14.12.06

EDUKATORS e a banalização do mal

Professor Sandro Sell


O filme Edukators, os educadores (2004), de Hans Weingartner, dá uma nova versão à velha questão ética acerca dos limites ao acúmulo de bens supérfluos num mundo de escassez. Pode-se possuir bens ilimitadamente desde que o meio empregado na sua obtenção seja legítimo? O fato de haver outras pessoas que não possuem sequer o mínimo existencial não deve ser considerado um problema moral do grande acumulador, mas apenas um resultado mecânico das regras do sistema? E mais: quais os meios legítimos de enriquecimento: Trabalho? Talento? Sorte? Herança? Se o enriquecimento resultar de tais meios pode-se ser dono de tudo e ainda merecer aplausos por isso? Ou as regras do jogo de acumulação capitalista não passam de maneiras de ocultar a ganância desmedida e criminosa de alguns? Edukators não pretende responder essas questões, mas apresenta uma versão vívida e apaixonada de todas elas.

No filme, Jule, uma jovem garçonete, vive arrasada por ter que arcar com uma conta de quase 100 mil euros, em favor do ricaço Hardenberg, cuja Mercedes ela, involuntariamente, destruiu num banal acidente de trânsito. Para ele, a conta representa muito pouco; para ela, a dívida a impede de pagar o aluguel da casa em que mora, de se divertir, ou de atingir seu sonho de ser professora. Ela precisa de oito anos de trabalho duro para saldar a dívida contraída em cinco segundos de distração. Pelas regras do jogo, Jule deve transferir dinheiro sacrificando seu essencial para garantir o supérfluo de sua “vítima”. Há justiça nisso?

Hardenberg tem a lei a seu favor: Dirigia calmamente à frente de Jule, que não o viu frear e por isso entrou na traseira da Mercedes. Tudo bem, o tribunal reconheceu que ela foi a causadora. Mas a causadora de quê? De um acidente de carros? Não, se fosse isso, ela até que poderia arcar com as despesas. Ela causou foi um acidente em uma Mercedes! Não entendeu a diferença? Então, parabéns: você não teve o azar de Jule. A questão primeira que se coloca é: quem paga o custo-ostentação daquele que decide comprar um carro, digamos, 10 vezes mais caro do que a média dos que circulam nas estradas? Eu? Você? Jule?

A decisão de comprar a Mercedes foi só de Hardenberg, mas os custos de sua compra oneram direta ou indiretamente muitos outros. É sabido que quando o número de automóveis de luxo que circula numa cidade cresce, o valor que os demais precisam desembolsar para segurarem seus próprios e humildes carros, em face de prejuízos contra terceiros, também aumenta. Enquanto Hardenberg curte sua jóia sobre rodas, os demais, sem curti-la, transformam em pagamento às seguradoras o temor que têm de estarem no lugar de Jule. Por que ela não fora obrigada apenas a ressarcir um carro normal (avaliado pela média dos automóveis em circulação)? Por que ela teve que indenizar “aquele” carro? Porque o sistema em que ela vive pressupõe uma igualdade abstrata entre todos os envolvidos num acidente, qualquer um poderia ser o dono daquela Mercedes, então bateu, levou. Na prática, isso representa um acréscimo à liberdade dos mais ricos: estes podem ter menos prudência ao dirigir, porque seus seguros são bons e o custo comparativo do veículo alheio é irrisório, enquanto os mais pobres assustam-se só com a possibilidade de, em dia de chuva e neblina, terem pela frente a máquina dos sonhos de Hardenberg.

Jule está nessa situação quando descobre que seu namorado (Peter) e seu amigo (Jan) são os edukators: jovens que invadem a casa de milionários, enquanto estes estão ausentes, desarrumam os móveis e deixam bilhetes como: “Você tem dinheiro demais” ou “Seus dias de fartura estão com os dias contados”. Com isso eles pretendem abalar a noção de segurança dos muito ricos, mostrando que sua ostentação está sob vigilância. Sabendo disso, Jule insiste que Jan visite com ela a casa de Hardenberg na condição de edukators. Relutante, Jan acaba cedendo. Resultado: ela esquece o celular na casa do ricaço. Quando voltam para pegá-lo, Hardenberg os encontra e reconhece Jule. O que fazer? Com a ajuda de Peter, seqüestram o dono da casa.

Tudo o que os três edukators queriam era se livrar da polícia, mas como? Matar o ricaço, nem pensar. Eles não são assassinos. Nem tampouco querem pedir resgate, como se fossem criminosos seqüestradores. O que fazer? Levam-no para uma casa de campo onde esperam por alguma idéia que os tire da enrascada. Ter que passar dias com aquele sujeito deve ser asqueroso. Mas, ao contrário, e aí está uma situação que nossos edukators não contavam: o malvado Hardenberg se mostra gentil e compreensivo. Joga cartas, conversa e até fuma maconha com seus seqüestradores.

É que na sua Mercedes, ou na sua mansão, Hardenberg representava o próprio mal, a versão sobre pernas da raça de exploradores dos mais pobres. Mas ali, abatido e gentil ele parecia uma pessoa comum. Isso coloca os edukators em situação semelhante à vivenciada pela filósofa Hannah Arendt diante de Eichmann. Quando este, que fora um dos arquitetos do extermínio em massa dos judeus, foi à julgamento, esperava-se que o tribunal revelasse um monstro, um facínora, mas o que foi revelado? Uma pessoa terrivelmente comum, um funcionariozinho banal e obstinado, que gostava de cumprir bem o seu serviço, fosse carimbando papéis ou eliminado pessoas. Era triste descobrir que o malvado Eichmann não era sequer um demônio, mas apenas um maldito cumpridor de regras, um burocrata da morte, que não agia por um ódio visceral aos judeus, mas com indiferença. Tanto Arendt, diante de Eichmann, quanto os edukators diante de Hardenberg descobriram que o problema não era simplesmente de maldade, mas de indiferença em relação à prática do mal. Hardenberg não parecia odiar os mais pobres, ele simplesmente não se importava com eles. É assim que quando Jule pergunta se ele sabia o que a dívida do carro representava para a vida dela, ele respondeu com honesta convicção: “Eu de fato nem dei importância a isso. Entreguei o caso ao meu advogado e só”.

Em outros momentos, o personagem do seqüestrado representa uma defesa eloqüente dos axiomas do jogo capitalista, de exploração sem culpa. Estes axiomas são: 1. Todos têm as mesmas oportunidades; 2. alguns aproveitam tais oportunidades melhor do que outros, fazendo melhor uso de sua inteligência, capacidade de trabalho e senso de oportunidade; 3. Esse uso diferenciado de oportunidades iguais gera a desigualdade em favor dos mais talentosos; 4. Mas também beneficia os demais, porque é recompensando regiamente os mais talentosos que se os mantêm motivados a criarem coisas, como tecnologia, medicamentos ou automóveis Mercedes que, em tese, servirão a todos; 5. Os mais pobres são, sobretudo, vítimas de si mesmos, por não serem competitivos à altura do jogo capitalista; 6. Não há culpados nem inocentes, apenas ganhadores e perdedores, como em qualquer outro jogo.

A transcrição do diálogo abaixo, entre os edukators e Hardenberg, é esclarecedora:

Jule: Chá?
Hardenberg: Obrigado.
Jan: Quanto é que você ganha por ano?
Hardenberg: 200 mil euros, mais ou menos.
Jule: 3,4 milhões, segundo a revista...
Jan: Não se sente culpado? Destruir a vida dela por um carro que você pode trocar a cada mês? Por quê?
Hardenberg: Admito, eu deveria ter prestado mais atenção aos demais envolvidos... Eu estava estressado, lamento muito.
Jule: Quantas horas por dia você trabalha?
Hardenberg: Treze, quatorze horas, até mais.
Jule: E o que você faz com tanto dinheiro? Acumula coisas? Coisas grandes e caras? Carros, iates, mansões... um monte de coisas para poder dizer “eu sou o macho alfa”...Eu não vejo outra razão. Você não tem nem tempo para curtir o seu iate. E por que você sempre quer mais?
Hardenberg. Vivemos numa democracia. Não devo explicações sobre os meus bens, eu paguei por eles.
Jan: Errado. Vivemos numa ditadura capitalista.
Hardenberg. É mesmo?
Jan: Você roubou tudo o que possui.
Hardenberg. Eu posso bancar muito mais coisas porque trabalho mais, eu tive as idéias certas na hora certa, além disso eu não sou o único que aproveitou as chances... e na vida todos têm chances iguais, a verdade é essa.
Jule: Ele daria um ótimo político, não é? No sudeste da Ásia um monte de gente trabalha até 14 horas por dia e eles não têm mansões, ganham 30 euros por mês... também podem ter boas idéias, mas eles não podem nem pagar o ônibus para irem à cidade vizinha.
Hardenberg: Desculpe por eu não ter nascido na Ásia
Jule: Mas ainda pode tornar suportável a vida lá. O Primeiro Mundo perdoaria a dívida do Terceiro Mundo, é só 0,01% do nosso PIB!
Hardenberg: Seria o colapso do sistema financeiro mundial.
Jule: Quer que eles fiquem pobres para poder ter controle sobre eles, forçá-los a vender os seus produtos a preços ridículos...
Hardenberg: Como é que você sabe?
Jan: Resposta simples: você não cancelou a dívida da Jule.
Hardenberg: Isso é absurdo!
Jan: Não, é a regra básica do sistema: chupar todos até o bagaço. Pra que não possam mais reagir.
Hardenberg. Não é assim... Claro que precisamos melhorar as coisas...mas o sistema não vai mudar.
Jan: Por que não?
Hardenberg: Porque é da natureza humana querer ser mais que os demais... todo grupo logo elege um líder e a maioria só fica feliz quando compra uma coisa nova.
Jan: Feliz? Acha que eles são felizes, Hardenberg? Abra os olhos. Sai do carro da sua empresa e ande nas ruas. Eles parecem felizes ou mais assustados? Veja sua sala de estar, todos estão grudados naquela TV, ouvindo zumbis chiques falando de uma felicidade perdida. Dirija pela cidade. Verá a imundice, a superpopulação. As massas em lojas de departamentos subindo e descendo escadas-rolantes feito robôs... Ninguém conhece ninguém. Acham que a felicidade está a seu alcance, mas ela é inalcançável. Porque você a roubou e sabe muito bem disso.... Mas tenho uma notícia para você, executivo: o sistema superaqueceu: somos só os precursores, a sua era está para acabar. Enquanto você surfa na tecnologia os outros sentem ódio. Como as crianças das favelas vendo filmes de ação americanos. Isso é só o começo, nós vamos ver. Há mais casos de insanidade, serial killers, almas destruídas, violência gratuita. Não pode sedar todos eles com games e shoppings... e os antidepressivos não vão funcionar para sempre... o povo tá cheio desse seu sistema maldito e hipócrita.
Hardenberg: Tá bom. Admito que há alguma verdade no que disse, mas sou o bode expiatório errado. Eu jogo o jogo. Mas não fui eu que fiz as regras desse jogo.
Peter: Não importa quem inventou a arma, só quem puxa o gatilho.
Jule: Não é tão simples e você não pode se eximir.

No diálogo, Hardenberg representa não só jogador capitalista, mas o sujeito que acredita nas regras do jogo: trabalhou, aproveitou oportunidades, triunfou e agora tem o direito de curtir. E representando a alma mercantil do capitalismo, ele não é contra nada: revoluções, contracultura, oposições, desde que seus símbolos, roupas e armas possam ser vendidos em shoppings centers. Em momento sentimental, ele até relembra que também já sonhou com um mundo diferente: “Há 30 anos, devo confessar que teríamos adorado pegar um magnata como eu, e hoje estou aqui... É curioso. Não pretendo bajular vocês, não acho certo o que estão fazendo comigo, mas o seu idealismo tem o meu respeito.” Da mesma forma que as grandes gravadoras contratam artistas de rap para “afrontar” a sociedade, que grifes internacionais colocam pobres na passarela, para mostrar que a moda têm sensibilidade social, ou que o Fantástico mostra o quanto de charme há nas meninas da favela, Hardenberg respeita o idealismo que anima as críticas a seu modo de vida. Prova cabal de que, sob o capitalismo, não há ideal que não tenha lugar, desde que se dispa de todo radicalismo (de sua raiz, de sua essência) e transforme-se numa versão inofensiva, boutiquizada e estetizada, para ajudar a diversificar as vitrines e os gostos.

Mas o que fazer com Hardenberg? É lícito matar o tirano? Eis uma pergunta clássica no mundo da ética. Maquiavel apresentava uma solução utilitarista à questão: matar o tirano pode ser uma boa solução se for essa a condição de manutenção da paz do Estado e da segurança de seu povo. Portanto, matar apenas na medida em que os benefícios superem os malefícios da legitimação da prática do assassínio de tiranos. Isso talvez valesse à época de Maquiavel, em que monarcas, sentados em tronos, de fato governavam. Mas, no sistema capitalista atual, quem é o tirano? Se Hardenberg for morto há algum abalo ao sistema? Não. Assim como o sistema se mantém intacto se forem mortos Bill Gates, Antônio Ermírio de Moraes ou George Bush. Como ensinou Foucault, a característica básica do poder na modernidade é que ele saiu do palco: ele não está mais no trono, onde poderia ser facilmente alvejado, mas capilarizado, distribuído por praticamente todos os lugares e pessoas da sociedade. O filósofo francês Felix Guatarri chegava a dizer que até nosso inconsciente havia se tornado uma espécie de terminal de computador capitalista, somos programados para sentirmos e processamos informações no ritmo do mercado. No capitalismo, o poder é em rede: derrube-se um líder e a rede se refaz com uma rapidez espantosa. Isso porque, de certa forma, somos todos Hardenbergs, Gattes ou Bushs, podemos até variar um pouquinho no estilo, mas no essencial estamos todos capacitados a assumir o lugar do tirano.

Então o que fazer? Difícil saber. No filme, os garotos optaram por devolver seu prisioneiro ao lar. E este, em sinal de agradecimento, não só promete não comunicar o fato a polícia, como perdoa a dívida de Jule. Parece que a educação na marra funcionara, Hardenberg caíra em si, deixaria de ser o porco capitalista em que a vida – sempre sem culpa pessoal - o convertera. No filme chega-se até a imaginar um inexistente abraço entre ele e Jule, seguido de um aperto na mão dos rapazes. Todos apresentam aquela cara de quem aprendeu uma grande lição. Os edukators entram no carro e o ricaço na mansão. Silêncio e reflexão.

Na manhã seguinte, já com a “cabeça no lugar”, o executivo volta à velha rotina mental. A polícia bate à porta dos edukators que, sabiamente descrentes na bondade humana, já haviam deixado o país. Na parede do prédio em que moravam um recado a Hardenberg, não um xingamento, não uma afronta, apenas um bilhete profético e constatador: “Certas pessoas nunca mudam”. Bilhete sem ódio, sem revanchismo, apenas com indiferença. E é dessa forma que os edukators mostram que aprenderam sua mais dura lição, a mesma de Hannah Arendt: o mal na atualidade não é nem grandioso, nem sequer dado a perversidades, é apenas daninho, ordinário, repetitivo e quase sem culpa.


Ficha Técnica do Filme
Título Original: Die Fetten Jahre Sind Vorbei
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 126 minutos
Ano de Lançamento (Alemanha): 2004
Site Oficial: www.theedukators.com
Estúdio: Y3 Film / arte / Coop 99 / Südwestdeutscher Rundfunk
Distribuição: Celluloid Dreams / IFC Films / Lumière
Direção: Hans Weingartner
Roteiro: Katharina Held e Hans Weintgartner
Produção: Antonin Svoboda e Hans Weintgartner
Música: Andreas Wodraschke
Fotografia: Daniela Knapp e Matthias Schellenberg
Edição: Dirk Oetelshoven e Andreas Wodraschke

Elenco
Daniel Brühl (Jan)
Julia Jentsch (Jule)
Stipe Erceg (Peter)
Burghart Klaubner (Hardenberg)
Claudio Caolo (Paolo)
Laura Schmidt
Sebastian Butz
Petra Zieser
Peer Martiny

10.12.06

A razão e as paixões

Professor Sandro Sell


O cavalo e seu cocheiro

Como possível guia da existência, os seres humanos possuem o atributo da razão, essa capacidade de orientar sua conduta de forma planejada, calculada e compreensivelmente adequada aos fins a que se propõem. A posse da razão nos sugere a idéia de que, com prudência e discernimento, podemos controlar as situações em que nos encontramos, garantindo que delas surjam as melhores resultantes possíveis. Na imagem platônica, a razão é o experiente cocheiro a guiar o xucro cavalo dos impulsos imediatistas. Por isso é que se pode dizer que uma vida racionalmente guiada é uma vida protegida daquela parte do infortúnio humano cuja causa só podemos atribuir a nós próprios. Nesse sentido, a razão é uma defesa contra o acaso preguiçoso, daqueles que se dizem vítimas das circunstâncias quando o que lhes trouxe a ruína foi uma simples falta de planejamento e autocontrole.

Quem ainda não foi exortado a “ser racional”?, a agir “com racionalidade?”. É claro que o fato de precisarmos ser lembrados de que é melhor agirmos dessa forma já indica que o uso da razão não é tão natural quanto se supõe. Pela freqüência com que complicamos nossa existência podemos até supor que a razão é de utilização apenas excepcional em nossas vidas. No cotidiano, os impulsos mais imediatos tendem a prevalecer sobre os planejamentos racionais, o cavalo comanda o cocheiro. É assim que, em febres de consumismo, as pessoas levam para casa o que não conseguirão pagar; embriagam-se e dirigem, confiando na imagem do santo que penduraram no espelho do carro; têm relações sexuais sem proteção, acreditando que “o que tiver que ser será”. Ao mesmo tempo, falta-lhes força para seguir planos racionalmente traçados: concluir o curso de línguas, manter a dieta ou tornar-se mais paciente. Parece que, ao final das contas, a razão serve mesmo é para fazer os indivíduos sentirem-se culpados por não conseguirem ser aquilo que, em momentos de extrema calmaria do cavalo, o cocheiro lhes propôs.

A razão fracassa com tanta freqüência porque não é nosso único guia. O ser humano é um ser passional tanto quanto é um ser racional. Se a razão pretende nos conduzir para as melhores resultantes de vida possíveis, as paixões nos arrastam para caminhos que a própria razão desconhece. Por paixões estamos aqui nos referindo aos diversos tipos de obstinações (seja de pensamento, sentimento ou conduta) que nos atraem para algo, com uma pressa, maneira ou intensidade desautorizadas pela razão. A paixão é, sobretudo, produtora de parcialidade, exagera na atenção que concede a um único ponto deixando os outros a descoberto, motivo pelo qual ela é tão freqüentemente associada a uma espécie de vício. Se a complexidade é a lei da vida, concentrar-se em demasia no objeto da paixão é viver de forma desequilibrada e perigosa. Sim, perigosa, porque em desaparecendo esse objeto de paixão, desaparecerá também o sentido da existência do apaixonado. Ébrios sem bebida, dependentes sem droga, amantes sem amados, consumistas sem dinheiro, exemplos de vida em desespero.

Dando um destaque todo especial ao efeito equilibrador da razão sobre a vida de cada um, os moralistas sociais sempre temeram as paixões, por acreditarem que elas são os grandes destruidores do homem enquanto ser colaborativo da sociedade. Teme-se que, sob o império da paixão, o trabalhador deixe de ser obediente ao patrão; o casto, de ser obediente aos seus votos; e o soldado, de ser obediente à pátria, pois que o apaixonado só reconhece um senhor, seu objeto passional. Daí o ancestral controle social das fontes habituais de paixão: sexo, drogas e poder. Esses três elementos não têm autorização para circularem livremente, mas apenas quando acompanhados por rituais que mostrem a excepcionalidade de seu emprego, a coleira que os prende.

É assim que o sexo deve ser feito às escondidas, de preferência a noite, sendo considerado grosseiro perguntar a quantas anda a vida sexual alheia ou exibir suas peripécias sensuais. E duas pessoas correriam mais risco de serem vítimas de linchamento popular se estivessem em uma praça praticando sexo do que se estivessem perigosamente duelando entre si. Pois o duelo não é contagioso como o sexo. O controle sobre o sexo é o reflexo do medo social de que ele seja reconhecido como tão bom que ocupe tempo demasiado das pessoas, que, então deixariam de trabalhar, estudar e contribuir socialmente. A mesma interdição que hoje sofrem as drogas, sofreu a prática da masturbação: prazeres que não trazem benefícios sociais e são de fácil contágio fazem tremer as bases da sociedade. A imagem de que todo drogado é um delinqüente em potencial se equivale em simplismo à imagem feita, antigamente, do adolescente masturbador como um degenerado. Prazeres poderosos e de fácil obtenção devem ser estritamente regulados. Sua possibilidade de existência se resume à clandestinidade ou a momentos rituais, de quebra coletivamente aceita das regras sociais: só há carnaval porque há uma quarta-feira-de-cinzas já previamente estipulada. A sociedade exerce no coletivo aquilo que se acredita ser, individualmente, a função da razão: evitar que a paixão transborde a existência, resumindo-a à perseguição de caprichos pessoais.

Doentes de paixão

Entre os gregos, as paixões foram vistas como algo de que se sofria, um padecimento moral e físico. É assim que se compreende que da mesma palavra grega, “phatos”, haja derivado os vocábulos passional e patologia. Paixão não se tem; paixão se sofre. Em termos religiosos, a paixão era uma espécie de possessão divina, uma forma de os jocosos deuses do Olimpo perturbarem a vida dos pobres mortais. Quem nunca soube da vida toda certinha de alguém que ao defrontar-se com uma enorme paixão caiu como um castelo de cartas? E que esse mesmo alguém, anos mais tarde, refere-se ao período em que se “libertou” daquela paixão, como o período em que se “curou”? Enquanto ele estava doente, nenhum dos apelos de seus amigos à razão eram suficientes. A paixão seria como um daqueles vírus sem vacina ou remédio: ao contrai-lo tudo o que se pode fazer é esperar o fim natural de seu ciclo, pois que o uso da razão lhe é inócuo.

O cristianismo herdou essa má-vontade grega para com as paixões. Passou a considerá-las vícios de caráter, associando-as a pecados, num rol que ia da luxúria à gula. Para o cristão, uma vida racional seria aquela que, mediante a eliminação das paixões, levasse o homem a Deus. Jesus havia dado a fórmula do cálculo de uma vida racional por excelência: “De que adianta ao homem ganhar o mundo e perder a sua alma?” Aquele que acreditava em Deus e não extirpava suas paixões fazia o pior negócio do mundo: trocaria a eternidade bem-aventurada por uns poucos anos de sucesso entre humanos. Sic transit gloria mundi. Daí, o mestre do Evangelho poder dizer com grande convicção “Perdoai-vos, eles não sabem o que fazem”. De fato, só quem não conhecesse as regras do novo jogo (que era, sobretudo, a de um cálculo de rendimentos celestes), ou fosse um completo estúpido, cederia às paixões, comprometendo os dividendos eternos de uma vida regrada.

Com relação à paixão relacionada ao sexo e ao amor, a posição cristã foi incisiva. Os santos eram castos, ou assim se tornavam ao serem convertidos, como no caso de Santo Agostinho. Melhor seria que se imitassem os santos, mas como isso não era possível (sobretudo em termos demográficos), um matrimônio estável era a solução. Se as paixões amorosas se caracterizam pela inconstância, pela troca do objeto de afeto, devido ao esgotamento das forças ou da frustração das inflacionadas expectativas dos amantes, o casamento cristão era o inverso dessa tendência: indissolúvel, exclusivista e cercado de inúmeros deveres que arrefeceriam qualquer paixão exacerbada. Se na Idade Antiga e Média, o casar-se por amor ou desejo recíproco já não era a regra, o casamento aos moldes cristãos estava aí para garantir que, quando tal ocorresse, esse “acidente” seria logo corrigido pelo dever da moderação sexual, da procriação em larga escala e pela necessidade de vigiar não apenas ações e palavras, mas o próprio pensamento. O casamento cristão é, sobretudo, uma tecnologia moral antipaixão.

Enquanto no mercado oficial das condutas, a paixão tinha circulação proibida, no mercado paralelo valia qualquer coisa para possui-la. É assim, que, em plena Idade Média, vemos o “ressurgiumento” da paixão, na sua versão galante. Na medida em que casamento cristão exortava a renúncia, a fidelidade, a indissolubilidade, o cavaleiro medieval tornava-se o símbolo da paixão enquanto arte. Sua astúcia em cortejar damas proibidas, arriscando a vida por amores inconseqüentes, era uma virtude pagã na mesma medida em que era um vício cristão. Nas cortes, a hipocrisia foi a fórmula para lidar com essa dualidade: cerimônias de casamento cada vez mais pomposas, com a multiplicação das testemunhas ao solene ato, disfarçavam a circulação cada vez mais corrente da infidelidade elevada à categoria de arte.

Séculos mais tarde, indignados com o racionalidade rígida do Iluminismo, membros do movimento romântico convertem a paixão no próprio sentido da vida. Alguns acreditam que só se vive bem quando se vive de forma apaixonada. Há, então, a criação de uma estética do sofrimento passional. As paixões nos levam à ruína, é verdade, mas a paixão, em particular a paixão amorosa, nos leva a um sofrimento que redime. A aventura de seguir seus caminhos tortuosos, o risco de ser devorado pelos dragões que a protegem, a convicção de que viver bem é descobrir uma paixão pela qual vale a pena viver ou morrer, tudo isso daria à mísera existência humana uma experiência de grandiosidade. Sob o desespero da razão, a paixão amorosa tornava-se, assim, a forma sublime do sofrimento humano, em síntese: o único que valia a pena.

Paixão e lucro

E as outras paixões, pela glória pessoal, pela riqueza, pelo poder? No geral, continuavam a receber a qualificação de condutas viciosas, indesejáveis, vis, o oposto da razão. Mas não por muito tempo. Numa verdadeira mudança de paradigma, começou a surgir por volta do século XVII um termo tido como o motivador por excelência da conduta humana: o interesse próprio. Formado por um amálgama de razão (de perseguir algo de forma planejada) com paixão (de querer algo obstinadamente), os interesses seriam logo louvados como o guia mais sensato da existência humana. O problema não estava, então, nas paixões, mas na forma irracional de guiá-las. Aceitou-se,até, que as paixões davam o impulso necessário ao progresso da vida humana (Hegel achava que uma vida sem paixão era uma vida imobilizada), mas justamente por serem de natureza impulsiva as paixões tendiam a sugerir caminhos ruinosos para a sua obtenção, e era por isso que precisavam ser guiadas pela razão: deixe que a paixão lhe dê o objeto de afeto (dinheiro, mulheres, glória), mas transfira à razão o modo de conquistá-los e, só assim, a fortuna lhe será estável. Em suma: nós não podemos ser guiados apenas pela razão (pois somos passionais), mas também não podemos ser guiados sem ela: descubra sua combinação ideal de paixão e razão (de interesse) e seja bem-sucedido.

Max Weber, na sua obra mais famosa (A Ética protestante e o espírito do capitalismo) enxergou no capitalista moderno essa junção venturosa de paixão e razão, de interesse, que o levava a acumular riquezas de forma segura e a gasta-la de forma excessivamente prudente. O capitalista queria mais e mais, só que não como seu antecessor, o aventureiro do ouro: se este conquistava de forma espetacular e esporádica (pilhagens, pirataria, caça a tesouros) e gastava de forma mais espetacular ainda (banquetes, bebedeiras e luxúria), o capitalista racional conquistava com método (investimentos contínuos, calculados) e gastava com excessiva discrição e prudência, já que ostentar - sobretudo entre os protestantes, os novos ricos da modernidade - seria prova cabal de um afastamento de Deus e de uma queda nas paixões, no mal sentido do termo.

O homem como ele é

O conceito de interesse nasceu da constatação, sobretudo a partir de Maquiavel, de que o homem é um ser mesquinho, egoísta, passional e que sempre o será. Por mais que a Igreja exortasse a humanidade a ser boa, não haveria jeito, o homem jamais superaria sua natureza. Ele era como aquele escorpião da fábula do lago, que após implorar que o sapo o atravessasse no rio caudaloso, sob a promessa de que não o envenenaria, ainda no meio do trajeto, pica o gentil anfíbio, que, moribundo, balbucia a seu ingrato passageiro: “Grande lucro! Agora eu morrerei envenenado e você afogado”. Ao que o escorpião teria resignadamente respondido: “Sinto muito, meu amigo, mas não posso trair minha natureza”. Por mais que o homem procurasse imitar Cristo em sua pureza, ele fracassaria: o veneno das paixões lhe era superior. Se o cristianismo queria algo da humanidade teria que se render a essa constatação, como fez o protestantismo com a questão do enriquecimento financeiro: ao invés de proibir os juros (à moda católica) apenas os regrou. Não havia como deixar o escorpião humano menos venenoso, apenas como moderar a freqüência de sua picada.

As concepções de homem da modernidade, de Maquiavel, Hobbes indo até Freud tiveram em comum o reconhecimento de que as paixões nos definem no mínimo tanto quanto a razão. A paixão não é assim, como pensavam os gregos, um vírus que nos é inoculado a partir de fora. As paixões estão em nós, como parte intrínseca do que somos. Podem variar seus objetos, aquilo a que nos apegamos, mas não o fato de que suas manifestações de parcialidade obstinada, mais dia menos dia, acabarão por nos render. A razão não é nosso único senhor, e viver enquanto humano é, em total desagrado à regra bíblica, equilibrar-se na função de serviçal de senhores contrapostos.

Ao contrário do que se pode pensar, reconhecer a força das paixões não é um problema apenas pessoal, mas o problema político por excelência. Se Maquiavel é tido como o pai da moderna política, enquanto ciência, é justamente porque ele estava preocupado em fundar um Estado não para o homem de boa-vontade do cristianismo, nem tampouco para o homem lógico criado pela razão, mas para o homem como ele é: astuto, estúpido, racional e apaixonado. O homem em sua inteireza e simplicidade. E se o mercado, com suas grifes e marcas, pode nos vender tantas adoráveis quinquilharias, que nos encarecem sobremaneira a vida, sem contribuir em nada com a funcionalidade da existência, é porque não fabrica seus produtos para a razão, mas nos delicia a partir de nossa carente passionalidade. Em resumo não só a política séria, quanto a economia bem-sucedida dão especial atenção às nossas paixões. Se o cidadão e o consumidor um dia forem plenamente racionais teremos que reinventar o mundo, correndo o risco de deixar para traz quase a totalidade dos sonhos que, por enquanto, enchem de sentido nossa precária existência.