnata como eu, e hoje estou aqui... É curioso. Não pretendo bajular vocês, não acho certo o que estão fazendo comigo, mas o seu idealismo tem o meu respeito.”
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Da mesma forma que as grandes gravadoras contratam artistas de rap para “afrontar” a sociedade, que grifes internacionais colocam pobres na passarela, para mostrar que a moda têm sensibilidade social, ou que o Fantástico mostra o quanto de charme há nas meninas da favela, Hardenberg respeita o idealismo que anima as críticas a seu modo de vida. Prova cabal de que, sob o capitalismo, não há ideal que não tenha lugar, desde que se dispa de todo radicalismo (de sua raiz, de sua essência) e transforme-se numa versão inofensiva, boutiquizada e estetizada, para ajudar a diversificar as vitrines e os gostos.
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Mas o que fazer com Hardenberg? É lícito matar o tirano? Eis uma pergunta clássica no mundo da ética. Maquiavel apresentava uma solução utilitarista à questão: matar o tirano pode ser uma boa solução se for essa a condição de manutenção da paz do Estado e da segurança de seu povo. Portanto, matar apenas na medida em que os benefícios superem os malefícios da legitimação da prática do assassínio de tiranos. Isso talvez valesse à época de Maquiavel, em que monarcas, sentados em tronos, de fato governavam. Mas, no sistema capitalista atual, quem é o tirano? Se Hardenberg for morto há algum abalo ao sistema? Não. Assim como o sistema se mantém intacto se forem mortos Bill Gates, Antônio Ermírio de Moraes ou George Bush.
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Como ensinou Foucault, a característica básica do poder na modernidade é que ele saiu do palco: ele não está mais no trono, onde poderia ser facilmente alvejado, mas capilarizado, distribuído por praticamente todos os lugares e pessoas da sociedade. O filósofo francês Felix Guatarri chegava a dizer que até nosso inconsciente havia se tornado uma espécie de terminal de computador capitalista, somos programados para sentirmos e processamos informações no ritmo do mercado. No capitalismo, o poder é em rede: derrube-se um líder e a rede se refaz com uma rapidez espantosa. Isso porque, de certa forma, somos todos Hardenbergs, Gattes ou Bushs, podemos até variar um pouquinho no estilo, mas no essencial estamos todos capacitados a assumir o lugar do tirano.
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Então o que fazer? Difícil saber. No filme, os garotos optaram por devolver seu prisioneiro ao lar. E este, em sinal de agradecimento, não só promete não comunicar o fato a polícia, como perdoa a dívida de Jule. Parece que a educação na marra funcionara, Hardenberg caíra em si, deixaria de ser o porco capitalista em que a vida – sempre sem culpa pessoal - o convertera. No filme chega-se até a imaginar um inexistente abraço entre ele e Jule, seguido de um aperto na mão dos rapazes. Todos apresentam aquela cara de quem aprendeu uma grande lição.
Os edukators entram no carro e o ricaço na mansão. Silêncio e reflexão.Na manhã seguinte, já com a “cabeça no lugar”, o executivo volta à velha rotina mental. A polícia bate à porta dos edukators que, sabiamente descrentes na bondade humana, já haviam deixado o país. Na parede do prédio em que moravam um recado a Hardenberg, não um xingamento, não uma afronta, apenas um bilhete profético e constatador: “Certas pessoas nunca mudam”. Bilhete sem ódio, sem revanchismo, apenas com indiferença. E é dessa forma que os edukators mostram que aprenderam sua mais dura lição, a mesma de Hannah Arendt: o mal na atualidade não é nem grandioso, nem sequer dado a perversidades, é apenas daninho, ordinário, repetitivo e quase sem culpa.


Ficha Técnica do FilmeTítulo Original: Die Fetten Jahre Sind Vorbei Gênero: DramaTempo de Duração: 126 minutosAno de Lançamento (Alemanha): 2004Site Oficial: www.theedukators.comEstúdio: Y3 Film / arte / Coop 99 / Südwestdeutscher Rundfunk Distribuição: Celluloid Dreams / IFC Films / LumièreDireção: Hans Weingartner Roteiro: Katharina Held e Hans Weintgartner Produção: Antonin Svoboda e Hans Weintgartner Música: Andreas Wodraschke Fotografia: Daniela Knapp e Matthias SchellenbergEdição: Dirk Oetelshoven e Andreas WodraschkeElencoDaniel Brühl (Jan)Julia Jentsch (Jule)Stipe Erceg (Peter)Burghart Klaubner (Hardenberg)Claudio Caolo (Paolo)Laura SchmidtSebastian Butz Petra Zieser Peer Martiny
Sandro Cesar Sell