22.9.07

Funções manifestas e latentes

Conceito central na Sociologia de Robert Merton (1910-2003), a idéia de funções manifestas e funções latentes pode ser também aplicada ao entendimento do agir individual. Segundo essa distinção, um comportamento possui, em geral, motivações manifestas (aquelas abertamente expressas por seu praticante) e motivações latentes, que possuem um caráter involuntário e inconsciente. A função manifesta, abertamente expressa por um consumidor de vinhos caros é a da satisfação de seu gosto refinado. Mas é bem possível que por trás desse comportamento haja também motivações inconscientes: o desejo de ser reconhecido como uma pessoa refinada e bem-sucedida. De fato, a distinção social atribuída aos especialistas em vinho é compatível com essa função latente.

O sociólogo Torsten Veblem (1857-1929) sustentava que as pessoas compravam coisas caras não por serem melhores (função manifesta), mas, justamente, por serem caras (função latente). Pois o prestígio social de uma pessoa, numa sociedade como a nossa, acaba sendo diretamente proporcional à magnitude do que consome. Se isso estiver certo, a compra de um Ferrari ou um BMW, de um Chanel ou um Dior se deve, de forma manifesta, à grande qualidade desses produtos, mas, de forma latente, à diferenciação social que eles proporcionam. Basta notar que os consumidores de tais produtos, cuja cifra gasta é, amiúde, justificada pela qualidade e durabilidade dos bens adquiridos, são os que mais rapidamente deles se desfazem, já que são bastante suscetíveis às oscilações da moda.

Da mesma forma, a linguagem difícil dos juristas, explicitamente atribuída a “necessidades da técnica jurídica”, quase sempre não passa de uma mescla de neologismos propositadamente rebuscados, bem como uma miscelânea de termos arcaicos, encontráveis na obra dos grandes tratadistas do passado. Por trás da função manifesta da “técnica jurídica”, encontra-se a função latente do emprego de linguagem difícil: monopolizar o entendimento das leis, tonando-se, os juristas, indispensáveis à sua interpretação.


Isso não significa que as funções manifestas são sempre desculpas esfarrapadas para um comportamento que visa outro fim. Não. Por certo, as funções manifestas evidenciam certas intenções sinceras de comportamento. Mas não explicam tudo.


Como salientou Merton, se fossem retiradas as funções latentes, de exaltação e prestígio social, a dinâmica do consumo de artigos de luxo sofreria um grande impacto. Da mesma forma, se fosse retirada a função de intermediário necessário do advogado entre o cidadão e as leis, muito da linguagem jurídica seria simplificada, sem que houvesse prejuízo “técnico” relevante. Em termos do método sociológico, a distinção entre funções manifestas e funções latentes ajuda-nos, pois, a compreender por que um comportamento sobrevive ao tempo, mesmo parecendo não atingir sua função.

7.9.07

Tiros e cantadas

"Há demônios especialistas no cotidiano, eles manipulam, por assim dizer, a intensidade do efeito do acaso sobre nossas vidas."
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Difícil não tentar se posicionar no caso da morte provocada pelo promotor Thales que, a partir de importunações a sua namorada, feita por um grupo de rapazes, disparou sua arma, chegando ao absurdo número de onze tiros. Um morto e um ferido. Isso ocorreu em Bertioga, litoral paulista, no ano de 2004. O caso é rumoroso porque torna réu alguém cuja função é promover a justiça. Ser réu não significa ser culpado, mas é, no mínimo, constrangedor alguém passar de acusador a acusado.

O caso se torna rumoroso também porque, ao contrário do que acontece com os pobres mortais, seu julgamento deve ir para o Tribunal de Justiça, defendido, pela opinião especializada, por ser um direito (foro privilegiado) e um meio mais técnico de decidir a vida de alguém. Que o argumento seja tratar-se de um direito, vá lá. Mas o argumento de ser “mais técnico” é estranho, quase revoltante. Alegam juristas de instituições e tribunais que só no Tribunal de Justiça haverá efetiva "justiça", por ali não haver clima de vingança contra o promotor. Se for assim vamos estender o foro privilegiado a todos – foro generalizado – que cometeram crimes que indignaram a população! Por que ele teme o povo e eu tenho que encará-lo? Júri popular nos outros é refresco... Ademais no Tribunal de Justiça, Thales será julgado pelos seus colegas – há ex-promotores entre desembargadores – além do que jurista gosta de jurista como médicos gostam de médicos. Se Thales fosse médico, alguém acreditaria na justiça feita pelo Conselho Federal de Medicina no seu caso? Um promotor de justiça não deveria temer o julgamento da população a que tantas vezes clamou, em discurso de tribuna, a que cumprisse “seu nobre dever de julgar.”

Seus defensores clamam pela tese da legítima defesa. Mas esta exige uso moderado dos meios necessários para repelir a injusta agressão (art. 25, CP). Onze tiros! Segundo a doutrina e jurisprudência pátrias, exige-se também proporcionalidade entre o bem agredido e o bem, que pela legítima defesa, se faz perecer. Nesse caso certamente não se justificaria a legítima defesa se os tiros tivessem sido dados para desagravar a honra da namorada ou a do próprio promotor. Honra – qualquer pessoa sabe disso, ainda mais sendo membro do Ministério Público – se desagrava na Justiça, não à bala. A corrente jurisprudencial que sustenta o contrário é aquela que aceita, para não cair em contradição, que o marido que surpreende sua esposa com outro na cama – existe algo mais ofensivo à honra masculina? - tem o direito alternativo de dar-lhe um tiro ou pedir o divórcio. Ora, como sustentava Basileu Garcia, a honra não perece até a chegada à Justiça, onde pode ser reparada. Se cada mulher importunada – chamada de “gostosa” – tivesse um namorado pistoleiro, sobrariam poucos homens na face da terra. Felizmente, a média das pessoas acredita que existem melhores meios para lidar com essas incomodações do cotidiano.

Para legítima defesa no caso só mesmo se Thales, e/ou sua namorada, tivessem sido agredidos fisicamente, estivessem em vias de, ou, razoavelmente, imaginassem que seriam (legítima defesa putativa). Ainda que haja legítima defesa (façamos essa concessão pró-réu), ainda haveria excesso. Onze tiros! E a discussão acerca de se tal excesso fora culposo, isto é por falta de cautela, por erro de cálculo (exemplo: disparou onze vezes, matando um e ferindo outro, quando um indivíduo mais cauteloso saberia que apenas um tiro na perna de um seria suficiente), ou doloso, isto é decorrente da cólera, da vontade de desforra contra o agressor. Legítima defesa com excesso implica punição na medida desse excesso. Onze tiros!

É possível que Thales seja inocente, que seja reconhecida a legítima defesa e pronto. Tudo é possível. Mas onze tiros não descem redondo não...

Saindo do mundo jurídico, o caso de Thales parece nos dar uma importante lição sobre o uso de armas de fogo. As pessoas que as portam alegam portar para a defesa. Parece lógico. Mas não é real. Pelas estatísticas de óbitos, aqueles que portam armas morrem mais à bala do que os que não portam. Isso em decorrência do chamado “fator arma”: quem possui uma arma sente-se senhor de si, capaz de reagir a qualquer importunação, ir tirar satisfação com quem ficou com sua vaga no estacionamento, fechou seu carro ou mexeu com sua garota. Uma arma dá ao sujeito a idéia de que ele é mais sujeito, que controla a situação, e por isso ele vai à frente no enfrentamento, enquanto o desarmado iria para casa.

Que barulho foi esse?”, pergunta à esposa na cama. “Acho que foi lá fora, na garagem.”, responde o marido. “Vamos então acender uma luz, ligar para polícia.”, “De jeito nenhum”, diz o macho confiante, “fica em silêncio que vou pegar a arma para dar uma lição nesses fs.d.p.”. Será que esse sujeito pegou seus criminosos? A julgar pelas estatísticas, ele morreu. Metade dos policiais cariocas – os mais acostumados a trocar tiros no país – levam chumbo quando entram em tiroteio com bandidos. O que esperar então daquele que só deu três tirinhos no barranco do sítio e agora quer bancar o herói? Coitado! Sem a arma, teria ouvido a esposa e assim não teria ocupado uma vaga no IML.

Parece – opinião livre – que algo assim pode ter acontecido com Thales. Alguém mexe com sua namorada. Ela, provavelmente (sua mãe a ensinou) sabe como lidar com isso: não dá bola, sai de perto, dirige-se a lugar seguro. Mas ele está armado. “Com namorada minha ninguém mexe.!” Reclama com os rapazes que estão em grande número. Imprudência? Não, ele tem a arma! A arma é mostrada. Jovem e solitário promotor diante de um bando de jovens na madrugada. Quem vencerá? Testosterona a dar com sobra. O grupo diz algo como: “Atira se és homem!” Mais alguns detalhes e onze tiros!

Ah, se o promotor tivesse deixado sua arma em casa naquele dia! Teria entrado no carro, voltado para casa. Sairia doido da vida, mas a namorada logo o tranqüilizaria, encheria sua bola, como só as mulheres sabem fazer: “Deixa, amor, eles mexem, mas você que aproveita.” O macho-alfa então dormiria em paz, com sua honra lavada, afinal eles mexem com ela por que não podem tê-la. “Que conclusão maravilhosa, meu amor!” Além de jovem, bonito e bem empregado ainda sou o rei da cocada! “Thales, você é um sucesso”.

Mas, o azar, Thales levara a arma naquele dia. E por isso, sua honra, seu emprego e, quem sabe, sua própria mulher, tão obstinadamente defendida, sumam de sua vida. Pobre Thales e sua arma.

Talvez essa história aqui narrada não seja a verdadeira, mas é uma versão possível e que, pelo menos serve de apólogo, por isso passemos a moral da história:

1). Garotas, não importunem seus acompanhantes com as cantadas que recebem de terceiros. Homens não sabem brigar como vocês (mais civilizadas), que se xingam, trocam ataques à honra, à roupa, à estética ou aos cabelos. “Vagabunda, mocréia, bruxa!” Mas depois se encontram no banheiro da boate para retocarem, lado a lado, a maquiagem e irem cuidar cada qual de sua vida. Nós não, inseguros como somos, queremos eliminar o outro, quebrar-lhe os dentes, fazê-lo sofrer, não podemos puxar cabelo, não podemos ficar só xingando, temos que sair no braço ou na arma. Por isso não desperte o ódio de seu namorado, ele pode ir para a cadeia – ou para o cemitério – porque alguém lhe ofendeu/elogiou de “gostosa”.

2) Garotos, pensem bem quando sacarem a arma. Arma, quem já foi do meio sabe, só se saca quando é para utilizar. Antes de sacar, então, pense: estou mesmo disposto a atirar? Estou disposto a me arriscar a passar os próximos anos respondendo a processos, com risco de cadeia e ruína financeira, por causa desse infeliz? Tenho alguma outra saída além de atirar? Com uma arma na mão não se blefa, jamais!, Pois, outro defeito tipicamente masculino, o macho desafiado se torna imbecil. Quando você mostrar a arma para o garotão, verá que ele quase nunca fugirá – é que nós, homens, vimos muitos filmes do Chuck Norris – por isso o desafiado abrirá a camisa e dirá: “Atira, se for homem.” E daí pra onze tiros é um pulinho.

Em suma: mulher que se queixa ao namorado que outro mexeu com ela é “chave-de-cadeia”, pense bem, garotão, se ela vale sua liberdade e patrimônio dos próximos anos. E, garotas, namorado armado vai “se achar” e na hora que deveria baixar a bola, vai tentar mostrar o seu valor, que você é a garota do Rambo e etc., e aí a mãe de vocês vai, com quase certeza, chorar. E muito.