29.6.07

Escuta telefônica e vida privada

"Pode-se exigir que um homem seja mais do que um homem?"



“Tarado” – dizia um humorista – “é o indivíduo normal pego em flagrante”. A frase tem sua verdade se levamos em conta que a presença alheia é capaz de operar importantes modificações em nossa conduta. Ao saber que somos publicamente observados, palavrões em curso são interrompidos, olhares cobiçosos são resignadamente desviados, lugares são gentilmente cedidos e a idéia de que criminosos devem ser tratados com humanidade é enfaticamente defendida. A presença do outro genérico, isto é, dos nossos semelhantes abstratamente considerados, nos desbrutaliza, nos torna corteses, sociáveis, civilizados.

Já nos círculos íntimos, na chamada esfera privada, nossa conduta é menos estética ou eticamente consistente. “Ops, desculpe!”, lá foi uma flatulência ou uma piadinha racista, cujo embaraço não chega às raias de abalar nossa reputação. Acontece. Quando estamos longe do outro genérico e perto demais do nosso grupo íntimo ser politicamente correto é não apenas incomum, mas mesmo inconveniente. Quem não tem um parente vegetariano que vem à nossa casa lembrar que nossa feijoada é, afinal de contas, nada mais do que uma sopa de cadáveres mutilados? Quem não tem uma sobrinha feminista que interrompe o almoço de domingo porque um tio velho disse, provocativamente, que lugar de mulher é na cozinha? Quem não sente arrepios com a presença daquele colega que quer manter a decência no nosso chope de quarta-feira? Ou daquele outro que, baseado na autoridade da sensatez, manda suspender a próxima rodada, já que estamos dirigindo? Por que todos esses personagens são corretamente inconvenientes? Porque agem na esfera privada com exigências próprias da esfera pública; pedem de nós o mesmo que “voluntariamente” faríamos se estivéssemos diante da câmera do Jornal Nacional.

Manter uma carreira pública decente é operar bem a diferença entre os espaços públicos e privados. Na esfera íntima se deve ser agradavelmente relaxado, permitindo que os outros também possam sê-lo. Já na esfera pública há o dever de emitir apenas as opiniões compatíveis com o cargo ocupado ou pretendido. Ginecologistas, juízes, políticos escolados e sacerdotes quando falam sobre seu fazer mais parecem professores dando aulas; e é isso mesmo que pretendem: mostrar não o que eventualmente pensam, mas aquilo que alguém em sua função deveria pensar. Em profissões como essas, o mínimo deslize implicará a condenação pública.

Artistas também sabem disso e mantém rigidamente separadas sua vida privada das aparições públicas. Mesmo quando “mostram sua intimidade” esta, como todos sabem, é uma intimidade-espetáculo, em que até a cara sonolenta da mocinha “surpreendida” em seu despertar foi ensaiada inúmeras vezes, permitindo que “naturalidade” do momento ficasse de acordo com a artificialidade do projeto do diretor de fotografia. Não é sem razão que artistas temem tanto seus ex-empregados domésticos, seus parentes invejosos e pessoas que sabem com quanto sacrifício, produção e baixaria íntima se faz uma celebridade. Mesmo sua majestade, Roberto Carlos, odeia essa história de biografias não autorizadas, ele sabe que ninguém é rei em sua casa...

Artistas de lado, o que aconteceria se alcovitássemos a intimidade do cidadão mais respeitável? No mínimo deixaríamos de admirá-lo. Coloque uma escuta telefônica no Papa e você não irá mais à missa; coloque uma escuta telefônica na casa do Presidente, e você pedirá seu impeachment; coloque uma escuta telefônica em qualquer um e você se assustará com o potencial manifesto de estupidez humana. Uma piada racista ou machista contada na intimidade pode ser algo deplorável, mas é perfeitamente aceita pelas convenções sociais da esfera privada (se não, como você explica já ter ouvido tantas?), mas essa mesma piada contada, displicentemente, pelo deputado fulano no churrasco de domingo, interceptada por uma escuta, e revelada na imprensa, torna-se indicio indelével de desqualificação moral para o cargo. Coisas assim já aconteceram à esquerda, como quando o então candidato Lula brincou, entre amigos, com a sexualidade dos cidadãos de Pelotas-RS; ou à direita, quando, num contexto de intimidade com o seu sobrinho e jornalista, o então ministro Rubens Ricupero, disse, entre muitas outras coisas sem importância, “que não tinha escrúpulos”. Frases banais no contexto original; frases condenatórias no contexto público a que foram maliciosamente transportadas.

As escutas telefônicas legais, popularizadas à exaustão nesses últimos tempos, têm esse problema, elas tiram do contexto certas falas que, na ocasião em que foram ditas, podiam ser apenas indícios de conduta bravateira ou pouco polida, mas em outro contexto – do debate público – se tornam intoleráveis. Por isso sua divulgação, da forma como tem sido feita, serve antes à fofoca extrajudicial do que ao efetivo reforço probatório. Pois, não custa lembrar, que mesmo quando um político diz, em conversa íntima, que fará isso ou aquilo de ilegal, ainda há que se provar que esse algo de ilegal chegou pelo menos a ser tentado, que não ficou apenas na opinião. Opinião tola, que não deveria sequer ter sido emitida, concordamos, mas criminalmente irrelevante quando resguardada de intimidade e não seguida de atos de execução criminosa.

Não tenho a menor simpatia pelos corruptos atualmente em investigação. Mas, por ojeriza ao Estado mexeriqueiro, é preciso lembrar que temos o direito de entabularmos conversas em nossa intimidade sem a pressuposição de estarmos sendo escutados pelos profissionais do deslocamento de contexto. Sem isso, eu, você e mesmo o mais santo dos homens terá muitas conversas estranhas a explicar diante da lógica do espetáculo que, nos últimos anos, tem roubado a cena investigativa. Aproxima-se o tempo em que teremos que separar as autoridades captoras de informações relevantes – aquelas que confirmam práticas criminosas – daqueles que apenas demonstram o quão tolo é, na sua intimidade, o investigado. Teremos que evitar que os paparazzi de polícia se tornem celebridades, adulterando as estritas finalidades da quebra de sigilo telefônico.

Um Estado de direito é resultado do tênue equilíbrio entre a defesa do interesse público e as garantias à vida privada. A escuta telefônica é um recurso a serviço do interesse público, útil, é verdade, mas não pode alastrar-se a ponto de sufocar a esfera privada, tornando nosso cotidiano refém da lógica pública. Hoje muitas pessoas suspeitam estarem sendo “grampeadas”. Se continuar assim, chegará o dia em que contrataremos advogados para nos orientarem sobre a maneira correta de repreender nossos filhos ao telefone, ou de pedirmos um alvará judicial que garanta o segredo da espirituosa cantada que pretendemos passar na moça do telemarketing.
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10.6.07

Corrupção e caráter brasileiro

Seria o brasileiro mais corrupto do que as pessoas de outras nações? Muitos juram que sim. Alguns acreditam mesmo que aqui a corrupção tornou-se caráter, virou nossa segunda natureza. No ranking dos países menos corruptos ocupamos a longínqua 70a posição. Nada bom... É muita sem-vergonhice para um povo só.

Mas, se isso tranqüiliza, não estamos sós. Muitos de nossos vizinhos também chafurdam na mesma lama. O escritor Mário Benedetti, por exemplo, no livro A Trégua, faz uma arguta observação sobre como o clima moral de seu país, o Uruguai, foi transformando cidadãos vigilantes em zumbis da corrupção. Diz o mestre:

“Porque, na verdade, a corrupção sempre existiu, o acordo também, as negociatas, idem. O que está pior, então? Depois de muito espremer o cérebro, cheguei à conclusão de que o que está pior é a resignação. Os rebeldes passaram a semi-rebeldes, os semi-rebeldes a resignados. Creio que, nesta luminosa Montevidéu, as duas agremiações que mais progrediram nestes últimos tempos foram os maricas e os resignados. `Não se pode fazer nada`, as pessoas dizem. Antes só quem queria conseguir algo ilícito é que subornava. Agora quem quer conseguir algo lícito também suborna. E isso significa relaxo total.
Mas a resignação não é toda a verdade. No princípio foi a resignação; depois, o abandono do escrúpulo; mais tarde a co-participação. Foi um ex-resignado quem pronunciou a famosa frase: `Se os de cima levam o deles, eu também levo o meu`. Naturalmente, o ex-resignado tem uma desculpa para sua desonestidade: é a única forma de os outros não tirarem vantagem dele. Ele diz que se viu obrigado a entrar no jogo, porque caso contrário seu dinheiro valeria cada vez menos e seriam cada vez mais numerosos os caminhos corretos que se fechariam para ele. Continua mantendo um ódio vingativo e latente contra aqueles pioneiros que o obrigaram a seguir esse caminho. Talvez seja, no final das contas, o mais hipócrita, já que não faz nada para se safar. Talvez seja também o mais ladrão, porque sabe perfeitamente que ninguém morre de honestidade...”


Mas a corrupção não é propriamente caráter e sim estrutura, isto é, não está nas pessoas, mas nas formas institucionais de controlar o ímpeto praticamente universal pelo dinheiro fácil, que quase sempre é sinônimo de dinheiro ilícito. Uma sociedade bem vigiada é uma sociedade com baixo grau de corrupção, porque esta só existe solta onde vale a pena, como onde a vigilância é frouxa ou meramente episódica, como no Brasil. Porque quando a fiscalização pode ou não ocorrer, conforme a vontade preguiçosa dos fiscais; quando a fiscalização jaz voltada preferencialmente para "laranjas" e pequenos corruptos – muitas vezes sob a direção e aplauso dos grandes; e quando o combate ao ilícito das altas classes é tão extraordinário que quando é feito, em geral, destina-se a atormentar políticos que negaram aumento de salário à classe fiscalizadora ou a mostrar à imprensa, mediante flagrantes cinematográficos, que há utilidade pública em manter certas prerrogativas institucionais da mesma classe, que algum grupo parlamentar ameaça rever. Combater a corrupção é, pois, sinônimo de revolta dos fiscais e não meio de vida habitual.

Igualmente quando as leis não são claras, quando se proíbem ou se liberam atividades sobre cuja ilicitude social ainda restam dúvida, como os bingos, abrem-se espaços à corrupção e ao descrédito na lei. Se alguns podem por que eu não posso? Que juizes estão concedendo liminares? Que estado permite o funcionamento? Como podemos fazer para que uma nova lei autorizadora seja posta em votação pelo Congresso? Na dúvida sobre se uma atividade é ou não ilícita abrem-se largos espaços para que atravessadores posicionem-se ao gosto do freguês. Em termos de lei, o Estado tem que ser assertivo: ou pode ou não pode. O "talvez" é uma mercadoria de primeira no mercado da roubalheira pública.

Também quando se proíbe, na lei, coisas que se vai tolerar, na prática, como casas de prostituição, jogos de bicho e venda de mercadorias piratas abre-se o leque da corrupção, na sua forma mais vil, que é a extorsão praticada pela autoridade pública. Como as atividades acima citadas são permitidas na prática social e proibidas na lei, é preciso ser “amigo” do fiscal para que este volte sua atenção para outras ilicitudes. Até o dia em que a propina não mais compense e a autoridade decida-se pelo flagrante, justificando-se que “apenas cumpre seu dever”. Poucas coisas são tão caras neste país quanto desviar o foco da atenção fiscalizatória. Ninguém vai atormentar a autoridade para agir nesses casos, portanto, agir ou não agir, pode ser uma decisão negociada.

É claro que a corrupção é também um fenômeno cultural, de comportamento coletivo. Nesse sentido, destaca-se nossa conformidade à prática de dependermos de relações pessoais para obtermos o que é público e de direito. É difícil não ouvir, em família ou entre amigos, frases como: “Chegou meu prazo de aposentadoria. Você conhece alguém no INSS?” “Meu IPTU veio errado, vou falar com meu amigo na prefeitura”. Não confiamos, nem gostamos de ser apenas um cidadão, igual a muitos outros, que vai requerer um direito igual ao de todo mundo; gostamos, isto sim, de tratamento personalizado, mesmo quando estamos lidando com o Estado que, em tese, deveria tratar a todos da mesma forma, sem privilégio, sem discriminação.

Mas então de que adianta ter amigos? Numa sociedade republicana ter amigos pode ter muitas funções privadas – conforto recíproco, camaradagem, mútua ajuda – mas jamais facilidades públicas. E isso é difícil para os amigos brasileiros compreenderem, tanto aquele que é agente público quanto seu amigo privado, acham que "amigo é também para essas coisas". Quando esperamos um tempão para sermos atendidos pelo nosso amigo na repartição, esperamos que certas “impertinências da lei” sejam desconsideradas, ou que nosso prazo seja mais benéfico do que os da fila comum, que sejamos, em suma, prioridade. Se nada disso acontece, nosso amigo é um desprestigiado ou não merece nossa amizade. "Se fosse para ser atendido igual a qualquer um, tinha pego uma senha e esperado na fila!"

“Mas”, dirão muitos de meus amigos, “o Estado age como um canalha quando vamos requerer direitos! Foge de suas responsabilidades, humilha o cidadão, marca prazos intoleráveis.” Tudo isso é verdade. E é por isso que os que podem fogem do Estado impessoal, através dos amigos. E os que não podem, os mal relacionados, sofrem uma humilhação ainda maior, sem disporem da solidariedade dos cidadão com mais poder de voz, estudo e acesso à mídia, para brigarem por serviços mais dignos. Em rigor, só os pobres recorrem ao Estado enquanto cidadãos – contando apenas com sua identidade "de comum" - os mais abonados a ele recorrem como especialmente recomendados “pelo tio do fulano”, “pelo pai de beltrano”, pelo “ex não sei o que de não sei onde”. E quando o pobre, vendo que ser cidadão apenas é muito pouco, e dói demais, apela para o cabo eleitoral, que supre a falta de amigos poderosos, a elite critica sua falta de senso cívico. A mesma elite que jamais pegará uma fila, não porque repudie os trabalhos do cabo eleitoral, mas porque conhece o patrão dele.